Tânia Quaresma, diretora de “Nordeste: Cordel, Repente e Canção” morre em Brasília

Por Maria do Rosário Caetano

A cineasta Tânia Quaresma morreu vítima de parada cardíaca, em Brasília, na noite da última terça-feira, 6 de julho, deixando dois longas-metragens, vários telefilmes, além de projetos de documentação da capital brasileira.

Mineira de Belo Horizonte, nascida em 1950, Tânia iniciou sua carreira profissional como foto-jornalista, aos 17 anos, na Folha da Tarde. Depois, tornou-se, o que não era comum entre mulheres, cinegrafista em telejornais da Rede Globo e da TV Cultura. Ganhou bolsa de estudo para aperfeiçoar-se em fotografia, em Bonn, capital da Alemanha Ocidental, e lá realizou seu primeiro curta-metragem, “Gastarbeit”, sobre trabalhadores turcos em solo germânico.

Em 1973, Tânia desempenhou, no longa “A Noite do Espantalho”, de Sérgio Ricardo, a função de assistente de Dib Lutfi (1936-2016), um dos mais respeitados diretores de fotografia do cinema brasileiro. E atuou como still (autora das fotos de cena).

O filme, que uniu os irmãos Lufti (Sérgio e Dib), foi roteirizado por Jean-Claude Bernardet, Maurice Capovilla e pelo diretor (e também pianista, cantor e compositor) Sérgio Ricardo. Nos papéis principais, Alceu Valença, Rejane Medeiros, José Pimentel e Gilson Moura.

“A Noite do Espantalho”, rodado em Nova Jerusalém, cenário pernambucano da mais conhecida (e turística) encenação da Paixão de Cristo, aproximou a jovem mineira da cultura nordestina.

Ela regressou, então, ao Rio de Janeiro, sua base, e moveu mundos para montar a produção de “Nordeste: Cordel, Repente e Canção”. Conseguiu apoio da Comissão de Defesa do Folclore, da Vasp e da Filmcenter Cinematográfica. Colocou, então, sua pequena equipe na estrada. Na direção de fotografia, Lúcio Kodato, na gerência de produção, Francisco Ramalho Jr.

As filmagens se deram no Ceará, na Paraíba e em Pernambuco. Quando o documentário ficou pronto, recebeu distribuição da Embrafilme e conseguiu significativo lançamento.

Aos 25 anos, Tânia entrava para o time de mulheres que marcaria o cinema brasileiro na década de 1970, ao lado de Tereza Trautman, Vera Figueiredo, Ana Carolina, Tizuka Yamasaki e Maria do Rosário Nascimento Silva.

Tânia sempre lembrava que o alemão Werner Herzog vira “Nordeste: Cordel, Repente, Canção” e apaixonara-se por seus personagens e cantorias. Por vias tortas, e por causa do documentário nordestino, o diretor de “Aguirre” e “FitzCarraldo” teria se interessado pela vida de um aventureiro brasileiro, Francisco Manoel da Silva, apelidado o “Cobra Verde”.

A trama do filme de Herzog é das mais curiosas: um latifundiário baiano, por desconhecer a vida pregressa de Francisco, o contratou para trabalhar em suas terras. Só que o “cobra verde” engravidou todas as filhas do patrão. Enfurecido, o senhor de terras deu o troco: obrigou o ingrato e transgressor Francisco a desempenhar missão tida como suicida: assumir, na África, um entreposto de tráfico de escravos.

Como o cinema do diretor germânico aposta mais no delírio que na realidade, ele entregou o papel de Francisco Manoel da Silva ao louríssimo (e insano) Klaus Kinski. O gaúcho José Lewgoy integrou o elenco. O filme, embora falado em alemão, preservou seu título em português – “Cobra Verde” (Alemanha-França, 1987).

Nordeste: Cordel, Repetente e Canção

O sucesso de “Nordeste: Cordel, Repetente e Canção”, que alcançou boa bilheteria e rendeu à diretora um prêmio especial (o Coruja de Ouro do Instituto Nacional de Cinema) e outro da Air France, motivou Tânia a seguir com a dobradinha cinema e música.

Em 1976, em parceria com Luiz Keller, ela entregou-se ao projeto “Trindade: Curto Caminho Longo”. O documentário, produzido pela Skylight, acompanharia as andanças, por diversos estados brasileiros, de músicos da grandeza de Hermeto Paschoal, Paulo Moura, Egberto Gismonti, Wagner Tiso e Nivaldo Ornellas. Mas sua complexa produção – embora tenha resultado em disco importante – colocaria a equipe na estrada por três longos anos. E, para complicar, o filme não conseguiria a mesma repercussão do longa de estreia da jovem cineasta. Serviu, no plano pessoal, para revelar a ela outras de suas paixões: o amor à natureza, conjugado à luta pelo meio-ambiente, e a defesa da memória.

