Noites de Alface
Por Maria do Rosário Caetano
“Noites de Alface”, primeiro longa-metragem ficcional de Zeca Ferreira, autor do festejado curta “Áurea”, estreia nessa quinta-feira, 24 de junho, nos cinemas e, depois, será disponibilizado no serviço do VoD (video on demand) do Canal Brasil Play.
O filme baseia-se em livro homônimo da escritora Vanessa Bárbara e tem como protagonistas os atores Marieta Severo e Everaldo Pontes. E, em papéis coadjuvantes, um times de grande intérpretes – Teuda Bara, Inês Peixoto e Eduardo Moreira, do Grupo Galpão, Romeu Evaristo, que foi o Saci Pererê do “Sítio do Pica-Pau Amarelo”, o jovem João Pedro Zappa, de “Gabriel e a Montanha”, e dois nipo-brasileiros, Lumi Kin e Antonio Sakatsume.
Zeca, que integra a família Buarque de Hollanda Ferreira, é historiador formado pela Unicamp, com mestrado em Cinema pela USP. Deixou, porém, a vida acadêmica em segundo plano ao integrar-se à equipe de Nelson Pereira dos Santos, que preparava dois documentários sobre Sérgio Buarque de Hollanda, avô do aspirante a cineasta.
Zeca tornou-se assistente do diretor de “Raízes do Brasil (1 e 2)” e participou ativamente do processo de pesquisa e criação do díptico buarqueano. Seguiu com o mestre cinemanovista no ficcional “Brasília 18%” e no documentário “Português, a Língua do Brasil”. Foi assistente de Hugo Carvana, na comédia “Casa da Mãe Joana” e de Miguel Faria Jr, no documentário “Chico, Artista Brasileiro”.
Durante 15 anos, o neto de Sérgio Buarque de Hollanda ralou nas áreas de direção e produção para cinema e TV. Em 2009, estreou como diretor do documentário de média-metragem “Terreiro Grande”. No final do mesmo ano, lançou o curta-metragem “Áurea”, sobre a cantora Áurea Martins. O filme teve ótima aceitação e foi exibido em mais de 60 festivais no Brasil, Canadá, Portugal, Inglaterra, Espanha e Chile. Ao final, somou 25 prêmios. Em 2012, lançou seu segundo curta, “Aldeia”. No ano seguinte, fez o documentário “Ensaio sobre o Silêncio”. Seguiram-se os curtas “Entre o Traço e a Luz” (doc) e “A Ilha é das Crianças!” (ficção infantil). Dirigiu, ainda, o show-documentário “Choro Carioca – Música do Brasil”.
Em 2017, Zeca Ferreira ocupou-se da série “O Maestro” e começou a escrever seu primeiro roteiro de longa ficcional. Lera o livro “O Louco de Palestra”, coletânea de crônicas urbanas de Vanessa Bárbara, e ficara muito interessado no trabalho dela. “Em especial por tratar-se de escritora fissurada pelo bairro paulistano do Mandaqui”, relembra ele, sorrindo. Localizou a escritora nas redes sociais e contou que planejava levar “Noites de Alface” para o cinema. O que ela achava da ideia?
Vanessa só respondeu “uns seis meses depois” e “me explicou que não era assídua no Facebook”. O diretor, ainda um estreante em longa, mandou seus curtas e médias para ela avaliar. A escritora topou a parada, depois de comentário inusitado: “muito legais seus filmes, nada acontece neles!”. Sozinho, Zeca recriou o livro em roteiro marcado pela liberdade que Vanessa Bárbara lhe concedera. E ela gostou do resultado.
Em 2018, Zeca e equipe aportaram em Paquetá, bairro insular do Rio de Janeiro, para ensaios e filmagens de “Noites de Alface”. A tia, Marieta Severo, adorou o roteiro e topou interpretar Ada, uma mulher comum, que morre no começo da história, e volta nos devaneios do marido, o insone Otto (o paraibano Everaldo Pontes), um homem igualmente comum, a quem ela ministrava chá de alface, para ver se ele dormia melhor durante suas longas noites.
Sem a esposa, Otto fica imerso em sua solidão, plantado na janela, bisbilhotando, curioso, as pequenas vidas de seus vizinhos. Nem preparar chá de alface ele sabe.
Na pacata vila-ilha – em sequência, no Iate Clube de Paquetá, a localização se faz notar –, onde Otto e a saudosa esposa passaram longos anos de suas vidas miúdas, algo de grave, enfim, acontece. E de forma misteriosa: o sumiço repentino do carteiro Aidan (Pedro Monteiro, de “Vendo ou Alugo”). Estaria morto? Fora enterrado clandestinamente em algum lugar? Num florido jardim?
O solitário Otto devora livros policiais e busca em suas lembranças alguma pista capaz de solucionar o desaparecimento do entregador de cartas. Espiona os vizinhos – o farmacêutico Nico (João Pedro Zappa), a excêntrica Iolanda (Teuda Bara), a ruidosa Teresa (Inês Peixoto), o carteiro-titular, Aníbal (Romeu Evaristo), a jovem Mayu (Lumi Kim) e seu avô, o Senhor Taniguchi (Antônio Sakatsume). O velho japonês é um ex-combatente, portador do mal de Alzheimer, que vive plantado frente a um aparelho de TV, no qual assiste a cenas de combates aéreos. Combates, claro, ocorridos nas violentas batalhas do Pacífico, durante a Segunda Grande Guerra.
