Mostra de Cinema Gostoso troca praia paradisíaca pelo espaço digital
Por Maria do Rosário Caetano
Se há um festival brasileiro que valoriza sua paisagem física – a Praia do Maceió, no ensolarado litoral potiguar –, ele tem nome e endereço: Mostra de Cinema de Gostoso, realizada anualmente no pequeno município de São Miguel do Gostoso. Pois esse ano, por causa da pandemia do coronavírus, o festival mais badalado do Rio Grande do Norte também acontecerá no espaço digital.
O evento trocará, portanto, seu cinema de 500 lugares, montado nas areias da praia, sob a luz das estrelas (e da lua), pela luz azulado-metálica da TV (o acesso se fará pelo innsaei.tv).
Antigo vilarejo hippie, São Miguel do Gostoso, de apenas 10 mil habitantes, assiste, há quase uma década, verdadeira efervescência cinematográfica. Graças a oficinas e cursos ministrados por profissionais convidados pela mostra, a produção local já soma acervo de dezenas de curtas-metragens (alguns já premiados em festivais nacionais). Todos, registre-se, foram gerados pelo Núcleo Nós do Audiovisual, coletivo dos mais atuantes.
Dessa quarta-feira, 10, até domingo, 14, a sétima edição do festival, organizado pelos cineastas e produtores Eugenio Puppo e Matheus Sundfeld, apresentará 34 filmes de curta, média e longa-metragem, três masterclasses, oficinas e laboratório de novos projetos.
Ismail Xavier, pesquisador e professor da USP, ministrará masterclass sobre seu livro “Sétima Arte, um Culto Moderno: o Idealismo Estético e o Cinema”, escrito em 1978, e reeditado pela Sesc Editora, há três anos. Em seu estudo, o pesquisador uspiano analisa a afirmação do cinema como forma de arte e o por quê de sua acolhida, pelos modernos, como uma linguagem de expressão artística fundamentalmente moderna.
A Mostra de Gostoso terá, nessa edição online, a preservação da memória audiovisual brasileira como eixo temático. Por isso, prestará tributo à Cinemateca Brasileira, que vive sua maior crise. Eugenio Puppo, autor de filmes de arquivo como “Ozualdo Candeias e o Cinema”, faz questão de lembrar que “a instituição guarda o maior acervo audiovisual da América do Sul e zela por mais de 250 mil rolos de filmes”.
À mostra principal do festival potiguar – a de longas brasileiros contemporâneos –, a curadoria acrescentou segmento que trará filmes do passado, em especial, títulos marcantes na trajetória dos jovens realizadores brasileiros selecionados. Caso de “Vidas Secas” (Nelson Pereira dos Santos, 1963), escolhido pelo baiano Isaac Donato, autor de “Açucena”, vencedor, em janeiro último, da Mostra de Cinema Tiradentes e, agora, programado pela Mostra de Gostoso. Além deste documentário de construção híbrida, o segmento Mostra Nacional exibirá mais cinco longas-metragens realizados nos dois últimos anos.
Muitos nomes femininos destacam-se no comando dos títulos selecionados: “Cidade Correria”, de Juliana Vicente (RJ), “Antena da Raça”, de Paloma Rocha e Luis Abramo (DF), “Nũhũ yãg mũ yõg hãm: essa Terra é Nossa!”, de Isael Maxakali, Sueli Maxakali, Carolina Canguçu e Roberto Romero (MG), “Até o Fim”, de Glenda Nicácio e Ary Rosa (também vindo da Bahia), e “Cavalo”, de Rafhael Barbosa e Werner Salles (Alagoas). Dez curtas contemporâneos complementam essa mostra do festival.
Títulos pouco vistos, mas fundamentais para a memória do audiovisual brasileiro, serão apresentados pela Mostra de Gostoso. Caso dos primeiros filmes de Carlão Reichenbach e parceiros na produtora Xanadu, que se somarão a três longas realizados sob o impacto de “Terra em Transe” (“Vida Provisória”, “O Bravo Guerreiro” e “Dezesperato”). E, no tocante à “prata da casa”, será apresentada raridade potiguar – o longa “Boi de Prata”, de Augusto Ribeiro Jr (1949-1995). Ex-aluno do curso de Cinema da UnB, o cineasta e sua obra acabam de ganhar estudo de nome dos mais arregimentadores: “Boi de Prata – A Estreia do Sertão do Seridó no Cinema Terceiro-Mundista Brasileiro”. A autora, Flávia Assaf, realizou seu estudo como dissertação de mestrado defendida no Ceres (Centro de Ensino Superior do Seridó).
O único longa de Ribeiro Jr, que morreu cedo (aos 45 anos), foi produzido em 1976, mas só finalizado e mostrado (apenas em pré-estreias), em 1981. Portanto, há exatos 40 anos. Além de importância regional, “Boi de Prata” carrega em seus créditos dois nomes essenciais à história do cinema brasileiro: a atriz gaúcha Luiza Maranhão (“Barravento”, “Assalto ao Trem Pagador”) e o diretor de fotografia Walter Carvalho (o paraibano-carioca, que, além de fotógrafo, dirigiu “Raul, o Início, o Meio e o Fim”, “Budapeste” e “Brincante”).
