Festival de Gramado tem noite paraguaia e brasileira com Ruy Guerra
Por Maria do Rosário Caetano
A quinta noite da mostra competitiva do Festival de Gramado, edição 48 – em cartaz nas telinhas do Canal Brasil e do Canal Brasil Play, até o próximo sábado, 26 – foi paraguaia e brasileira. O país vizinho, que começa a se destacar em festivais internacionais, brilhou com “Matar um Morto”, trama ambientada em 1978, em plena ditadura Stroessner, tendo ao fundo a Copa do Mundo vencida pela argentina do craque Mario Kempes.
A representação brasileira trouxe o veterano (e sempre inquieto), Ruy Guerra, com “Aos Pedaços”, e dois curtas, ambos destinados a dar voz a figuras discriminadas pelo status quo: a transexual paraense Dominique, e o “Rei do Candomblé” Joãosinho da Goméa.
O Paraguai, cinematografia de produção modesta, causou sensação, alguns anos atrás, com o estouro pop de “7 Caixas” (Maneglia e Schémbori, 2012), um blockbuster que no país de Augusto Roa Bastos vendeu mais ingressos que “Titanic”. E teve até lançamento comercial no Brasil. Depois, veio “As Herdeiras”, sensação em Berlim (Urso de Prata de melhor atriz), acumulando mais de 40 prêmios internacionais, incluindo o melhor longa latino em Gramado. Outro filme paraguaio, embora de autor argentino, a chamar atenção foi “Guaraní” (2015). Agora chegou a vez de “Matar a un Muerto”, do estreante paraguaio Hugo Giménez, que vem fazendo boa carreira em festivais internacionais. Trata-se de produção que somou esforços com Argentina e Holanda (via Fundo Hubert Bals).
O resultado é fascinante. Um thriller político e social, lacunar, de narrativa sintética e final em aberto. A ação se passa inteira num “monte”, área florestal perdida nos cafundós do país. Pastor (Enre Enciso) e seu ajudante Dionísio (Aníbal Ortiz) desempenham missão das mais terríveis: enterram, clandestinamente, no meio da mata, corpos de opositores à ditadura Stroessner, que durou 35 anos (1954-1989). Certa manhã, entre os mortos, os “coveiros” descobrem alguém que ainda respira. Esse alguém se chama Mário (Jorge Roman) e usa uma camisa vermelha. Cor, registre-se, ausente naquela paisagem florestal, no casebre que abriga Pastor e Dionísio, no rio e praia deserta que ali estão. Figurinos e objetos de cena carregam, sem exceção, tons azulados, cinza, azeitona e (mais tarde) verde-oliva.
Os dois “coveiros”, serviçais dos militares, estão acostumados a construir covas-rasas, enterrar os corpos e arrematar o serviço com grossa camada de cal. Assim, neutralizam possíveis odores e afastam cães e outros farejadores em busca de comida. O que fazer com um corpo vivo? Desconcertados, eles esperam a hora de “matar o morto”. Mas dúvidas os assaltam. Em especial ao grandalhão Dionísio, que obedece ao chefe, mas não quer apertar o gatilho.
O “morto” empreende tentativa de fuga, é recapturado e preso numa minúscula gaiola. Tenta dizer que não é quem eles pensam que ele seja. Ninguém ali é muito de falar. Pouco, ou melhor nada, saberemos da história pregressa de Mário (mesmo nome do craque argentino). A Copa do Mundo está em seus momentos decisivos. Os “coveiros” querem ouvir o jogo, mas o rádio de pilha da “base-casebre” está com a antena avariada. O “morto” aprendeu, com o pai, noções rudimentares de eletrônica e soluciona o problema com uma eficiente gambiarra.
Um técnico-militar fardado e um recruta armado com grosso calibre chegam para reparar o serviço de rádio-amador que coloca Pastor em contato com os comandantes militares. Aqueles que o incumbem de dar sumiço nos corpos. O suspense aumenta. Um filme de homens, que matam, enterram e ocultam a história. Só um corpo feminino aparecerá em breve instante, sendo enterrado. Uma guerrilheira? Uma indígena?
