Solanas morre em Paris, vítima de Covid-19

Por Maria do Rosário Caetano

O cineasta Fernando Solanas, diretor de clássicos como “La Hora de los Hornos”, “Tangos, o Exílio de Gardel”, “Sur”e “Memoria del Saqueo”, morreu na madrugada desse sábado, 7 de novembro, em Paris, onde exercia o cargo de embaixador da Argentina junto à Unesco. Foi vítima da Covid-19, mal que acometeu a ele e à esposa, a atriz brasileira Ângela Corrêa Solanas, sua companheira há 28 anos. Ela se recupera hospitalizada.

A chancelaria argentina, em nome do Governo Alberto Fernández-Cristina Kirchner, soltou nota de pesar pela morte do cineasta e embaixador: “Grande dor por Pino Solanas. Morreu no cumprimento de seus deveres como embaixador da Argentina junto à Unesco. Será lembrado por sua arte, por seu compromisso político e por sua ética sempre a serviço de um país melhor”.

Ex- senador da República argentina, Fernando “Pino” Solanas tinha 84 anos. Trabalhou incansavelmente como cineasta, político (foi candidato derrotado à presidência da Argentina pela Frente Sur) e diplomata. Um de seus últimos filmes, “O Legado”, revisitou a obra de Juan Domingo Perón (1895-1974), duas vezes presidente da Argentina (por nove anos, de 1946-1955 e, por breve período, 1973-1974). Peronista de esquerda, Fernando Ezequiel Solanas dedicou vários filmes ao mais famoso e controvertido dos políticos argentinos.

Com “O Legado”, o cineasta recuperou trechos de conversas mantidas com o ex-presidente Perón durante exílio em Madri. As conversas, gravadas em 1971, já haviam rendido dois longas documentais: “Perón: Actualización Política y Doctrinaria para la Toma del Poder” e “Perón: la Revolución Justicialista”.

Solanas estreou no longa-metragem com filme realmente longuíssimo: “La Hora de los Hornos – Notas y Testemonios Sobre el Colonialismo, la Violencia y la Liberación” (1968). Realizado em parceria com Octávio Getino, seu colega no coletivo Cine Liberación, “A Hora dos Fornos” dura mais de quatro horas. O filme transformou-se em clássico do documentário latino-americano e correu festivais mundo a fora. Na Argentina, tornou-se peça de resistência na programação de cineclubes e sindicatos. Prova de sua importância é o fato de figurar na lista “50 maiores documentários de todos o tempos”, elaborada pelo BFI (Instituto Britânico de Cinema) e pela revista Sigth & Sound, poucos anos atrás. Nessa lista, há que se registrar, a presença de filmes do subcontinente é rara (o Brasil está ausente e só o chileno Patricio Guzmán conquistou duas vagas, com “A Batalha do Chile” e “Nostalgia da Luz”).

O filme seguinte de Solanas, “Los Hijos de Fierro”, era uma ficção de pegada documental, recriação livre e contemporânea do poema “Martin Fierro”, de José Hernández, protagonizada por atores não-profissionais.

No exílio francês, Solanas realizou “Le Regard des Autres” (“O Olhar dos Outros”), documentário sobre crianças portadoras de deficiência. Cinco anos depois, viria seu filme mais famoso, o filmusical “Tangos, o Exílio de Gardel”, Prêmio Especial do Júri no Festival de Veneza.

Delirante e sonhador, “Tangos” arrebatou plateias e compradores em dezenas de mercados e motivou críticas entusiasmadas na Europa e América Latina. O crítico italiano Tulio Kezich definiu o novo gênero cinematográfico criado por Solanas – a ‘tanguédia’, ousada mistura de tango, tragédia e comédia, para concluir: “Solanas realizou o mais belo musical de todos os tempos”.

Em dezembro de 1985, menos de três meses depois do triunfo em Veneza, “Tangos, o Exílio de Gardel” conquistava o Gran Coral Negro, prêmio máximo do Festival do Novo Cinema Latino-Americano de Havana, dividido com o também formidável “Frida, Natureza Viva,” de Paul Leduc. Na trilha sonora da “tanguédia” argentina, estava Astor Piazzolla, que também conquistou o seu Prêmio Coral.

