“À Meia Voz”, dirigido por duas cineastas, vence Cine Ceará
Por Maria do Rosário Caetano
O longa documental “À Meia Voz”, dirigido por Patrícia Pérez Hernández e Heidi Hassan, cubanas radicadas na Europa, venceu a trigésima edição Cine Ceará – Festival de Cinema Ibero-Americano de Fortaleza, encerrado na noite da última sexta-feira. Além do principal Troféu Mucuripe, o filme receberá prêmio no R$20 mil, que devem, pelo regulamento, serem investidos em sua distribuição em cinemas brasileiros.
Wolney Oliveira, diretor do Cine Ceará, destacou o valor estético do documentário premiado e deu ênfase ao fato de as laureadas serem duas mulheres cineastas. Afinal, justificou, “somos o primeiro festival brasileiro a reservar 30% das vagas de nossas principais mostras competitivas a filmes dirigidos por mulheres”.
O júri, de recorte ibero-americano, valorizou mais dois filmes com significativa quantidade de troféus Mucuripe: a ficção chilena “Branco no Branco”, com quatro láureas (incluindo melhor direção) e o documentário “Era Uma Vez na Venezuela”, de Anabel Rodrígues Ríos, com dois (roteiro e fotografia).
Um filme brasileiro, “A Morte Habita à Noite”, e um argentino, “As Boas Intenções”, tiveram seus atores premiados. O brasileiro Roney Villela recebeu seu Troféu Mucuripe com muita emoção. Afinal, em sua longa carreira no cinema (mais de 30 filmes) só desempenhou papeis coadjuvantes. Foi reconhecido por seu primeiro protagonista.
A jovem adolescente argentina Amanda Minujín conquistou o Mucuripe de melhor atriz por seu delicado trabalho em “As Boas Intenções”.
As escolhas do júri oficial foram justas e equilibradas. “À Meia Voz” chegou ao Cine Ceará já cercado de reconhecimento. Vencera, inclusive, o IDFA, o Festival de Documentários de Amsterdã, o maior e mais respeitado do mundo. Com poesia visual e narrativa confessional, Patrícia Pérez Hernández e Heidi Hassan, a primeira radicada na Espanha, e a segunda, na Suíça, relembram amizade que as uniu, desde a infância, em Cuba, onde nasceram e cresceram. Separadas por exílio voluntário, as duas, que faziam cinema em Havana, foram viver distantes uma da outra. No filme, elas se reaproximam trocando cartas, relembrando o passado cubano, as dificuldades enfrentadas e a luta para seguirem no ofício cinematográfico em seus novos países. Afinal, chegaram a eles, primeiro, como imigrantes ilegais, depois, como cidadãs reconhecidas.
Ao receber, virtualmente, o prêmio, Patrícia lamentou não estar no Brasil. Afinal, ponderou, “vivemos tempos de pandemia que não nos recomendam viagens”. Por fim, Patrícia deu seu apoio aos “artistas que, em Cuba, estão mobilizados em defesa da liberdade de expressão e manifestação”.
Os quatro prêmios da ficção chilena “Branco no Branco” foram muito merecidos. Drama de época, sem nenhum ranço passadista, o filme se passa na Terra do Fogo, no extremo sul do continente. Um homem poderoso, Mr. Potter, de origem anglo-saxã, encomenda a um fotógrafo (interpretado pelo grande Alfredo Castro), fotos de uma pré-adolescente. A menina será a esposa do dono de terras e vidas (no caso, a dos indígenas Selk’nam, povo originário da região). Além de registrar casamento arranjado de menina pré-adolescente, “Branco no Branco” (o branco da neve, o branco do vestido da menina que posa vestida de noiva), o filme mostra as consequências da hegemonia econômico e política europeia no Novo Mundo. O idioma do povo originário da Terra do Fogo foi extinto. E sobraram tão poucos Selk’nam, que, para interpretar os nativos de seu filme, o cineasta teve que recorrer a indígenas bolivianos. O filme chegou ao Cine Ceará bem-recomendado: com prêmio na Mostra Horizonte, de Veneza, e Prêmio Fipescri (Federação Internacional de Críticos de Cinema).