A trama de “Noites de Alface” é realmente rarefeita. Marieta Severo lembrou, em conversa com a imprensa, que encantou-se com o roteiro do filme por seu humor sutil, sua delicadeza na composição das cenas e, principalmente, por ser “um filme que acredita no poder da ficção”. Uma narrativa que, ao ser vista, nos mostra que “as pessoas sucumbem se não puderem ficcionalizar” suas pequenas existências.
Everaldo Pontes, o “São Jerônimo” de Júlio Bressane, concorda com Marieta e vê Otto como uma derivação do personagem de James Stewart em “Janela Indiscreta” (Hitchcock, 1954). “Viúvo” – avalia –, “ele se torna tão solitário, que não lhe resta muita coisa, em sua pacata vila-vida”. Por isso, “ele permanece na janela bisbilhotando a vida dos vizinhos”. Ou aguardando as “visitas imaginárias” da amada Ada, companheira que o deixou sem o chá de alface capaz de atenuar suas insônias. E sem as conversas diárias e as deliciosas compotas de frutas.
A escolha de Everaldo para o papel de Otto se deu em duas etapas. Primeiro, Zeca Ferreira foi assisti-lo no Teatro Poeira, de Marieta Severo e Andrea Beltrão, onde protagonizava peça ao lado de Bárbara Paz. Gostou do que viu, mas a decisão só viria a se consolidar quando o cineasta assistiu, na Mostra CineBH, na capital mineira, ao filme “Abaixo a Gravidade”, do baiano Edgard Navarro. “Que filme e que trabalho do Everaldo!”, exclamou para si mesmo. Não havia mais dúvida, o paraibano “era o Otto”.
Fã do Grupo Galpão, de Minas Gerais, que trabalhou com Eduardo Coutinho em “Moscou”, Zeca foi atrás de Teuda Bara, Inês Peixoto e Eduardo Moreira para convidá-los a fazer participações especiais no filme. “Eu que nunca perdi, no Rio, a nenhuma temporada deles, fiquei muito feliz quando aceitaram meu convite”.
A escolha de Romeu Quinto foi a mais fácil: “somos amigos e eu tinha certeza que ele ia brilhar no papel do carteiro Aníbal, naquele ‘diálogo psiquiátrico’, que entabula com Otto no meio da rua”. A escolha de João Pedro Zappa foi simples: “ele era o ator perfeito para interpretar os ‘sonhos lúcidos’ do farmacêutico Nico”. Os nipo-brasileiros que interpretam Mauí e o Sr Taniguchi foram escolhas tranquilas. “Ela é atriz, ele, que nunca atuara num longa-metragem, fez sua estreia”.
“Noites de Alface” é, na definição de seu diretor, “um filme sobre o envelhecimento”, que comporta “uma série de subtemas dele derivados: a solidão, as perdas, o isolamento, as limitações físicas, o medo de perder a razão” e, o que mais amedronta, “a proximidade da morte”. Desejou, em seu longa de estreia, realizar “um projeto leve e, mesmo assim, capaz de aproximar-se de assuntos densos e espinhosos”.
Além de sua principal fonte, o livro de Vanessa Bárbara, Zeca contou com a colaboração da diretora de arte Ana Paula Cardoso e do fotógrafo uruguaio-brasileiro Miguel Vassy, que assina as imagens dos filmes de Eryk Rocha e do festejadíssimo “Sertânia”, de Geraldo Sarno.
Como Otto, o protagonista de “Noites de Alface”, mistura realidade e ficção, embaralhadas em suas lembranças, e, ainda por cima, o longa mistura gêneros – crônica do cotidiano, drama e alguns ingredientes de filme policial –, os desafios de compreensão da narrativa se multiplicam. Quem, porém, embarcar nessa trama rarefeita, poderá desfrutar do trabalho de ótimo atores e da delicada e caprichosa direção de arte. E, claro, da fotografia de Vassy, um dos principais colaboradores técnicos de Zeca Ferreira. Como Marieta Severo fez questão de lembrar, “Ada é luz, sempre que ela entra em cena, vem a claridade”. Para arrematar: “o encantamento me tomou, quando vi o filme pronto”.
Noites de Alface
Brasil, 78 minutos, 2021
Direção: Zeca Ferreira
Produção: Alexandre Rocha e Marcelo Pedrazzi (Afinal Filmes) em parceria com o Canal Brasil
Fotografia: Miguel Vassy
Direção de arte: Ana Paula Cardoso
Elenco: Marieta Severo, Everaldo Pontes, Teuda Bara, Inês Peixoto, Romeu Evaristo, João Pedro Zappa, Eduardo Moreira, Lumi Kim, Antônio Sakatsume, Pedro Monteiro, Izak Dahora
Distribuição: Pipa Pictures
Em cartaz no Rio, São Paulo, Brasília, BH, Porto Alegre e Salvador
FILMOGRAFIA
Zeca Ferreira (São Paulo/SP, 1974)
2021 – “Noite de Alface (longa ficcional)
2016 – “Choro Carioca – Música do Brasil” (show-doc)
2016 – “A Ilha é das Crianças!” (ficção infantil)
2013 – “Entre o Traço e a Luz” (doc)
2013 – “Ensaio Sobre o Silêncio” (doc)
2012 – “Aldeia” (curta)
2009 – “Áurea” (curta doc)
2009 – “Terreiro Grande” (doc média-metragem)