O argentino Carlos Gardel (1890-1935) nunca viveu no exílio. Esta experiência foi vivida pelo diretor do filme. Pino Solanas lançou, claro, mão de intencional e onírica liberdade poética ao reunir um grupo de exilados argentinos, em Paris, para montar espetáculo teatral capaz de denunciar a ditadura em seu país natal e, de quebra, lhes garantir a subsistência cotiana. Composta de atos, a peça dentro do filme soma números de dança, música e a dor do exílio. A trilha sonora de Piazzolla (1921-1992), com contribuições de Castiñera de Diós e do próprio Solanas, resultou arrebatadora e ultrapassou sua função original. Fez sucesso fora do celuloide.

Fernando Solanas contou, em Gramado, quando recebeu o Kikito de Cristal, láurea atribuída a grandes nomes do cinema latino-americano, que seu sonho era ser músico, compositor. Estudou música seriamente. O cinema, porém, assumiu o primeiro plano e a música tornou-se atividade esporádica. Dele, Caetano Veloso gravou, no CD “Fina Estampa”, a canção “Vuelvo al Sur” (melodia de Piazzolla, letra de Solanas).

Solanas com o Kikito no Festival de Gramado

Para somar cinema e música, ele realizou, também, “Sur”. “Com Tangos, o Exílio de Gardel” – contou em Gramado 2015 – “um filme ambientado em Paris, mostrei o exílio visto de fora”. Já em “Sur”, “vemos o exílio interior, o sentir-se deslocado em seu próprio país”. Por isso, “uma característica que chama atenção em ‘Sur’ é que os números de tango são cantados no meio da rua, algo totalmente inusual e que causou controvérsia entre os tradicionalistas”. Aliás – lembrou – “os tradicionalistas já haviam questionado também o exílio irreal de Gardel”. E isso aconteceu porque “os aferrados à tradição não entendem a transgressão dos sonhos”. “Sur” rendeu a Solanas, em 1988, a Palma de Ouro de “melhor direção” em Cannes.

“Tangos, o Exílio de Gardel” e “Sur” são os paradigmas do que Pino Solanas elaborou como projeto cinematográfico. Inspirado na ‘Terceira Via’ política proposta por Perón, ele criou a ‘Terceira Via Cinematográfica’. Em 1993, ele explicou, no Memorial da América Latina, em que consistia seu projeto: “trata-se de caminho que investe no poético, nas histórias abertas, na recusa do cinema industrial com suas tramas prontas, com suas fórmulas, suas trucagens e feitos especiais. Não acredito em personagens só bons ou maus. Estou cansado de justiceiros, de narrativa que, no início, apresenta o protagonista e o antagonista e, em seguida, joga o espectador numa montanha russa de emoções previsíveis. Esse tipo de cinema não permite ao receptor um minuto sequer de reflexão. Ele não tem tempo de ver o que lhe passa pelas costas. Para mim, é por trás da trama que está o mais lindo, o realmente poético. Nós, na vida real, não vivemos só de peripécias. Estou cansado do hiper-realismo, de coisa mastigada. Os cineastas europeus são mais cartesianos que nós. Não entendem nossas liberdades, nossos sonhos, nossos delírios”. Por isso, ele trilhou, com seus filmes, “um caminho que não copiava o modelo narrativo hegemônico, o hollywoodiano, nem o cinema de autor europeu”.

No começo dos anos 1990, Solanas realizou sua primeira e única parceria com o Brasil: “El Viaje”, um road-movie coproduzido pela Raiz Filmes, de Assunção Hernandez. O filme vai da Patagônia até a América Central, passando pelo território brasileiro. Entre seus atores, estava a brasileira Ângela Corrêa, protagonista da série “Escrava Anastácia”, da TV Manchete. Os dois se apaixonariam durante as filmagens e viveriam juntos até a morte do cineasta.

A partir de 2004, Solanas dedicou-se à política partidária e ao cinema documental. A repercussão de “Memoria del Saqueo”, obra que deu início à série “Crónicas de la Causa Sur”, sintetizou sua obra em apenas cinco ficções e 15 longas documentais.

