“Clara Sola” e “Urubus” são os grandes vencedores da Mostra de Cinema de São Paulo
Por Maria do Rosário Caetano
Um país latino-americano, a pequena Costa Rica, conquistou, pela primeira vez, o Troféu Bandeira Paulista, láurea máxima da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. E o fez com a ficção “Clara Sola”, de Nathalie Álvarez Mesén. O filme recebeu ainda o troféu de melhor atriz para sua protagonista Wendy Chinchila Araya e o Prêmio Brada por sua direção de arte.
O segundo filme mais premiado da Mostra foi o brasileiro “Urubus”, de Claudio Borelli, que, coincidência rara, foi escolhido como melhor ficção nacional pela Crítica e pelo Público. Já a Abraccine (Associação Brasileira de Críticos de Cinema) elegeu “A Felicidade das Coisas”, de Thaís Fujinaga como o melhor filme brasileiro de diretor estreante, independente se ficcional ou documental.
“Clara Sola” (Clara Sozinha) é um drama feminino, dirigido e protagonizado por mulheres. A jovem diretora, Nathalie Álvarez, formou-se em instituições internacionais e vive na Suécia. Mas realizou seu filme integralmente no país centro-americano. Clara é uma mulher de 40 anos, que acredita ter ligação especial com o divino. Ligação que faz dela uma curandeira. Família e comunidade concentram em tal potência mediúnica todas suas esperanças. Um dia, a sobrinha de Clara começa a se relacionar com um rapaz. A curandeira quarentona, que até aquele momento vivia sob o jugo da mãe e a serviço do vilarejo, vê seus desejos sexuais aflorarem. Sente-se profundamente atraída pelo namorado da jovem parente. Essa força recém-despertada leva Clara a territórios inexplorados. Fortalecida, ela irá, gradualmente, libertar-se de seu papel de “santa” e buscar sua cura.
Chinchila Araya, que ganhou o Troféu Bandeira Paulista de melhor atriz, é estreante no cinema. Sua trajetória foi feita como bailarina. O filme é o indicado da Costa Rica a uma vaga entre os finalistas ao Oscar internacional. Já o moscovita Yuri Borisov, o melhor ator, é um “jovem veterano”. Ele fez jus ao Troféu Bandeira Paulista por seu papel no filme “Compartment no. 6” (“Cabine Número 6”), também indicado ao Oscar internacional pela Finlândia. Embora jovem, Borisov já soma 40 trabalhos no cinema e na TV. No badalado filme de Juho Kuosmamn, ele interpreta Ljoha, operário grosseirão, que bebe doses cavalares de vodka e interpela mulheres com palavrões tóxicos. Num trem, que vai de Moscou a Murmansk, cidade situada a 200 km do Círculo Ártico, ele divide apertada cabine de trem com Laura, estudante finlandesa interessada em Arqueologia. Por isso, ela quer conhecer os petróglifos (hieróglifos impressos em pedra) de Murmansk. A jovem homoafetiva, que estuda russo, deixou a namorada Irina em Moscou. Conseguirá enfrentar quase 1.500 km em trajeto de trem, dividindo a cabine com um macho bruto, capaz de perguntar se ela “vende a boceta”? Como? “Você vende a xereca?”, reafirmará com intenção de ser melhor entendido.
Baseado em livro de Rosa Licksom, best seller traduzido em 20 idiomas, “Compartment no. 6” conquistou o Grande Prêmio do Júri em Cannes (com Spike Lee e Kleber Mendonça no colegiado) e é um dos cinco favoritos a vaga no Oscar internacional. O contraste entre o grosseirão e a estudante, os idiomas (ela tenta dominar as nuances da língua de Ljoha, em especial as referentes a termos de baixo calão sexual), os interesses culturais e projetos de vida dissonantes dão ao filme delicioso sabor. Sem edulcorar nada. E sem estereotipar os russos. A imagem do gigantesco (e gelado) país, nesse ‘train movie’, resulta complexa e envolvente.