No debate on-line, Hugo, Enre, Aníbal e a produtora Gabriela Sabaté falaram do filme e de suas propostas. O diretor lembrou que não foram só os militantes políticos os caçados e assassinados pela ditadura Stroessner. “Houve também perseguição aos Guarani” – detalhou –, “povo essencial em nossa formação multicultural. O idioma difundido era o espanhol. A cultura guarani era desprezada”. Por isso, ele fez questão de ter dois protagonistas guarani, que falam guarani entre si. Só usam o espanhol para comunicar-se com os superiores (via rádio) e com o “morto” de camisa vermelha, esse sim, vindo (decerto) de Assunção ou de outro centro urbano.
Aníbal Ortiz, de 36 anos, contou que vem do interior do país e pouca convivência teve com o período ditatorial (o general Alfredo Stroessner caiu em 1989, quando o futuro ator tinha cinco anos). Bilíngue, o guarani é sua língua originária. E foi ele quem ajudou o hispano-hablante Enro Enciso a encontrar a coloquialidade no uso do idioma primeiro do Paraguai.
A ausência de mulheres na trama foi defendida por Giménez. “Sou muito rigoroso em meus filmes. Não posso alterar a história e os personagens para atender a uma reivindicação de representatividade. Se fizesse isso, estaria sendo desonesto. Houve, sim, mulheres que fizeram oposição à ditadura Stroessner, tanto que o corpo de uma delas é enterrado de forma clandestina em ‘Matar a un Muerto’. Mas o relato que fazemos é de homens, militares, “coveiros” que a eles prestavam serviço e um único prisioneiro vivo”.
Gabriela Sabaté contemporizou lembrando que, se não havia mulheres entre os personagens do filme, havia muitas na equipe técnica e na produção, área liderada por ela.
“Aos Pedaços”, décimo-sexto longa-metragem do diretor, roteirista, ator (inclusive de Werner Herzog), dramaturgo, compositor e professor Ruy Guerra, é um filme-enigma. Para frui-lo, o espectador deve abrir os olhos a experiências novas e desafiadoras. Se, com “Ópera do Malandro”, o moçambicano (radicado no Brasil desde 1958), desconstruiu os cânones do “filmusical” hollywoodiano, com “Aos Pedaços”, ele desconstruiu os alicerces do filme “noir”.
A sinopse do novo longa de Ruy – fotografado em preto-e-branco (como os bons “genre noir”, ou “polar”) pelo craque Pablo Baião – é enxuta e misteriosa: “Eurico Cruz (Emilio Mello) amanhece irritado. Um bilhete, assinado por A., lhe anuncia sua morte. Ao procurar saber quem o ameaça, embaralham-se os espaços, as personagens, seus ódios, amores e suspeitas”.
Durante 90 e poucos minutos, além de Eurico, conviveremos com duas mulheres, Ana (Simone Spoladore) e Anna (Christiana Ubach), louras platinadas, idênticas às “femme-fatale” de tantos “noir”. E com um pastor evangélico (Júlio Adrião), que não larga sua Bíblia Sagrada nem sua pesada retórica religiosa. Num aquário, vemos uma lagosta.
No debate on-line do filme, do qual Ruy Guerra participou ao lado dos atores Simone Spoladore (direto da Suíça) e Emilio de Mello, da produtora Janaína Diniz Guerra e do fotógrafo Pablo Baião, o diretor de “Os Fuzis” narrou a ideia originária do filme: “Estava em Havana realizando a série “Me Alquillo para Soñar’, texto de Gabo (Gabriel García Márquez), o maior dos mentirosos, e usávamos um antigo casarão como cenário. Alguém da equipe me contou que aquela casa pertencera a um comerciante das Ilhas Canárias, que negociava tabaco. Um dia, ao apaixonar-se por uma cubana, resolveu construir para ela casa idêntica à da esposa espanhola”.
Ruy não pediu mais informações aos cubanos. Mas a ideia de um homem que amava duas mulheres e as mantinha como esposas em continentes diferentes, em casas idênticas, nunca mais saiu de sua cabeça. Elaborou e reelaborou a trama, até chegar ao labiríntico “Aos Pedaços”. Um filme para quem gosta de decifrar um verdadeiro quebra-cabeça.
