Maria de Medeiros brilha em “Ordem Moral”

Por Maria do Rosário Caetano

Maria de Medeiros vive, aos 55 anos, sua maturidade artística e condição de maior estrela do cinema português. Ela, que conheceu a fama com os badaladíssimos “Pulp Fiction”, de Quentin Tarantino, e “Henry & June”, de Philip Kaufman, segue brilhando em dupla função – de atriz e diretora.

No Brasil, país que conhece muito bem, Maria, que já dirigira o longa documental “Repare Bem”, tem agora uma ficção – “Aos Nossos Filhos” – para apresentar ao público. Se possível, em novembro ou dezembro desse ano.

A pequenina atriz, que em “Pulp Fiction” dominava o marido interpretado pelo musculoso Bruce Wills, esteve em dois importantes elencos brasileiros – o de “Xangô de Baker Street”, de Miguel Faria Jr, e “O Contador de Histórias”, de Luiz Villaça.

Portuguesa e francesa, por ter dupla nacionalidade, Maria segue – ao lado de Joaquim Almeida (“Bom Dia Babilônia”, dos irmãos Taviani) – em frente e com destaque por poucos conquistado. Basta ver o papel de protagonista absoluta que o cineasta Mário Barroso entregou a ela em “Ordem Moral”. Aos 73 anos, o consagrado fotógrafo do belíssimo “Vale Abrahão”, de Manoel de Oliveira (1993), e do cult “A Comédia de Deus”, de João César Monteiro (1995), viu seu novo (e quarto) filme como diretor – uma produção de Paulo Branco – causar frisson no mercado português e, mesmo em tempo de pandemia, estrear em 40 salas, na França.

“Ordem Moral” divide com “Mosquito”, de João Nuno Pinto (os dois foram exibidos na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo), a condição de recordista em indicações ao Troféu Sophia, o “Oscar lusitano”. Além de dirigir o filme, transformado depois em minissérie, Mário Barroso assina sua bela e elaborada fotografia.

Drama de época, “Ordem Moral” contém ingredientes que parecem saídos de um aliciante folhetim do século XIX. No centro da trama (uma história real) está Maria Adelaide Coelho da Cunha (Maria de Medeiros em desempenho notável), herdeira e proprietária do Diário de Notícias, um dos mais poderosos jornais de Portugal.

Na época da epidemia (a dita “gripe espanhola”) de 1918, aquela que matou milhões de pessoas, Adelaide zelou pela saúde de um ex-motorista de sua rica família, acometido pelo vírus. E acabou apaixonando-se por ele, um “joão-ninguém” de nome Manuel Claro (o ator João Pedro Mamede) e 26 anos mais novo que ela. Fugiu de sua sofisticada mansão e foi viver com o pobre chofer.

Alfredo da Cunha (Marcello Urgeghe), o marido da proprietária do Diário de Notícias, cercado de jovens amantes, só pensava em vender o jornal. Para tanto, porém, necessitava contar com a assinatura obrigatória da esposa. Afinal, ela, sim, herdara o Diário de Notícias. Sem pruridos, Alfredo – com apoio do filho do casal e de seu meio social – recorreria, então, à psiquiatria para “provar” que Adelaide, já “na fase da menopausa”, era “uma desajuizada, uma louca”. Conseguiria apoio jurídico e psiquátrico (de um médico que, mais tarde, ganharia o Prêmio Nobel) para interná-la em instituição destinada a portadores de doenças mentais.

O filme, um libelo feminista, faz-se construir com elegância, ótimo elenco e de olho no grande público (sem baratear sua narrativa, recheada com referências a “Senhorita Júlia”, de Strindberg, e “A Sibila”, romance de Agustina Bessa-Luis). “Ordem Moral” ainda não tem data de lançamento no circuito brasileiro (nem em salas físicas, nem no streaming).

“Aos Nossos Filhos” constitui-se como a primeira ficção dirigida por Maria de Medeiros no Brasil. O filme nasceu de recriação de peça de mesmo nome (e com algo de autobiográfico) escrita pela dramaturga, atriz e cantora Laura Castro.

