Cravos

Por Maria do Rosário Caetano

A imagem da Bahia no inconsciente brasileiro deve muito a três gerações da família Cravo: Mário Cravo Jr, Mário Cravo Neto e Christian Cravo, que deveria chamar-se Mário Cravo Bisneto, mas a mãe dinamarquesa fincou pé e não permitiu que “tal desatino” fosse inscrito no registro civil.

Os três artistas têm suas trajetórias documentadas no filme “Cravos”, de Marco Del Fiol, que chega nessa quinta-feira, 25 de novembro, aos cinemas.

O diretor Del Fiol é autor de “Espaço Além – Marina Abramovic e o Brasil”, documentário vendido para 40 mercados internacionais, devido ao apelo de sua protagonista, a artista performática de origem sérvia. E que, mesmo no Brasil, teve bilheteria significativa para uma não-ficção.

Quem mais aparece em “Cravos” é Christian, de 47 anos, filho do fotógrafo Mário Cravo Neto com sua primeira mulher, a jovem dinamarquesa que se negou a registrar o filho como Mário Cravo Bisneto. Quando o filme foi realizado – sua première se deu na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, três anos atrás – o escultor Mário Cravo Jr (1923-2018) era uma velhinho nonagenário, esperto e arisco, cheio de vida e tiradas hilárias, disposto a beijar amigas em badaladas noites de autógrafos em sua Salvador natal. E a desconsertar o cineasta-entrevistador, que teimava em gravar seu depoimento. Já perdera o filho, o grande fotógrafo Cravo Neto (1947-2008), aos 60 e pouquinhos anos, vítima de câncer de pele.

A família sempre conviveu com câmeras de fotos fixas e imagens em movimento. Em determinando trecho do filme, em briga doméstica (como se briga em “Cravos”!!!), a segunda esposa de Neto avisa que ele só faz invadir a privacidade dela, filmando tudo, para avisar: “sai da frente que eu tô retada!”.

Além do mais, personagens amados na Bahia de Todos os Santos – quem não conhece “A Fonte”, o popular “museu das bundas”, escultura do velho Mário plantada próximo ao Elevador Lacerda? –, os Cravo foram muito filmados. Por eles mesmos e por outros, inclusive pelo cineasta André Luiz Oliveira, diretor de “Meteorango Kid” e “Loucos por Cinema”.

Por isso Del Fiol dispunha de farto acervo para trabalhar. Mas preferiu concentrar-se em filmagens próprias colhidas em três expedições de Christian Cravo à África (Tanzânia, Uganda e Namíbia). Nestes países, o jovem baiano fotografa hipopótamos, imensos jacarés e lama, muita lama (Tanzânia), gorilas (Uganda) e bancos de areias desérticas (Namíbia). Busca formas, sempre, inusitadas, quase abstratas. Diz que cansou-se de registrar a dor humana depois de diversas incursões ao Haiti. Foi decisivo ver corpos empilhados e queimados, pois, devido ao terremoto, não havia como dar-lhes enterro digno.

Cravo avô e pai fizeram da Bahia sua base territorial de ação criativa. Christian diz que, se quisesse firmar-se como autor, tinha que buscar outras paragens. Mas, decerto influenciado pelas imagens de Mário Cravo Neto e suas incursões pela Bahia Negra do candomblé, buscaria o Haiti e a África, uma de nossas origens mais férteis.

O filme dura longos 109 minutos. Mas tem o que dizer. Christian é muito articulado, sintético e franco em suas opiniões. E de temperamento em tudo oposto ao avô, um baiano despachado e muito bem-humorado, e ao pai, um hippie malucão. Filho de mãe européia, o rapaz garante ter crescido sem a autoridade paterna. O avô, que praticamente o criou, um dia lhe deu um ultimatum: “você tem 15 dias para encontrar seu rumo. Eu te pago para você deixar a minha casa”. Sempre voltava aos seus. Casou-se como um perfeito mauricinho, para desespero do pai doidão e avesso a convenções. Está tudo registrado no filme.

A distribuidora Elo Company e as produtoras Casa Redonda e Mão Direita lançam, também nessa quinta-feira, o documentário “Meu Querido Supermercado”, de Tali Yankelevich, que dividiu com “Segredos do Putumayo”, de Aurélio Michiles, o Prêmio Especial do Júri no É Tudo Verdade de 2019. E que foi selecionado para festivais importantes como o IDFA (Festival de Documentários de Amsterdã), Visões do Real, na Suíça, e Festival de Guadalajara, no México.

O longa documental, que marca a estreia da jovem realizadora, mostra a rotina dos funcionários de um supermercado. Eles falam de afetos, medos e sonhos, enquanto executam tarefas repetitivas em espaço confinado, entre gôndolas, balcões e refrigeradores. Estreia surpreendente de uma diretora em quem devemos prestar atenção.

 

Cravos
Brasil, 109 minutos, 2021
Direção: Marco Del Fiol
Trilha sonora: Benjamin Taulbkin
Distribuição: Elo Company, Casa Redonda e Mão Direita
Documentário sobre a produção artística e os conflitos entre três gerações dos baianos Mário Cravo Jr, Mário Cravo Neto e Christian Cravo

Meu Querido Supermercado
Brasil, 80 minutos, 2021
Direção: Tali Yankelevich. Documentário sobre a rotina de funcionários de um supermercado
Distribuição: Elo Company, Casa Redonda e Mão Direita

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado.