Jane Campion discute masculinidade tóxica em “Ataque dos Cães”
Por Maria do Rosário Caetano
Jane Campion está de volta, aos 67 anos. E em alta potência. Ou seja, com a criatividade de seus anos de ouro. Aquele período entre 1990 e 93, quando ela conquistou o mundo – em especial as mulheres – com dois filmes formidáveis: “O Piano”, Palma de Ouro em Cannes e Oscar de melhor roteiro, e “Um Anjo em minha Mesa”. Este filme caiu das nuvens graças à consagração francesa e hollywoodiana destinada àquela maravilha protagonizada por Holly Hunter, Harvey Keitel e Anna Paquin.
A cineasta neozelandesa, que antes do “Anjo” e do “Piano” fizera dois filmes por nós desconhecidos (“Two Friends” e “Sweetie”), realizaria quatro outros, mas não causaria o mesmo frisson. Pois agora, com “Ataque dos Cães” – estranhíssimo título brasileiro para “The Power of the Dog” – a diretora volta a brilhar de forma arrebatadora.
O filme – em cartaz em poucas salas de cinema – chegará à Netflix em primeiro de dezembro. Vê-lo na telona constituirá prazer redobrado, pois a lacunar e fascinante história que Jane encontrou em romance de Thomas Savage, passa-se em largos horizontes (recortados por montes e picos) no estado de Montana, nos EUA dos anos 1920.
Os irmãos Phil (Benedict Cumberbatch) e George Burbank (Jesse Plemons) criam gado numa imensa e rica fazenda. Colabora com eles uma peonada viril, barulhenta e trabalhadora. Phil, embora formado em Yale, é bruto, majérrimo, barbudo, de aspecto sujo, descuidado mesmo. George é asseado, rechonchudo, de bons modos. Eles costumam fazer refeições, em grupo, no restaurante de Rose (Kirsten Dunst), uma viúva que já exerceu o ofício de pianista em sessões mudas de cinema. Com ela trabalha, na função de garçom, o filho Peter (Kodi Smit-McPhee), garoto de gestos refinados e afeminados. Ele adora compor flores de papel e folhear revistas de noivas. No que é acompanhado pela mãe. Satisfeita, ela utiliza as rosas artificiais como enfeite das rudes mesas do restaurante. Mesmo que o bruto Phil as utilize como lume para acender seus cigarros. E emudeça o piano (instrumento-fetiche de Jane Campion), nem que seja a pontapés. Tudo que lembre arte, ou delicadeza, deixa o criador de gado possesso.
Um dia, o rechonchudo e educado George Burbank resolve casar-se – sem avisar a ninguém – com Rose. Phil odeia a ideia e passa a hostilizar a cunhada.
As espectadoras verão no vestido que Rose usará em recepção doméstica ao governador de Montana (Keith Carradine, em participação especial) o belíssimo e delicado símbolo do melhor cinema da grande diretora neozelandesa. A ex-viúva deverá mostrar, às autoridades, seus dotes ao piano. Está linda e enfeitada com flores nos cabelos. Sua imagem é angelical, mas dentro dela há um mundo em convulsão.
O jovem Peter irá estudar Medicina na cidade. Regressará para temporada de férias em companhia da mãe e do discreto padrasto. O filme tomará, então, rumos totalmente inesperados.
O roteiro de Jane Campion é lacunar, sugestivo, insinuante, jamais explícito. Ela cria, com a potência de sua narrativa (e uma fotografia de tirar o fôlego) atmosfera arrebatadora. Mais uma vez, como em “O Piano”, ela fará da imensidão da natureza força catalizadora/desestabilizadora de energias vitais.
Embora sejam filmes bastante diferentes, há algo em comum entre “Ataque dos Cães” e “Está Tudo Bem” (novo filme de François Ozon, atração do Festival Varilux, a partir dessa quinta-feira). Os dois longas mergulham fundo nas paixões humanas, na complexidade de nossos desejos, passando, ambos, a anos luz do facilitário do cinema cor-de-rosa.
As proximidades do filme de Jane Campion parecerão mais evidentes com “O Segredo de Brokeback Mountain”, do chinês Ang Lee (2005), e “Os Irmãos Sisters”, do francês Jacques Audiard (2018), propostas renovadoras dos westerns de outrora, habitados por machos impolutos. Mas “The Power of the Dog” é um filme que carrega poderosa sensibilidade feminina.
A cineasta neozelandensa abre espaço para o coprotagonismo de Rose. E para sua dolorosa solidão nas amplas paisagens de Montana. Afinal, ela se vê cercada de homens (e de um machismo tóxico) e de milhares de cabeças de gado. Logo a sensível personagem, que viveu na cidade, tocou piano no cinema, casou-se, teve um filho, enviuvou-se, tornou a casar-se e ama buquês de flores (até artificiais) terá que enfrentar seus demônios.
O escritor estadunidense Thomas Savage (1915-2003) publicou “The Power of the Dog” em 1967. Buscou o título em um salmo bíblico: “Livra a minha alma da espada e a minha predileta, do poder do Cão”. Jane Campion respeitou o título original, pois ele é justificado (citado) em sua narrativa. Já o título brasileiro não quer dizer nada. Poderá, inclusive, afugentar as mulheres. Muitas poderão supor tratar-se de filme em que matilhas atacam seres humanos.
Há traduções que melhoram títulos originais. É o caso de “Crepúsculo dos Deuses”, melhor ainda que “Sunset Boulevard” (Billy Wilder, 1950). Jane Campion, que foi premiada como melhor diretora no Festival de Veneza, em setembro último, por este filme (que terá lugar cativo nas listas de melhores do ano), seria tomada pelo espanto se soubesse o que os tradutores da Netflix brasileira fizeram com o nome de seu nono longa.
Fica, pois, a advertência: esqueçam o título equivocado. Vejam o filme nas salas de cinema (em São Paulo, no Espaço Itaú Augusta ou no Kinoplex). A tela grande só fará valorizar a paixão de Jane pela natureza e seus desafios. Se não der, aguardem o dia primeiro de dezembro, quando “The Power of the Dog” será disponibilizado pela Netflix.
Ataque dos Cães
EUA, Reino Unido, Canadá, Nova Zelândia, Austrália, 126 minutos, 2001
Direção: Jane Campion
Elenco: Benedict Cumberbatch, Jesse Plemons, Kristen Dunst, Kodi Smit-McPhee, Keith Carradine, Elisabeth Moss, Thomasin McKenzie
Disponível nos cinemas
Na Netflix, a partir de primeiro de dezembro
FILMOGRAFIA
Jane Campion (Wellington, Nova Zelândia, 30/04/1954)
2021 – “Ataque dos Cães”
2013 – “Top of the Lake” (série de TV)
2009 – “Brilho de uma Paixão”
2008 – “8” – projeto coletivo (vários diretores)
2003 – “Em Carne Viva”
1999 – “Fogo Sagrado”
1996 – “Retrato de uma Mulher”
1993 – “O Piano”
1990 – “Um Anjo em minha Mesa”
1989 – “Sweetie”
1986 – “Two Friends”