O brasileiro “Urubus” chegou à Mostra SP de forma discreta. Dedicado a episódio que marcou a Bienal do Vazio, em 2008 — quando um grupo de jovens pichadores imprimiu seus enigmáticos “rabiscos” em paredes niemáricas do Pavilhão do Ibirapuera — o filme acabou escolhido como o melhor pela Crítica (entre realizadores veteranos e estreantes). E, também, pelo público. O que chamou atenção dos críticos foi a presença de jovens da periferia paulistana como os verdadeiros protagonistas. Rapazes negros, mestiços e brancos, com seu linguajar típico, contracenam com duas atrizes profissionais: Bella Camero e Ana Paula Bouzas, ambas “guerrilheiras” no “Marighella” de Wagner Moura. Adrenalinados, os rapazes empreendem aventuras quase suicidas para pichar prédios altíssimos. A câmera de Ted Abel registra, vertiginosamente, tais loucuras (pelos menos aos nossos olhos). O filme dividiu opiniões, pois o curitibano (radicado em São Paulo) Borrelli, um estreante já calvo e grisalho, vem da publicidade. Ninguém, porém, há de negar que o filme tem ótimos ritmo e pulsação. E recoloca discussão importante: o que é arte? O que não é? Quem merece espaço na poderosa (e burguesa) Bienal de São Paulo?
Outro brasileiro premiado (pelo público) foi “O Melhor Lugar do Mundo” (verso de canção de Gilberto Gil), dirigido pelo ator Caco Ciocler. Em seu terceiro longa, Caco resolveu utilizar o gênero (ou rótulo) de obra ficcional. No filme anterior, “Partida”, sobre brasileiros que pegam a estrada rumo ao Uruguai para, hipoteticamente, encontrar o ex-presidente Mujica, Ciocler trabalhou com o termo “documentário”. Muitos definiram o filme como uma ficção. Ou um híbrido. Pois dessa vez, o realizador convidou dez atores para pensar seu ofício e o Brasil de nossos turbulentos (e fratricidas) dias. Não adiantou ele assegurar que dirigiu uma ficção. Foi premiado como “melhor documentário brasileiro”. Assistam ao “híbrido” ciocleriano e encantem-se com os depoimentos de Claudia Missura, Luciana Paes e Márcio Vito.
“A Felicidade das Coisas”, o escolhido do júri Abraccine, nasce da sensível estreia de Thaís Fujinaga no longa ficccional. Depois de curtas encantadores, a jovem realizadora (e roteirista) constrói narrativa protagonizada por três mulheres: avó (Magaly Biff), mãe (Patrícia Savary), grávida do terceiro filho, e a filha pequena (Lavínia Castelari). Um filho pré-adolescente (Messias Gois) completa o quadro familiar. De classe média-média, aquela que vive com o orçamento apertado, a grávida e seus parentes vão para a casa de praia, recém-comprada, em Caraguatatuba. Surge a necessidade de adquirir uma piscina (dessas pré-fabricadas). A compra é feita. Haverá dinheiro para pagar o novo bem de consumo? Onde está o marido que não ajuda a esposa a usufruir de merecidas férias, ainda mais estando grávida? O que o pré-adolescente vai aprontar com seus amigos em busca de aventuras noturnas?
O filme constrói-se de forma lacunar, sem arroubos, em tom de agridoce crônica familiar. “A Felicidade das Coisas” confirma a jovem Fujinaga como um dos mais promissores talentos de nossa ficção. Falta ao filme, porém, uma pulsão desestabilizadora. Um contato mais profundo com nossa realidade convulsiva. Mas, há que se procurar um algo mais nas entrelinhas. Quem prefere a sutileza, decerto apreciará a estreia fujinaguiana.