O crítico musical Tárik de Souza, que acompanhou de perto os dois primeiros filmes musicais de Tânia Quaresma, lembra que “ela era uma pessoa muito apaixonada pelo que fazia e muito generosa”. E destacou o fato de a cineasta ter se empenhado “em transformar a trilha musical de seus filmes em discos”.

Em 1983, Tânia radicou-se em Brasília, onde criou a Fundação Bem-te-vi. Passou, então a realizar projetos ligados à preservação da memória candanga (“Os Pioneiros”, “Sob o Céu de Brasília”, “Catadores de Histórias”) e realizou documentários para TV, como “Paulo Freire – Educar para Transformar”, “Josué de Castro – Por um Mundo sem Fome”, “De Quem é a Terra?” e “Nísia, Paulo e Josué: Oficina da Memória”.

Durante suas últimas semanas de vida, Tânia Quaresma buscou a Secretaria de Cultura e Economia Criativa para tentar viabilizar a transferência de seu rico acervo de imagens e sons para a gestão pública do Distrito Federal. O titular da Cultura, Bartolomeu Rodrigues, está estudando formas que permitam a viabilização do último desejo da cineasta mineiro-brasiliense.

O músico e cineasta baiano André Luiz Oliveira, diretor de “Meteorango Kid” e “Loucos por Cinema”, escreveu carta póstuma à amiga Tânia Quaresma, divulgada na internet. Ele a definiu como “pessoa luminosa, cineasta excepcional, amiga muito querida, responsável pela minha fixação em Brasília, em 1991”. Disse mais: “Tânia foi uma mulher guerreira e cineasta de luz própria, tanto na vida, quanto na arte, portadora de bondade radical e capacidade excessiva de doação a quem estivesse em situação de risco e necessidade”.

O diretor de fotografia Lúcio Kodato relembra sua parceria com Tânia Quaresma e os riscos de desaparecimento de “Nordeste: Cordel, Repetente e Canção”: “conheci a jovem diretora num bar do Bixiga paulistano, quando eu retornava de três anos de estudos no Japão. Mulher de energia impressionante, ela me convidou para fotografar seu primeiro longa-metragem”.

“Nossas conversas” – testemunha – “giraram, claro, em torno de câmeras e ela me contou que o Governo da Alemanha havia doado uma BL 35 milímetros para a TV Educativa do Rio de Janeiro, e que o equipamento estava encostado”. Isto acontecia “porque chegara, ao invés da câmera 16, aquela 35 mm”.

Kodato, na companhia de Zetas Malzoni foi, então, ao Rio “abrir a câmera zero uso”. Tânia conseguiu reunir apoios e viabilizar o documentário.

“No Recife” – relembra o fotógrafo – “tal apoio se deu em forma de hospedagem nos alojamentos do Estádio Mangueirão, onde dormíamos todos juntos – ela, o filho Alexandre, a assistente (Narinha), o produtor Francisco Ramalho, Zetas Malzoni e eu”. Para “deslocar nossa equipe até Juazeiro do Norte, no Ceará, Tânia conseguiu um Fusca e um furgão preto de propriedade de uma funerária”.

Na memória de Lúcio Kodato, tudo valeu a pena: “Captamos imagens maravilhosas das feiras, dos repentistas e de um Brasil que eu viria a conhecer graças a essa produção comandada pela Tânia”.

“Nordeste: Cordel, Repetente e Canção” – relembra o fotógrafo – “foi um dos primeiros documentários brasileiros captados com som direto a difundir, em salas do circuito exibidor, o sotaque e a polifonia das vozes nordestinas”. Mas nem todas as lembranças do primeiro longa documental de Tânia Quaresma são felizes: “os negativos originais se perderam num incêndio da produtora Filmcenter de Enzo Barone e Silvio Bastos”. O filme “foi salvo a partir de uma cópia em 16 mm, graças ao generoso apoio dos irmãos Walter e João Moreira Salles”.

Lúcio Kodato ainda iniciaria um novo trabalho com Tânia Quaresma – um documentário sobre músicos que tocavam pelas avenidas cariocas, durante o carnaval. Mas o projeto não avançou. Sobre a morte da amiga, o diretor de fotografia lamenta: “é uma parte de nosso passado que perdemos com sentida tristeza”.

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