“O Amor Dentro da Câmera” representa o Brasil na principal competição do Bafici

Por Maria do Rosário Caetano

O Brasil conta com significativa representação nas principais mostras da vigésima-segunda edição do Bafici (Festival Internacional de Cinema Independente de Buenos Aires), que acontece na capital argentina, de forma presencial e on-line, a partir dessa quarta-feira, 17 de março, até dia 28.

Para a mostra principal, de alcance internacional, foi selecionado o documentário baiano “O Amor Dentro da Câmera”, das estreantes Lara Belov e Jamille Fortunato. O filme acompanha a trajetória afetiva e cinematográfica do casal Orlando e Conceição Senna (1937-2020). Ele, cineasta e gestor cultural, ela, atriz e documentarista.

Os longas ficcionais “Ainda Temos a Imensidão da Noite”, de Gustavo Galvão, “O Livro dos Prazeres”, de Marcela Lordy, baseado em texto de Clarice Lispector, e “Para Colorir”, de Juliana Costa, participam da competição latino-americana. Nesse segmento, o Brasil comparece, ainda, com “Amazonas”, de Daniel Carrizo (parceria com Peru e Argentina), como coprodutor de “Perros”, de Kris Nikilson”, e com o curta “Swinguerra”, de Barbara Wagner e Benjamin de Burca.

O documentário “O Bom Cinema”, de Eugenio Puppo, foi selecionado para a mostra “Películas sobre Películas”. Ou seja, filmes que têm o cinema como sua razão de ser. O cineasta e produtor paulista mergulha na trajetória de outro cineasta, o também paulistano (embora nascido no Rio Grande do Sul) Carlos Reichenbach (1945-2012).

Carlão – assim os amigos o chamavam – estudou na Escola São Luiz, onde se prepararam, além dele e entre outros, Ana Carolina (“Mar de Lama”) e João Callegaro (“O Pornógrafo”). No corpo de professores, estavam Sérgio Person (“São Paulo S.A.”), Almeida Salles, o “presidente”, Mário Chamie, Décio Pignatari e Paulo Emilio Salles Gomes.

No segmento dedicado à “Música”, o Brasil marca presença no Bafici com “Dorival Caymmi – Um Homem de Afetos”, de Daniela Broitman, “O Barato de Iacanga”, de Thiago Mattar, e “Aquilo que Nunca Perdi”, de Marina Thomé.

Na mostra “Pasiones”, há um único representante brasileiro: “Lutar, Lutar, Lutar”, dos mineiros Sérgio Borges e Helvécio Marins. Sob nome curioso, “Superhéroes”, o Bafici instituiu segmento que se propõe a desconstruir o sentido do maior símbolo do cinema blockbuster. Ao invés de filmes protagonizados por super-homens de corpo de aço e superpoderes, há produções de orçamento modesto sobre heróis, digamos, de poderes mais palpáveis. O Brasil marca presença com “De Onde Vêm os Dragões”, de Grace Luzzi.

Importante destacar, nessa edição do festival argentino, os filmes de curta duração, pois eles serão inseridos antes de longas-metragens, em todos os segmentos da extensa programação.

O crítico Juan Pablo Russo, em alentado artigo sobre o Bafici 22, publicado no site “EscribiendoCine”, define a maratona argentina como “o festival mais importante da América Latina”. Ele não restringe tal qualificação. Não detalha se faz referência às qualidades da curadoria (ponto forte do evento), ao seu alcance (junto ao público e à imprensa especializada) ou a persistência no tempo.

Os organizadores do festival, que tem a cidade de Buenos Aires como sede, são mais contidos. Definem o Bafici como “um dos mais importantes festivais da América Latina”. Decerto levando em conta o alcance de festas cinematográficas como as dedicadas ao Novo Cinema Latino-Americano de Havana (que tem abrangência internacional, 42 edições, plateias gigantescas e até 400 filmes em seus tempos áureos), e a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo (44 edições, plateias imensas e média de 300 filmes a cada ano).