Théo Court, eleito o melhor diretor do Cine Ceará, constrói sua narrativa em clima claustrofóbico, com jogo de luz quase fantasmagórico e dá a Alfredo Castro, mais uma grande papel para enriquecer sua bem-sucedida trajetória de maior nome do cinema chileno contemporâneo. Mas – registre-se – não houve injustiça na opção pelo brasileiro Roney Villela para melhor ator. O colegiado quis apostar na confirmação do talento de um ator que soube interpretar papel dos mais difíceis: o de um homem entregue ao álcool.
O longa documental “Era Uma Vez na Venezuela”, dirigido por Anabel Ríos e indicado para representar seu país na disputa por vaga no Oscar internacional, narra de forma polifônica a situação dos 800 habitantes de um povoado lacustre (palafitas plantadas no Lago de Maracaibo), em rica zona petrolífera. A cineasta, que deixou seu país e vive na Áustria, acompanha eleição parlamentar vencida pela oposição ao Governo Maduro, sucessor de Hugo Chávez. Acompanha, também, o definhamento de Congo Mirador, o povoado que foi perdendo seus habitantes, atormentados pela sedimentação de resíduos e pela poluição das águas.
A cerimônia de premiação foi gravada no palco Theatro José de Alencar, iluminado com esmero e beleza, e transmitida para o telão do Cine São Luiz, palco da sessão de encerramento, que contou com homenagem ao ator Lázaro Ramos e exibição de filme protagonizado por ele, “O Silêncio da Chuva”, de Daniel Filho. Lázaro agradeceu ao prêmio com humor e alegria. E leu texto do encenador baiano Márcio Meirelles, que o formou, ainda adolescente, nas criações do Bando de Teatro Olodum, e hoje orgulha-se do discípulo. Um grande ator. E não apenas um talentoso ator negro.
Confira os vencedores:
LONGA IBERO-AMERICANO
. “A Meia Voz”, de Patricia Pérez Hernádez e Heidi Hassan (Cuba, Espanha) – melhor filme, montagem (Heidi Hassan, Patricia Pérez e Diana Toucedo)
. “Branco no Branco”, de Theo Court (Chile) – melhor direção, trilha sonora (Jonay Armas), direção de arte (Amparo Baeza) e som (Carlos García)
. “Era Uma Vez na Venezuela”, de Anabel Rodríguez Ríos – melhor roteiro (Anabel Rodríguez Ríos e Sepp Brudermann), fotografia (John Márquez), Prêmio da Crítica-Abraccine
. “As Boas Intenções”, de Ana García Blaya (Argentina) – melhor atriz (Amanda Minujín)
. “A Morte Habita à Noite”, de Eduardo Morotó (Brasil) – melhor ator Roney Villela
CURTA-METRAGEM BRASILEIRO
.“Não Te Amo Mais”, de Yasmin Gomes (Ceará) – melhor filme
. “A Volta para Casa” (São Paulo) – Diego Freitas (melhor direção)
. “A Beleza de Rose”, de Natal Portela – melhor roteiro, Troféu Samburá de melhor direção
. “O Barco e o Rio” (Amazonas” – Prêmio da Crítica-Abraccine, Prêmio Samburá de melhor curta-metragem
. “5 Estrelas”, de Fernando Sanches – Prêmio Aquisição Canal Brasil
MOSTRA OLHAR DO CEARÁ
. “Cabeça de Nêgo”, de Déo Cardoso – melhor filme
. “Noite de Seresta”, de Sávio Fernandes e Muniz Filho – melhor direção, Prêmio Unifor de Audiovisual
. “Terceiro Dia”, de Jéssica Queiroz – Prêmio Olhar Universitário
. “Rio de Vozes”, de Andrea Santana e Jean-Pierre Duret – Prêmio Enel de Sustentabilidade
. “Trajetória”, de José Walter Brilhante Júnior – Prêmio Cagece na Mostra Hábitos