Mostra marca os 60 anos do Parque Indígena do Xingu
De 1 a 12 de dezembro, a Mostra Ecofalante de Cinema promove a programação especial Xingu 60 Anos, com 31 filmes disponibilizados de forma online e gratuita.
O evento marca as seis décadas de existência do Parque Indígena do Xingu, criado em 1961 para garantir a sobrevivência, melhores condições de vida e a posse da terra à população indígena da região e para preservar sua cultura, seus hábitos e suas crenças. À época a maior e mais importante reserva indígena brasileira, o parque foi uma iniciativa de sertanistas liderados pelos irmãos Villas-Bôas – Cláudio, Orlando e Leonardo.
A programação traz curtas, médias e longas-metragens, reunindo produções pioneiras realizadas a partir de 1932 até títulos finalizados em 2021 e ainda inéditos.
Destacam-se obras assinadas por cineastas consagrados – como Aurélio Michiles, Mari Corrêa, Maureen Bisilliat, Paula Gaitán e Vincent Carelli – ao lado de trabalhos recentes de realizadores indígenas originários da região do Xingu, como Takumã Kuikuro, que estreia na mostra dois novos títulos, e Kamikia Kisêdjê.
Coprodução entre a França, Brasil e Bélgica, “Raoni” (1978), o filme de abertura da mostra, foi indicado ao Oscar de melhor documentário (em sua versão norte-americana, com locução de Marlon Brando). Na versão brasileira, com a voz de Paulo César Pereio, conquistou quatro premiações no Festival de Gramado, incluindo a de melhor filme. É esta a versão exibida na mostra. A obra acompanha a luta do cacique Raoni pela preservação do Parque Nacional do Xingu, ameaçado por grileiros, caçadores e madeireiras. O longa-metragem foi filmado clandestinamente no Parque Nacional do Xingu no princípio de 1975, durante a ditadura militar brasileira. A direção é assinada pelo cineasta e escritor belga Jean-Pierre Dutilleux (de “Amazon Forever” e “Une Histoire Amazonienne”) e pelo fotógrafo e montador brasileiro Luiz Carlos Saldanha. Na mostra, o filme é exibido em cópia recentemente digitalizada em resolução 4K.
Da fotógrafa Maureen Bisilliat, que foi parceira dos irmãos Villas-Bôas, a programação exibe “Xingu/Terra” (1981), um retrato do cotidiano de uma aldeia do grupo indígena Mehinaku, no Alto Xingu, contemplado com dupla premiação no Festival de Brasília. Plantação, pesca, cerâmica, a preparação da tinta de urucum, a modelagem da cerâmica doméstica, o relacionamento entre pais e filhos e o cerimonial de casamento são alguns dos aspectos abordados na obra. Inglesa radicada no Brasil, Bisilliat fez uma série de viagens ao Xingu, tendo lançado em 1979, em coautoria com os irmãos Cláudio e Orlando Villas-Bôas, o livro “Xingu: Território Tribal”. Segundo especialistas, ela desenvolveu um dos mais sólidos trabalhos de investigação fotográfica, focalizando temas como os sertanejos e indígenas.
Em “O Brasil Grande e os Índios Gigantes” (1995), o cineasta Aurélio Michiles (dos longas-metragens “O Cineasta da Selva” e “Tudo por Amor ao Cinema”) narra a saga da tribo Krenakarore (também conhecidos como Panará) e retrata a violenta mudança no destino dos indígenas após seu contato com os homens brancos. A obra inclui depoimentos do antropólogo Darcy Ribeiro e do economista Roberto Campos. Participam ainda os sertanistas Orlando e Cláudio Villas-Bôas, os primeiros brancos a entrarem em contato com os Krenakarore. O filme é uma produção do ISA – Instituto Socioambiental.
Até hoje inédito comercialmente no Brasil, “Uaka” (1988) documenta delicadamente o universo e os movimentos de um dos rituais mais famosos dos povos indígenas xinguanos, o Kuarup. Premiado no Festival de Amiens (França), a obra marcou a estreia na direção de longas-metragens de Paula Gaitán. Viúva do cineasta Glauber Rocha, Gaitán dirigiu longas como “Diário de Sintra” e “Exilados do Vulcão”, este último vencedor do Festival de Brasília.
Dirigido por Daniel Solá Santiago (de “Família Alcântara”) e exibido no festival É Tudo Verdade, “Coração do Brasil” (2012) reúne três integrantes da expedição que demarcou o centro geográfico do Brasil em 1958 – o explorador Sérgio Vahia de Abreu, o documentarista Adrian Cowell e o cacique Raoni. Eles revisitam aldeias, reencontrando personagens e verificando a condição dos indígenas passados 50 anos da criação do Parque Indígena do Xingu.