Jean-Claude Bernardet, estudioso da imagem do povo (operários, camponeses, populações periféricas) no cinema documental, gosta de frisar que cineastas brasileiros não costumam enfrentar três temas: o poder financeiro, o poder midiático e as Forças Armadas. Quando assistiu ao primeiro longa da série “Crónicas de la Causa Sur” (“Memória do Saque”), Bernardet constatou que Pino Solanas enfrentava, com rara coragem, o poder financeiro (dos bancos e grandes empresários) e a mídia (as grandes redes de TV, em especial).

Um acontecimento brutal e decisivo na história argentina levou Solanas a conceber a série “Crônicas da Causa Sul”: em dezembro de 2001, a crise financeira derrubou o presidente Fernando de la Rua. Assumiu em seu lugar o então presidente do Senado, Ramon Puerta (que permaneceu no cargo apenas 48 horas). O Congresso elegeu, então, Adolfo Rodriguez Saá (mas este governou por apenas sete dias). As duas casas que compõem o Parlamento escolheram, por fim, Eduardo Duhalde, que assumiu governo de transição. Só em março de 2003, o país elegeria, pelo voto direto, o novo presidente, Nestor Kirchner (1950-2010), que tomaria posse em 25 de maio de 2003 e completaria seu mandato em dezembro de 2007.

Solanas viveu de perto os meses do grande tumulto, aqueles em que a Argentina teve quatro presidentes interinos. Graças aos leves equipamentos digitais, foi para as ruas documentar a rebelião popular. Todo o material recolhido deu origem a “Memoria del Saqueo”, o primeiro dos dez longas-metragens que compõem esse rico inventário da Argentina Contemporânea.

 

FILMOGRAFIA
FERNANDO 
SOLANAS (1936-2020)

1968 – “La Hora de los Hornos – Notas y Testemonios Sobre el Colonialismo, la Violencia y la Liberación”, parceria com Octavio Getino (doc)
1972 – “Los Hijos de Fierro” (ficção)
1980 – Le Regard des Autres (doc)
1985 – “Tangos, o Exílio de Gardel”, Prêmio Especial do Juri no Festival de Veneza – ficção
1988 – “Sur – Amor e Liberdade”, Palma de Ouro de “melhor direção” em Cannes (ficção)
1992 – “El Viaje” (ficção – Argentina-Brasil)
1998 – “A Nuvem” (ficção)
2016 – “O Legado” (doc) – Dedicado à memória de integrantes do Grupo Cine Liberación: Gerardo Vallejo (1942 – 2007) e Octavio Getino (1935-2012)

Série “Crónicas de la Causa Sur”:
2004 – Memorias del Saqueo – doc
2005 – “La Dignidad de los Nadies” – Registro, em contraponto aos tempos do saque, o filme mostra como os “joão-ninguém” se organizaram para “enfrentar a crise comandada pelos dignatários neo-liberais”. Soma de dez histórias de solidariedade
2007 – “Argentina Latente” – Também de caráter positivo, destaca o papel das universidades e dos cientistas na construção do país, mesmo em tempos de poucos recursos e de muitas privatizações
2008 – “ La Proxima Estación” – Radiografia da “tragédia social provocada pela privatização da malha ferroviária” argentina. No começo dos anos 1990, com a promessa de que o sistema “ferrocarril” seria modernizado, a Argentina assistiu “ao desmantelamento de 80% de suas estradas de ferro, deixando pequenos povoados no mais completo isolamento e provocando leva de migração para as grandes cidades”
2009 – “Tierra Sublevada – Oro Impuro” – Dedicado às jazidas auríferas existentes nas cordilheiras do noroeste do país, entregues, na década de 1990, às transnacionais pelo Governo de Carlos Menem
2010 – “Tierra Sublevada – Oro Negro” – Registro da privatização da YPF , a “petrobrás” argentina, e da Empresa de Gás do Estado, “seguindo plano desenhado pelo FMI e pelo Banco Mundial”
2013 – “La Guerra del Fracking” – Análise do impacto social e ambiental de métodos como o “fracking” (fraturamento hidráulico), usado para obter petróleo por vias não-convencionais

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