Maria conheceu o texto teatral em profundidade, pois interpretou-o, em dupla com Laura, durante significativa temporada em importantes palcos portugueses e brasileiros (como o Tuca – Teatro da PUC-SP). Coube à atriz lusitana o papel da mãe, militante política em grupo de combate armado à ditadura civil-militar brasileira, e a Laura o papel de sua filha, desligada de questões da militância político-partidária e ocupada com sua condição homoafetiva.

Na convivência mantida durante a temporada teatral, que durou três anos, Maria e Laura resolveram transformar “Aos Nossos Filhos” em um longa-metragem. E, logo, compreenderam, que muitas modificações se faziam necessárias.

Laura relembra a gênese do projeto: “a ideia de adaptar o espetáculo teatral para o cinema partiu de Maria de Medeiros. Um dia, após o espetáculo, fomos jantar em um restaurante e ela falou: “o que achas de adaptarmos o texto para o cinema? Não um filme teatral de apenas duas personagens, mas ‘cinema mesmo’, com todos os cenários, com todos os personagens, apenas citados na peça, ganhando vida e novas situações”.

A brasileira animou-se com a proposta “de imediato”. E as duas começaram a amadurecer ideias para o roteiro (o guião, como dizem os lusitanos).

“Um dos grandes desdobramentos do filme” – lembra Laura – “foi a criação do personagem Sérgio. Na peça, Vera (Marieta Severo) dá uma entrevista a alguém que não vemos. Temos uma ação linear do diálogo da mãe com a filha, que é quebrada ora por cartas de Tânia (a própria Laura Castro) e de Vanessa (Marta Nóbrega), ora pela entrevista de Vera. A presença de Sérgio cria uma grande diferença em relação à peça”.

Laura Castro e Marieta Severo, em "Aos Nossos Filhos"

“Em algum momento” – exemplifica a dramaturga (e corroteirista) – “Vera diz: ‘estou falando porque é pra você. Conheci sua mãe na prisão’…. Então, ficamos sabendo que aceitou dar a entrevista, porque era para o filho de uma ex-companheira de militância política. Este filho ganha, no filme, bela interpretação de Cláudio Lins. Ele entrevista Vera e acaba misturando-se com a figura do filho dela, perdido durante a ditadura militar”.

Laura Castro, que é, além de atriz e corroteirista, uma das produtoras do filme, conta que “o roteiro levou anos para ser escrito, porque iniciamos o processo em um Brasil otimista, com a luta LGBT ganhando força e alcançando importantes conquistas, como o direito ao casamento civil entre pessoas do mesmo sexo, e terminamos às vésperas da eleição de Jair Bolsonaro”. Ou seja, “o que começou como uma comédia que lembrava um passado duro, mas mostrava um futuro otimista, terminou como um retrato dos últimos anos antes da eleição vencida por Bolsonaro, de duas personagens resistentes em um Brasil que exige luta constante”.

A atriz e dramaturga entende que “a memória do período da ditadura mostrou-se mais importante que nunca e a questão da violência policial em comunidades cariocas também foi inserida no roteiro. Realizamos um filme de protesto e resistência”.

O trabalho que Vera, a mãe interpretada por Marieta Severo, desempenha no tempo presente também ganhou maior relevo. “Abrimos um nicho importante para a personagem”, lembra Laura. “Como era citado na peça, ela atua junto a crianças HIV positivas em instituição (a ‘Positivida’) destinada a tal fim. Esta instituição foi inserida em favela carioca, que sofre com tiroteios constantes. Lá mora o menino Caique (Andrei Cardoso), que deseja ser adotado por uma família muito simples. Mas Vera teme que ele não seja bem cuidado, revelando preconceito de classe”.

“Contraditoriamente” – prossegue – “ela acaba promovendo a aproximação de Caíque (Andrei Cardoso) com o casal Antônio (Ricardo Pereira) e Pedro (Aldri Assunção), amigos de Tânia, mas o menino não se adapta, uma vez que já estava ligado emocionalmente à outra família”.

Para Laura, que canta duas das canções que estão na trilha do filme, “Aos Nossos Filhos” segue sendo – como a peça, que lhe deu origem – “uma narrativa sobre amor e preconceito, sobre nossas dificuldades cotidianas, mas, principalmente, um filme sobre a capacidade do amor de superar preconceitos”. E arremata: “nenhum de nossos personagens é perfeito, todos têm preconceitos a superar. Por isso, o afeto será o caminho para tal superação”.