Curta-metragista e documentarista premiado em festivais como Havana e Brasília, o cineasta Nilson Villas-Bôas promove em “O Último Kuarup Branco” (2008) uma reavaliação do Parque Indígena do Xingu após 50 anos de sua criação. Na obra, os indígenas mais velhos ainda não esqueceram as terras originais, que deixaram para trás, e alguns querem voltar às suas antigas origens.
Estão presentes em Xingu 60 Anos obras pioneiras, assinadas por Luiz Thomaz Reis, Jesco von Puttkamer e Heinz Forthmann. O documentário silencioso “Ao Redor do Brasil”, de 1932, reúne os principais registros do major Luiz Thomaz Reis (1878-1940) em suas incursões pelo interior das Regiões Norte e Centro-Oeste do Brasil, entre 1924 e 1930, acompanhando diferentes episódios do projeto militar-científico-civilizatório conhecido como Comissão Rondon.
Fotógrafo e cineasta de origem alemã, Heinz Forthmann (1915-1978) produziu uma obra que situa-se entre as mais importantes do cinema etnográfico brasileiro. Integrou a equipe de Expedições do Serviço de Proteção ao Índio (SPI) que, a partir de 1942, registrou imagens preciosas do interior do Brasil e dos povos indígenas do país. Com destaque para sua bela fotografia em cores, “Kuarup”, filme que realizou em 1966 e integra a programação, documenta o ritual homônimo dedicado aos mortos ilustres.
Considerado um dos precursores da antropologia visual no Brasil, o cineasta e fotógrafo Jesco von Puttkamer (1919-1994) dedicou grande parte da sua vida à produção de um dos maiores acervos audiovisuais existentes sobre os povos indígenas brasileiros. A programação inclui três títulos do realizador, um deles inédito no Brasil: “O Destino das Mulheres Amazonas” (1960, inédito no Brasil), sobre a lenda das amazonas e como essas mulheres e seus costumes podem ter sobrevivido em outras tribos da região. Já “Contato com uma Tribo Hostil” (1965) documenta os primeiros contatos dos irmãos Villas-Boas com os indígenas Txicão (Ikpeng) em 1965. “Incidente no Mato Grosso” (1965), por sua vez, focaliza a transferência do grupo indígena Kaiabi para o Parque do Xingu. Está programado ainda “Bubula, o Cara Vermelha” (1999), documentário sobre Jesco von Puttkamer dirigido por Luiz Eduardo Jorge, que narra sua trajetória histórica durante quatro décadas e foi premiado no Festival de Brasília e no Cine PE, entre outros eventos.
Grande homenageado na terceira edição da Mostra Ecofalante de Cinema, em 2014, Washington Novaes (1934-2020) foi um jornalista que tratou com especial destaque os temas de meio ambiente e culturas indígenas. Em “Xingu – Terra Ameaçada”, série de 2007, cujo primeiro episódio é exibido na mostra, ele revisita a região do Xingu, na qual havia realizado outra série documental, “Xingu – Terra Mágica”, na década de 1980, e encontra os mesmos grupos indígenas anteriormente retratados, só que agora sofrendo com a pressão do desenvolvimento econômico.
Xingu 60 Anos exibe seis produções do Vídeo nas Aldeias, projeto criado em 1986 que utiliza recursos audiovisuais para fortificar a identidade dos povos indígenas e sua cultura. O grande destaque é “Itão Kue-gü – As Hiper Mulheres” (2011), dirigido por Carlos Fausto, Leonardo Sette e Takumã Kuikuro. A obra venceu o Olhar de Cinema – Festival Internacional de Curitiba, foi premiada no FICA – Festival Internacional de Cinema Ambiental e nos festivais de Brasília e Gramado, além de ter sido selecionado para eventos internacionais prestigiosos, como os festivais de Roterdã, Bafici-Buenos Aires e World Cinema de Amsterdã. O longa focaliza o maior ritual feminino da região do Alto Xingu.