“Boi de Prata” foi o primeiro longa-metragem de Walter como diretor de fotografia-e-câmera e o último de Luiza Maranhão realizado no Brasil. Depois dele, a atriz gaúcha (que todos têm por baiana) faria trabalhos esporádicos na TV e se fixaria na Itália, onde priorizou sua carreira como cantora.
A trama do filme de Ribeiro Jr, um dos primeiros longas-metragens produzidos no estado do Rio Grande do Norte, com diretor potiguar, situa-se na zona rural de Caicó. Eloy Dantas, filho de rico fazendeiro, ao retornar de temporada de estudos na Europa, planeja implantar empresa de mineração (está em busca de ouro e xelita) no sertão. O sítio de outro personagem, Antônio Vaqueiro, que viu seu último boi morto pelas agruras da seca, localiza-se em área cobiçada pelo empreendedor.
Na tentativa de salvar sua pequena propriedade, o Vaqueiro recorre a Maria dos Remédios, uma curandeira-cigana, e a Tião Poeta, artista sonhador. O mito do boi de prata, alimento do imaginário sertanejo, será a “arma” do sitiante contra o minerador.
A lista dos outros filmes que serão exibidos na sétima edição da Mostra de São Miguel do Gostoso segue abaixo. Entre os curtas, além de quatro produções potiguares, há que se destacar “A Morte Branca do Feiticeiro Negro”, do catarinense Rodrigo Ribeiro, e “4 Bilhões de Infinitos”, do mineiro Marco Antônio Pereira. Quem ainda não os assistiu, não sabe o que está perdendo.
Mostra Nacional – Curtas-metragens
. “Casa com Parede”, de Dênia Cruz (RN)
. “Mestre Marciano”, de Igor Ribeiro e Rubens dos Anjos (RN)
. “Urubá”, de Rodrigo Sena (RN)
. “Vai Melhorar”, de Pedro Fiuza (RN)
. “A Morte Branca do Feiticeiro Negro”, de Rodrigo Ribeiro (SC)
. “4 Bilhões de Infinitos”, de Marco Antônio Pereira (MG)
. “De Vez em Quando eu Ardo”, de Carlos Segundo (MG)
. “Trindade”, de Rodrigo Meireles (MG)
. “Ser Feliz no Vão”, de Lucas Rossi (RJ)
. “Lora”, de Mari Moraga (SP)
Mostra Acervo
Os seis diretores da Mostra Nacional indicaram “um filme brasileiro inspirador”. E gravaram vídeo-depoimento justificando suas escolhas. Além das obras selecionadas, será exibido o documentário “Cinemateca Brasileira” (Ozualdo Candeias, 1993), registro da transferência da instituição de sua velha sede para os galpões do antigo Matadouro Municipal.
. “São Bernardo”, de Leon Hirszman (1973). Escolha de Rafhael Barbosa e Werner Salles
. “Martírio”, de Vincent Carelli (2016). Escolha de Isael e Sueli Maxakali, Carolina Canguçu e Roberto Romero
. “Copacabana Mon Amour”, de Rogério Sganzerla (1970). Escolha de Ary Rosa e Glenda Nicácio
. “Claro”, de Glauber Rocha (1975). Escolha de Paloma Rocha
. “Bicho de Sete Cabeças”, de Laís Bodanzky (2000). Escolha de Juliana Vicente
. “Vidas Secas”, de Nelson Pereira dos Santos (1963). Escolha de Isaac Donato
Sessão Xanadu
Serão exibidos nesse segmento dois longas produzidos pela Xanadu Produções Cinematográficas (de João Callegaro, Carlos Reichenbach e Antonio Lima), inéditos em plataformas de streaming.
. “As Libertinas – Três História de Amor e Sexo” (1968) – Episódio 1 – “Alice”, de Carlão Reichenbach, Episódio 2 – “Angélica”, de Antonio Lima, Episódio 3 – “Ana”, de João Callegaro
. “Audácia, a Fúria dos Desejos” (1969) – “Prólogo + “ A Badaladíssima dos Trópicos x Os Picaretas”, ambos de Carlão Reichenbach, e “Amor”, de Antonio Lima
Sessão CineLimite
O CineLimite é uma plataforma online dedicada a fornecer acesso à história do cinema brasileiro nos EUA. Serão apresentados filmes que marcaram o turbulento ano de 1968. A seleção foi feita por Vladimir Carvalho, que os apresentará, virtualmente, como obras realizadas sob o impacto de “Terra em Transe” (Glauber Rocha, 1967).
. “A Vida Provisória”, de Maurício Gomes Leite (1968)
. “O Bravo Guerreiro”, de Gustavo Dahl (1968)
. “Dezesperato”, de Sérgio Bernardes Filho (1968)
Mostra de Cinema de São Miguel do Gostoso
Data: 10 a 14 de março
Exibição de 34 filmes, que poderão ser acessados gratuitamente pelo site www.mostradecinemadegostoso.com.br