Sobre a trilha sonora de “Aos Nossos Filhos”, Laura esplica: “sou uma das autoras da trilha, que traz uma canção de minha autoria, tendo Cristina Bhering como parceira. Há outros temas originais, criados por Jefferson Feliciano, além da canção que dá título ao filme, de Ivan Lins e Victor Martins. Tive a alegria de cantá-la em uma das cenas do filme”.

“Aos Nossos Filhos” estreia, primeiro, na França, em outubro, com distribuição da Epicentre Films. Depois, deve estrear em Portugal. No Brasil, se a maioria da população tomar a segunda dose da vacina até meados do segundo semestre, Laura Castro acredita que “será possível lançá-lo em novembro ou dezembro”. Cabendo às plataformas de streaming apresentá-lo em 2022.

 

Ordem Moral
Portugal, 101 minutos, 2020
Direção: Mário Barroso
Fotografia: Mário Barroso
Elenco: Maria de Medeiros, Marcelo Urgeghe, João Pedro Mamede, Júlia Palha, Vera Moura, Albano Jerónimo, João Arrais, Mia Tomé, Ana Padrão, Ana Bustorff e Isabel Ruth

Aos Nossos Filhos
Brasil, 107 minutos, 2019/21
Direção: Maria de Medeiros
Fotografia: Edgard Moura
Elenco: Marieta Severo, Laura Castro, Claudio Lins, José de Abreu, Antônio Pitanga, Ricardo Pereira, Aldri Anunciação, Marta Nóbrega, Denise Crispim, Jupy Azevedo e Andrei Cardoso

 

FILMOGRAFIA DE MARIA DE MEDEIROS
(Lisboa, Portugal, 19 de agosto de 1965)

Como diretora:

2021 – “Aos Nossos Filhos” (Brasil) – Ficção
2015 – “Entre Dois Desconhecidos”, parceria com Stéphane Zagdanski (Port.) – Doc.
2014 – “Repare Bem” (Brasil) – Doc
1999 – “Capitães de Abril” (Portugal) – Ficção
1991 – “A Morte do Príncipe” (Portugal) – Ficção

Como atriz (alguns trabalhos):

2020 – “Ordem Moral”, de Mário Barroso (Portugal)
2018 – “Duas Fridas”, de Ishtar Yasin Gutierrez (Costa Rica)
2016 – “O Filho de Joseph”, de Eugène Green (França)
2015 – “Entre Dois Desconhecidos”, de Maria de Medeiros (Port.)
2014 – “Pasolini”, de Abel Ferrara (Itália)
2011 – “Viagem a Portugal”, de Sérgio Treffaut (Port.)
2009 – “O Contador de Histórias”, de Luiz Villaça (Brasil)
2001 – “O Xangô de Baker Street”, de Miguel Faria Jr (Brasil)
2001 – “Honolulu Baby”, de Maurizio Nichetti (Itália)
1999 – “Babel”, de Gérard Pullicino (França)
1999 – “Capitães de Abril”, de Maria de Medeiros (Port.)
1995 – “Adão e Eva”, de Joaquim Leitão (Port.)
1994 – “Pulp Fiction”, de Quentin Tarantino (EUA)
1994 – “Três Irmãos”, de Teresa Villaverde (Port.)
1993 – “Ovos de Ouro”, de Bigas Luna (Espanha)
1991 – “A Comédia Divina”, de Manoel de Oliveira (Port.)
1991 – “Encontro com Vênus”, de Istvan Szabo (EUA)
1991 – “A Morte do Príncipe”, de Maria de Medeiros (Port.)
1990 – “1871” (A Comuna de Paris), de Ken McMullen (Grã-Bretanha)
1990 – “Henry e June – Delírios Eróticos”, de Philip Kaufman (EUA)
1985 – “Vertiges”, de Christine Laurent (França)
1983 – “A Estrangeira”, de João Mário Grilo (Port.)
1982 – “Silvestre”, de João César Monteiro (Port.)

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