O que vale destacar – para evitar clima de Fla x Flu (ou Boca x River) entre festivais brasileiros e argentinos – é o que há de importante no Bafici. Primeiro, o valor dado ao cinema latino-americano e ao cinema argentino, em particular. A produção prata-da-casa ocupará 56% da programação (35 filmes foram selecionados para a competição nacional). Idem para o destaque dado ao curta-metragem, que pela primeira vez terá formidável presença. E, o que é notável, o diálogo com o cinema independente (conceito elástico) de outros continentes. Para se ter ideia, só sobre Federico Fellini serão exibidos três filmes, os longas “Fellinopolis”, de Silvia Giulietti, “La Verità su La Dolce Vita”, de Giuspeppe Pedersoli, e o curta “Um Brinde Georgiano”, de Giuliano Fratini. Sobre este terceiro título, uma curiosidade: ele registra as lembranças do cineasta soviético Marlen Khutsiev (1925-2019) sobre o maestro italiano.

O diretor de “Tenho Vinte Aos” (1965) conheceu Fellini no Festival de Moscou, em 1963, e se aproximou dele. O italiano vivia o auge de seu prestígio (venceria o festival moscovita com “8 1/2” e, mais tarde, com “Entrevista”). O jovem Khutsiev, vindo da Geórgia (então uma das 15 Repúblicas Soviéticas) foi convocado, em anos recentes, a falar sobre a obra de seu contemporâneo Andrei Tarkovski (que na Itália realizou “Nostalgia”). Aceitou a tarefa, mas fez questão de registrar, também, suas memórias sobre o diretor de “A Doce Vida”.

Outro ponto em que o Bafici brilha: a mostra Baficito (Baficinho), dedicado ao público infanto-juvenil. Serão exibidas produções contemporâneas (animadas ou ficcionais, curtas ou longas) e se prestará tributo ao belíssimo “O Balão Vermelho”, do francês Albert Lamorisse, que continua encantando plateias, passados 65 anos de sua realização.

O representante brasileiro na principal competição do Bafici – o documentário baiano “O Amor Dentro da Câmera” – venceu, dias atrás, o Prêmio IndieLisboa, atribuído pela mostra Panorama de Cinema, realizada em Salvador. Como assim? Um festival soteropolitano atribuiu prêmio que leva o nome de um festival português? Orlando Senna, que “protagoniza” o filme ao lado da companheira de toda uma vida, Conceição, esclarece a questão: “’O Amor Dentro da Câmera’ foi premiado no Panorama Internacional Coisa de Cinema, pelo IndieLisboa. Os dois festivais mantêm convênio. O prêmio do festival português consiste em programar um filme do Coisa de Cinema em sua competição. Por isso, ‘O Amor Dentro da Câmera’ está, automaticamente, concorrendo no IndieLisboa”. Para finalizar: “a produtora Cecília Amado (“Capitães da Areia”), as diretoras Lara Belov e Jamille Fortunato e todas a pessoas envolvidas na realização do filme estão comemorando muito, porque estar na seleção do Indie português significa abrir porta para o filme ser exibido em outros festivais europeus”.

O documentário de Lara e Jamille sobre o Casal Senna tem muito de íntimo (a vida do casal em seu apartamento carioca) e de cinematográfico. Orlando e Conceição contam que se conheceram superficial e apressadamente nos agitos culturais da Salvador do finalzinho dos anos 1950. Separaram-se, mas o cinema os uniu. Um dia, com o olho no visor de uma câmera, Orlando viu uma figura que não saía de seus pensamentos. Era Conceição. Reaproximaram-se e, dali em diante, viveriam um casamento que duraria quase seis décadas.

A intenção do baiano, de Lençóis, em desposar Conceição, baiana nascida na sertaneja Valente, dá origem a um dos momentos mais tocantes do filme. A atriz conta que perguntou ao namorado: “Casamento? Você quer se casar com uma mulher estéril?”.