Também oriundos do mesmo projeto são “Kiarãsâ Yõ Sâty – O Amendoim da Cutia” (2005, eleito melhor documentário na Jornada Internacional de Cinema da Bahia e no forumdoc.bh – Festival do Filme Documentário e Etnográfico de Belo Horizonte), de Paturi Panará e Komoi Panará, sobre a colheita do amendoim e o cotidiano em uma aldeia Panará; “Imbé Gikegü – Cheiro de Pequi” (2006), de Takumã Kuikuro e Maricá Kuikuro, que explica, com muito humor, porque o pequi tem cheiro forte, segundo a lenda Kuikuro; e “Kîsêdjê ro Sujareni – Os Kisêdjê Contam a sua História” (2011), de Kamikia Kisêdjê e Whinti Suyá, reunindo narrativas sobre os primeiros contatos com o homem branco e a história recente do povo Kîsêdjê.
Codirigido por Mari Corrêa – que tem outros três filmes no evento – e Vincent Carelli (dos longas “Corumbiara” e “Martírio”), “De Volta à Terra Boa” (2008) narra a trajetória do grupo indígena Panará, do desterro ao reencontro com seu território original. A narrativa parte do primeiro contato com o homem branco, em 1973, passa pelo exílio no Parque Indígena do Xingu e chega até a luta e reconquista da posse de suas terras. A produção venceu dois prêmios na Mostra Internacional do Filme Etnográfico (Rio de Janeiro).
Da cineasta Mari Corrêa, a programação apresenta outras três realizações. “Pïrínop: Meu Primeiro Contato” (2007, codirigido com Karané Ikpeng) traz as lembranças do primeiro contato dos indígenas Ikpeng com o homem branco, o exílio, a terra abandonada, o desejo e a luta pelo retorno. Já “O Corpo e os Espíritos” (1996) relata o encontro entre duas visões opostas da saúde, com médicos e pajés tentando conciliar medicina moderna e xamanismo. Por sua vez, “Para Onde Foram as Andorinhas?” (2015) alerta sobre as mudanças climáticas e o crescente calor, que prejudicam as árvores, queimam a floresta, calam as cigarras e estragam os frutos da roça. O filme, co-realizado com o ISA, foi exibido na Conferência do Clima em Paris (COP 21).
Também integra a programação o filme “Yarang Mamin” (2019), uma corealização do Instituto Catitu e do Instituto Socioambiental (ISA) dirigida pelo cineasta Kamatxi Ikpeng. O documentário retrata o dia a dia de mulheres que formaram um movimento para coletar sementes florestais, um trabalho que possibilitou o plantio de cerca de 1 milhão de árvores nas bacias do Rio Xingu e Araguaia.
Do cineasta Takumã Kuikuro, codiretor de “Itão Kue-gü – As Hiper Mulheres” e “Imbé Gikegü – Cheiro de Pequi”, o evento promove a estreia de dois trabalhos inéditos. “Kukuho – Canto Vivo Wauja” (2021) focaliza um músico, contador de histórias e líder da comunidade Waujá do Xingu que tenta preservar e compartilhar a música tradicional do seu povo. “Território Pequi” (2021) mostra como o pequi se tornou símbolo de vasto patrimônio cultural e genético. Membro da aldeia indígena Kuikuro e atualmente vivendo na aldeia Ipatse, no Parque Indígena do Xingu, Takumã Kuikuro recebeu em 2017 o prêmio honorário Bolsista da Queen Mary University of London. Foi, em 2019, o primeiro jurado indígena do Festival de Brasília.
Outros três filmes são dirigidos ou codirigidos pelo cineasta Kamikia Kisêdjê. “A Última Volta do Xingu” (2015, de Kamikia Kisêdjê e Wallace Nogueira) expõe os arrasadores impactos socioambientais da construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte sobre os povos da Volta Grande do rio Xingu. Vencedor de menção honrosa na Mostra Ecofalante de Cinema, “Topawa” (2019, de Kamikia Kisêdjê e Simone Giovine) traz depoimentos de mulheres da Terra Indígena Apyterewa sobre os primeiros contatos com os homens brancos, enquanto confeccionam redes e cestas a partir da palmeira de tucum. “Wotko e Kokotxi, Uma História Tapayuna” (2010, de Kamikia Kisêdjê) conta a trágica história do povo Tapayuna, que, durante décadas, combateu a invasão de suas terras. No final dos anos 1950, com a intensificação da exploração da borracha na região, alguns brancos deram a eles carne envenenada, fazendo com que grande parte do grupo morresse. O filme aborda também o ressurgimento desse povo Tapayuna, com narração por um casal sobrevivente.
Já “A História da Cutia e do Macaco” (2012) é assinado por mulheres cineastas indígenas – Wisio Kayabi e Coletivo das Cineastas Xinguanas. A obra é baseada em uma história tradicional do povo Kawaiweté.
A programação de filmes completa-se com três títulos recentes. “O Índio Cor de Rosa Contra a Fera Invisível: A Peleja de Noel Nutels” (2020), de Tiago Carvalho, reúne imagens inéditas do acervo do médico sanitarista Noel Nutels (1913-1973), que percorreu o Brasil tratando da saúde de indígenas, ribeirinhos e sertanejos, nunca deixando de registrar essas experiências com uma câmera de cinema. Multipremiada, a obra foi vencedora do prêmio de público de melhor documentário, menção especial do júri e prêmio dos estudantes no Festival de Biarritz.
“Olhares Cruzados – Parque Indígena do Xingu 50 Anos” (2011), de João Pavese, tem como fio condutor depoimentos de indígenas e não indígenas sobre a história, dilemas e desafios da consagrada terra indígena, situada no coração do Brasil. Já em “O Segundo Encontro” (2019), a cineasta Veronique Ballot recupera os passos de seu pai, o repórter-fotográfico Henri Ballot, que integrou a expedição dos irmãos Villas-Bôas na qual se deu o primeiro contato entre homens brancos e indígenas Metuktire, no norte de Mato Grosso.
Com o objetivo de conhecer e entender melhor o Parque Indígena do Xingu – em que circunstâncias ele foi criado, o impacto da criação da primeira grande Terra Indígena demarcada pelo governo federal e os desafios que enfrenta – Xingu 60 Anos organizou três debates:
Debate 1: Parque Indígena do Xingu (PIX): Origens – 2/12, quinta-feira, às 18h
Com André Villas-Bôas (antropólogo e secretário executivo do ISA – Instituto Socioambiental), Maiware Kaiabi (líder do povo Kaiabi) e Mekaron Txucarramãe (líder Kayapó e primeiro indígena a se tornar diretor do PIX), com mediação de Marina Kahn (presidente do Iepé – Instituto de Pesquisa e Formação Indígena).
O encontro pretende contextualizar a decisão de criar o parque, o momento histórico em que esse projeto se concretizou e os obstáculos que os seus idealizadores tiveram que enfrentar.
Debate 2: Imagens do Xingu – 3/12, sexta-feira, às 18h
Com Carlos Fausto (antropólogo e documentarista), Kamikia Kisêdjê (cineasta), Takumã Kuikuro (cineasta), Mari Corrêa (cineasta, fundadora e diretora do Instituto Catitu) e Vincent Carelli (indigenista, documentarista e fundador do projeto Vídeo nas Aldeias), com mediação de Flávia Guerra (documentarista e jornalista cultural).
O encontro promove uma conversa sobre a representação audiovisual dos povos indígenas da região do Xingu, desde a documentação dos cineastas – em sua maioria, estrangeiros – que acompanharam os irmãos Villas-Bôas em suas expedições, até o recente surgimento dos coletivos indígenas de cinema e sua apropriação do meio audiovisual e de sua própria representação.
Debate 3: O Xingu Hoje – 11/12, sábado, às 18h
Com Douglas Rodrigues (médico sanitarista, do Departamento de Medicina Preventiva da Escola Paulista de Medicina / Universidade Federal de São Paulo), Ianukulá Kaiabi Suyá (presidente da ATIX – Associação Terra Indígena Xingu), Ivã Bocchini (indigenista do ISA – Instituto Socioambiental e articulador dos planos de gestão territorial – TIX), Kátia Ono (articuladora comunitária e assessora técnica em manejo de recursos naturais e fogo do ISA – Instituto Socioambiental), Sofia Mendonça (médica sanitarista e coordenadora do Projeto Xingu, do Departamento de Medicina Preventiva, da Escola Paulista de Medicina / Universidade Federal de São Paulo), Tapi Yawalapiti (professor, ex-vice-presidente do IPEAX – Instituto de Pesquisa Etno Ambiental do Xingu ex-presidente do Conselho Local de Saúde Indígena do Alto Xingu do Pólo Base Leonardo Villas Bôas e liderança indígena) e Watatakalu Yawalapiti (liderança das mulheres indígenas do Alto Xingu), com mediação de Biviany Rojas (ISA – Instituto Socioambiental).
O debate coloca em discussão quais são as condições atuais de vida e manutenção do modo de vida dos povos indígenas – o Parque Indígena do Xingu está cumprindo a sua função original? Como os povos indígenas veem esse território hoje e a possibilidade de sua preservação diante dos muitos desafios?
Xingu 60 Anos – Programação especial da Mostra Ecofalante de Cinema
Data: 1 a 12 de dezembro
Online e gratuito
Acesso aos filmes e demais atividades: www.ecofalante.org.br