O cineasta e roteirista forneceu boa pista aos participantes do debate: Eurico Cruz sofre de “síndrome dissociativa de identidade”, uma forma de esquizofrenia. Portanto, tudo que ele vê ou sente, pode ser fruto de seus delírios. Tomado de assalto pela ideia de que o “A.” do bilhete veio de Ana ou Anna, ou seja, de uma de suas mulheres, ele entra em parafuso. Passa a carregar a certeza de que uma delas quer matá-lo. E seu irmão, pastor que não larga a Bíblia? Ele existe? Ou é uma projeção do ego fragmentado de ‘EUrico’ (o nome original do personagem seria Adamastor, mas foi trocado por causa do EU-Ego)?
“Aos Pedaços” tem o clima de sonho (ou pesadelo) que vimos no escuro e atmosférico “Veneno da Madrugada”. E também, em “Estorvo”. Até mesmo em “Quase Memória”. O cineasta parece distante dos filmes político-sociais que o consagraram (“Os Fuzis” e “A Queda”). E até do poderoso, intimista e transgressor “Os Cafajestes”, seu maior sucesso comercial, um filme que deixou a Igreja Católica em estado de fúria, e o público, em polvorosa com a nudez escultural de Norma Bengell. Aliás, num fugidio instante, Anna caminha por uma praia e a “nudez” é evocada. Outra evocação, igualmente fugidia, nos leva ao Ingmar Bergman de “Persona” (1966) e “A Paixão de Ana” (1969).
Será que Ruy Guerra é tão mentiroso quanto o amigo García Márquez? Afinal, no debate on-line, ele jurou nada saber de psicanálise. “Sou um analfabeto nesse assunto, nunca me dediquei a esse ramo do conhecimento, nunca o estudei”. Contou que era amigo da psicanalista Ines Besouchet, “pessoa muito calada, que ouvia muito e só falava quando estava com os pacientes”. Um dia, ela concluiu que “Ruy Guerra nascera psicanalizado em dez segundos”.
Pablo Baião, em seu terceiro trabalho com Ruy Guerra, destacou o prazer de trabalhar com artista tão inquieto e criativo. Citou Augusto Boal – a criação artística nos “leva à beira do abismo e nós resolvemos dar um passo além” – para dizer que é assim que se trabalha com Ruy. “Ele quer sempre mais um passo, quer que a gente se jogue”. Nas conversas no set de “Aos Pedaços”, Baião argumentou, certa vez, com o cineasta: queria usar determinada solução “noir” para tal cena. “Por que?”, perguntou Ruy. “Porque acho bonito”.
O cineasta contra-argumentou: “Isso não é resposta”. Para avisar que “tem gente que faz filme como se escrevesse uma carta, eu faço filme como se escrevesse um testamento”.
Janaína Diniz Guerra externou sua satisfação em ver um filme autoral na competição de Gramado. E exibido na televisão, para público amplo. “É fundamental” – agregou – que “filmes que fujam da matéria pronta, do formatado, tenham seu espaço”. E agradeceu aos parceiros que ajudaram a viabilizar o projeto: “um Edital do extinto MinC, destinado a filmes experimentais, o Polo Audiovisual da Zona da Mata, em Cataguases-MG, e a Secretaria de Cultura de Maricá, no litoral fluminense”. Se “Os Cafajestes” foi rodado nas praias de Arraial do Cabo, “Aos Pedaços” escolheu Maricá. “Necessitávamos de locação que nos fornecesse praia e “deserto” (dunas) ao mesmo tempo”.
Os dois curtas da noite foram, ambos, muito bons. Os cariocas Tatiana Issa e Guto Barra construíram cativante retrato de “Dominique”, transexual paraense, que começou a tomar hormônio aos 13 anos, deixou seu estado natal para prostituir-se em São Paulo e ajudou dois irmãos a, também, fazerem a transição. Narradora privilegiada, dona de coloquialidade reveladora, ela é dotada de imaginário único e de compreensão luminosa da vida de uma trans ou travesti.