Orlando quis. Jorge Amado e Zélia Gattai foram os padrinhos e os dois, se não puderem ter filhos biológicos, conviveram com dezenas de jovens por quem nutriram profundos sentimentos paterno-maternais. Estes “filhos” estão espalhados pela Bahia, por Cuba (onde viveram por dez anos), pelo Rio de Janeiro e pelo Ceará. Neste estado nordestino, o casal participou de projeto cultural-cinematográfico que somou um polo audiovisual, uma escola de cinema e uma vitrine, o Cine Ceará (Festival de Cinema Ibero-Americano de Fortaleza).

O casal enuncia, ao longo de sintéticos 80 minutos (e com calma sertaneja) suas ideias e lembranças de tempos agitados do teatro e cinema baianos (quando conviveram com Helena Ignez, Glauber Rocha, Roberto Pires, Antônio Pitanga). Toma café, come fatias de mamão, divaga sobre a vida (Orlando tem 80 anos, Conceição morreu aos 83). Quando as jovens diretoras propõem que seus dois “personagens” façam isso ou aquilo (gestos de carinhos e afagos) Orlando pergunta – metalinguisticamente – “mas não vai ficar falso?”

Acaba satisfazendo todos os desejos de Lara e Jamille. Felizmente, o filme não se perde no registro íntimo do casal, pois Orlando e Conceição têm muito o que dizer e evocar. Em especial, sobre os filmes em que ela atuou, sob direção dele ou não, ou dirigiu. E Orlando relembra seus tempos de professor na Escola Internacional de Cinema de San Antonio de los Baños, em Cuba, que fundou com Gabriel García Márquez e Fernando Birri, e da qual tornou-se diretor. Enquanto ele dirigia a “Escuela’, plantada nos arredores de Havana, Conceição comandava, em portunhol, o programa “Una Ventana al Sur” (Uma Janela ao Sul). Os telespectadores adoravam o sotaque da baiana e as reportagens que ela gravava quando vinha ao Brasil (até Caetano Veloso cantou na “Ventana”).

Orlando dirigiu, com Jorge Bodanzky, os longas “Iracema, uma Transa Amazônica” e “Gitirana”. No primeiro, Conceição interpretou uma prostituta, colega de ofício da jovem protagonista, que carrega o nome-anagrama de América (Iracema). No segundo, a baiana foi a protagonista. Imagens desses dois trabalhos constituem a força de “O Amor Dentro da Câmera”. E são complementadas com breves trechos de mais de mais dezenove filmes, dos baianos “Tocaia no Asfalto” e o underground “Caveira my Friend”, passando por “Diamante Bruto”, “Coronel Delmiro Gouveia” e desaguando em “Longe do Paraíso”.

O filme de Belov e Fortunato contou com apoio do projeto Rumos Itaú Cultural, fonte de financiamento de inventivas biografias de cineastas, músicos, escritores, dramaturgos e artistas plásticos. Basta lembrar “Ex-Isto”, de Cao Guimarães (inspirado no “Catatau”, de Leminski) e “Sabotage: Maestro do Canão”, de Ivan 13P (sobre o rapper que, depois de conhecer a fama em “O Invasor” foi assassinado em uma rua de São Paulo).

“Ainda Temos a Imensidão da Noite”, do brasiliense Gustavo Galvão, acompanha as andanças de Karen (Ayla Gresta) por paisagens candangas e alemãs. Integrante de banda roqueira, na qual toca trumpete e é vocalista, a jovem angustia-se com seu ofício, pois as coisas não marcham bem. Resolve, então, mudar-se com o namorado Artur (Gustavo Halfeld), para Berlim, atendendo a convite de Martin (Steven Lange). Um triângulo amoroso, complicado e imprevisível, e o novo país não resolvem os problemas existenciais e profissionais da moça. Ela resolve regressar a Brasília. É na cidade que seu avô ajudou a construir que Karen buscará um recomeço. No elenco estão, ainda, Pit Bukowski (DJ Bastian), Marat Descartes, Bidô Galvatildeo, Fernando Teixeira e Clemente Nascimento.

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