Quatro filmes estrangeiros foram destacados pelo Júri Oficial, pela Crítica ou pelo Público. Os cineastas Beatriz Seigner, Carla Caffé (também diretora de arte) e Joel Zito Araújo, integrantes do Júri da Mostra, premiaram, além de “Clara Sola” e “Compartment no. 6”, o documentário “Pequena Palestina, Diário de um Cerco”, de Abdallah Al-Katib. O filme mostra, pelo olhar da população civil (em especial crianças e idosos), o cerco a um campo de refugidos palestinos no distrito de Yarmouck, em Damasco/Síria. Com a Guerra Civil, os refugiados se viram entre mísseis e necessidade vital de encontrar alimentos. O regime de Bashar Al-Assad passou a ver o local como refúgio de rebeldes e estabeleceu o cerco. Embora a situação seja trágica, a narrativa, com suas imagens vibrantes, busca registrar a alegria das crianças, que sonham com sanduíches, batatas fritas, pizza e televisão. Uma delas colhe um tipo de gramínea para cozinhar e, assim, matar a própria fome dela e a dos seus. O povo palestino é visto em sua riqueza cultural milenar, com seus cantos, danças e vestimentas. Um filme que não cultiva um redutor vitimismo.
A Crítica, que dispunha de uma infinidade de títulos para analisar (e escolher), destacou os franceses “A Ilha de Bergaman” e “Titane”, o colombiano “Memória”, o japonês “A Roda do Destino“, o italiano “Marx Pode Esperar”, o iraniano “Pegando a Estrada” e o croata “Murina”, mas deu seu prêmio principal (e merecidíssimo) ao turco “O Compromisso de Hasan”, de Semi Kaplanoglu, que os “mostreiros” conhecem por “Leite”, “Ovo” e “Um Doce Olhar”. O cineasta, de 60 anos, forma, junto com Nuri Bilge Ceylan, de 62 anos, a dupla de realizadores turcos mais conhecida do público internacional.
“O Compromisso de Hasan” é um filme formidável, um drama de consciência. Quando a narrativa começa, imaginamos assistir, mais uma vez, à luta de um homem do campo, que vive do cultivo de maçãs, contra forças e interesses financeiros. Ao instalar torres de eletricidade na propriedade rural, tudo supomos, irá se modificar. Os pequenos proprietários darão lugar aos grandes. Mas, o surpreendente roteiro toma outro (instigante) caminho. Para ir a Meca, espaço sagrado do Islamismo, o agricultor necessita purgar suas falhas morais. Com imenso interesse, acompanhamos os desafios espirituais desse homem que deseja, junto com sua bela e dedicada esposa, ser justo e digno de visitar o mais sagrado dos territórios do Islã.
O público elegeu um filme japonês — “Onoda, Dez Mil Noites na Selva”, dirigido por cineasta parisiense (Arthur Harari), como a melhor ficção da quadragésima-quinta edição da Mostra SP. Festejado pela crítica francesa e lançado em Cannes (na Mostra Un Certain Regard), esse épico de 2 horas e 40 minutos acompanha a saga de Hiroo Onoda, um tenente do exército imperial japonês, que é destinado a missão militar em pequena ilha do arquipélago filipino. A Segunda Guerra Mundial termina e o Eixo (Alemanha-Japão-Itália) é derrotado. Fiel ao Imperador, Onoda permanecerá por quase 30 anos na selva asiática. Sem reconhecer a derrota e cumprindo com seu dever de extrema fidelidade ao Imperador. Só em 1974, ele se “renderia”. Foi recebido com honras em seu país de origem. Morreu em 2014, aos 91 anos. Vale notar que ele passou cinco anos no Brasil, onde tentou criar gado. Mas preferiu regressar ao Japão. O filme já tem distribuição garantida no Brasil, pela Imovision, de Jean-Thomas Bernardini.
Outro premiado pelo público foi “Summer of Soul (…ou Quando a Revolução Não Pôde Ser Televisionada)”, uma espécie de “Woodstock black”. Em 1969, durante seis semanas de verão, no Harlem novaiorquino, grandes astros da música preta dos EUA — da grandeza de Nina Simone, Stevie Wonder, B.B. King, entre muitos outros — participaram de shows apoteóticos no Monte Morris Park. Mais de 50 anos depois, o rapper, produtor cultural e cineasta Almir “Questolove” Thompson transformou os registros das performances black em filme eletrizante. Exibido em cinemas fechados da Mostra e no Vale do Anhagabaú paulistano, o longa documental conquistou o público brasileiro, que o elegeu como “melhor filme não-ficcional” da competição.