Já começa nos aliciando, no melhor sentido da palavra, ao lembrar que, sentindo-se mulher em corpo de homem, ouvia dizer que quem passasse sob o arco-íris, se transformaria. Correu atrás de muito arco-íris. Como não encontrou solução para seu maior desejo sob as cores desse fenômeno da natureza, recorreu aos hormônios. Quando começou a ouvir dizer que o filho era gay, a mãe implorou: “meu filho, pelo amor de Deus, diga que isso é mentira”. Contou a verdade. E a mãe acabou aceitando. Hoje, além de Dominique, que vive com ela numa pequena ilha fluvial paraense, Dona Deca tem mais dois filhos, que viraram filhas, e estão fazendo a vida na Itália.
O que fortalece o filme, além da capacidade narrativa de Dominique, grande contadora de histórias, é a franqueza com que ela revela as “zonas de sombra”: “somos discriminadas, apanhamos da polícia, vivemos em maioria absoluta da prostituição, pois ninguém quer ter uma travesti no caixa de um banco, no escritório ou na sala de aula”. Para contar do estranhamento, entre as próprias travestis, ela inclusive, quando se deparam com uma trans que tem barba”. Temos que ser compreensivas, admite. “Como é que vamos discriminar uma pessoa que fez a transformação aos 40 anos? Claro que ela vai ter barba. Não será como eu, que comecei a tomar hormônio na adolescência”.
Janaína Oliveira Refém e Rodrigo Dutra, da Baixada Fluminense, fizeram de “Joãosinho da Goméa – O Rei do Candomblé”, um documentário enriquecido pela leveza e beleza da performance do ator Átila Bezerra. Sólida pesquisa sobre o baiano João Alves de Torres Filho, nascido em 1914, em Inhambupe, nos será apresentada de forma aliciadora.
O menino Joãosinho sentia terríveis dores de cabeça e via os olhos cercados de enormes manchas pretas. Os médicos receitavam remédios, mas a cura não vinha. Encontrou solução num terreiro de candomblé e descobriu sua mediunidade. Mudou-se para Duque de Caxias, no estado do Rio, e lá construiu sua trajetória como pai de santo. Até atuou, com Helena Ignez, num filme de Rogério Sganzerla (“Copacabana mon Amour”, 1970). Criou elaborados figurinos em honra às entidades do candomblé, foi preso diversas vezes, acusado de “feitiçaria”. Um por virulento artigo da Tribuna da Imprensa lacerdista, em 1952, o desancou com pesada e discriminatória adjetivação. Apaixonou-se pelo Carnaval e a ele se entregou com muita alegria. “Ocupei meu lugar no mundo”, diria, “sou ou não sou o rei do candomblé?”.
O pai de santo morreu em Duque de Caxias, em 1971, com apenas 56 anos de idade. Em 2014, seu centenário de nascimento foi comemorado na Baixada Fluminense e sua obra religiosa-comunitária-e-carnavalesca tornou-se objeto de muitos estudos universitários. Na cidade que o abrigou (e também em sua terra natal, na Bahia), ele é muito reverenciado. Duque de Caxias mantém o Galpão Criativo Goméa, que mobiliza a comunidade que o circunda, incentivando-a, inclusive, a plantar hortas, nos moldes das que ele cultivava.
No debate on-line do filme, o cineasta Rodrigo Dutra, historiador de formação, contou que deixou as salas de aula para tornar-se documentarista interessado em registrar micro-histórias das periferias do Rio de Janeiro, em especial da Baixada Fluminense. E que o filme foi feito com recursos de Edital do Estado, destinado à “territorialização dos orçamentos”. Houve, a nível federal, processo de “regionalização da produção”. Agora, estamos atento à distribuição de recursos também nos pequenos municípios e nas grandes periferias.
Janaíma, por sua vez, está fazendo mestrado na UFF, e sua dissertação versa sobre “O Cinema Dirigido por Mulheres Negras no Rio de Janeiro”. Ela trabalha, também, no roteiro de seu primeiro longa ficcional. Trata-se de “projeto para daqui a dois ou três anos”. Para arrematar: “nosso filme é tributário de ‘Alma no Olho’, obra seminal de Zózimo Bulbul. Entendemos que o papel de Joãosinho da Goméa, ao levar o candomblé para os teatros, é similar à importância de Zózimo, que, com seus filmes, abriu caminhos para nós, cineastas de pele preta”.