A noite festiva dos prêmios, que aconteceu no mesmo Anhangabaú, entregou o Troféu Leon Cakoff (pelo conjunto da obra e trajetória) à atriz e cineasta Helena Ignez, a moça do “Padre” de Joaquim Pedro, a estrela loura e esguia do “Bandido da Luz Vermelha”, a “Mulher de Todos”. E exibiu, como filme-surpresa, o longa “Urubus”, ode à galera do “picho”. Noite mais paulistana impossível: Anhangabaú, Helena Ignez (baiana que adotou São Paulo), pichadores da perifa, diretora de origem japa formada pela USP e filmes “cakofianos’ vindos da Turquia, da Costa Rica, do Ártico finlandês-russo, do Harlem, da “Palestina síria”, do Japão e das selvas filipinas.
Agora, até esse domingo, 7 de novembro (acesso até 23h59), os “mostreiros” poderão ver mais 50 filmes na plataforma on-line da Mostra SP. A programação está disponibilizada em mostraplay.mostra.org. E incluiu joias raras como o francês “Retorno a Reims” e o tcheco “O Atlas dos Pássaros”. E três candidatos a finalistas ao Oscar: “Olga”, da Suíça, “Brighton 4th”, da Geórgia, e “Yuri”, da Indonésia. Esse ano, por sinal, o festival paulistano, o maior do país, exibiu 18 filmes apresentados à Academia de Hollywood, interessados em disputar uma vaga na categoria melhor produção internacional. Exibiu, também, três dos cinco mais cotados (“Compartment no. 6”, “Titane” e o iraniano “Um Herói”). Os outros dois, inéditos entre nós, são “Drive my Car”, do Japão, e “A Mão de Deus”, do oscarizado Paolo Sorrentino, sobre passagem de Diego “a mão de Deus” Maradona, pelo Nápoli. O representante brasileiro é o curitibano-baiano “Deserto Particular”, de Aly Murita, também exibido pela Mostra.
OS PREMIADOS
. “Clara Sola”, de Nathalie Álvarez Mesén (Costa Rica e Suécia) – melhor filme pelo júri oficial, melhor atriz (Wendy Chinchila Araya), Prêmio Brada de melhor direção de arte (Amparos Baeza e Agustin Moreau)
. “Compartment no. 6” (Cabine Número 6) – de Juho Kuosmanen (Finlândia e Rússia) – melhor ator para o russo Yuri Borisov
. “Urubus”, de Cláudio Borrelli (Brasil) — Prêmio da Crítica de melhor filme brasileiro, Prêmio do Público de melhor ficção brasileira
. “Pequena Palestina, Diário de um Cerco”, de Abdallah Al-Katib (Líbano, França, Catar) – Menção honrosa do Júri Oficial
. “O Compromisso de Hasan”, de Semi Kaplanoglu (Turquia) – Prêmio da Crítica para melhor filme internacional
. “A Felicidade das Coisas”, de Thaís Fujinaga — Prêmio Abraccine (Associação Brasileira de Críticos de Cinema) para melhor filme de jovens realizadores (até segundo longa)
. “O Melhor Lugar do Mundo”, de Caco Ciocler (Brasil) – Prêmio do Público de melhor documentário brasileiro
. “Onoda, Dez Mil Noites na selva”, de Arthur Harari (França, Japão) – Prêmio do Público para melhor ficção internacional
. “Summer of Soul (…ou Quando a Revolução Não Pôde Ser Televisionada”, de Almir “Questlove” Thompson. (EUA) – Prêmio do Público para melhor documentário internacional
. Prêmio Leon Cakoff para a atriz e diretora Helena Ignez
. Prêmio Projeto Paradiso (Bolsa no valor de 30 mil reais) para melhor roteiro inédito – “Entre Espelhos”, de João Braga, produtora de Ailton Franco.