Festival de Brasília inicia competição com “Alice dos Anjos”

Por Maria do Rosário Caetano

O Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, o mais antigo do país, inicia nessa terça-feira, 7 de dezembro, no Canal Brasil e na plataforma InnSaei TV, sua quinquagésima-quarta edição (a segunda on-line) com “Alice dos Anjos”, o primeiro dos seis candidatos (todos 100% inéditos) ao Troféu Candango. Trata-se de ficção infanto-juvenil vinda da Bahia, dirigida por Daniel Leite Almeida.

A proposta do primeiro concorrente é das mais curiosas – promover fusão do universo fabular de Lewis Carroll (“Alice no País das Maravilhas”) com a pedagogia da libertação de Paulo Freire. Tudo ambientado no sertão nordestino e banhado em música.

Alice dos Anjos (Tiffanie Costa) é uma menina esperta que, depois de empreender correria atrás de bode apressado, acabará transportada a lugar mágico, repleto de personagens malucos. Acabará, também, envolvida em conflito que antagoniza comunidades tradicionais a influente coronel, empenhado na construção de usina hidrelétrica.

No elenco de “Alice dos Anjos”, além de Tiffanie, estão o ator paulistano-carioca Fernando Alves Pinto (“Terra Estrangeira”) e os baianos Cris Magalhães, Vicka Matos, Pajé Aripuanã, Josy da Costa e Dayse Maria. Na trilha sonora, o telúrico João Omar, filho das Carrancas do Rio Gavião, onde impera seu pai, o compositor e cantador Elomar Figueira de Mello. O filme foi rodado em Vitória da Conquista, terra de Glauber Rocha e sede da UESB (Universidade Estadual da Bahia).

“Alice” será exibido no Canal Brasil, no final da noite (23h30). E reprisado no dia seguinte (quarta-feira, 8 de dezembro) no InnSaei TV. O mesmo acontecerá com os outros cinco concorrentes do mais tradicional dos festivais brasileiros: o mineiro “Lavra”, de Lucas Bambozzi, o brasiliense “Acaso”, de Luis Jungmann Girafa, o paulistano “Ela e Eu”, de Gustavo Rosa de Moura, o goiano “De Onde Viemos, para Onde Vamos?”, de Rochane Torres, e o carioca “Saudade do Futuro”, de Ana Azevedo.

A noite inaugural do Festival de Brasília contará, ainda, com dois filmes em exibições especiais. “Já que Ninguém me Tira para Dançar”, delicioso documentário de Ana Maria Magalhães sobre sua amiga, a atriz Leila Diniz (1945-1972), que morreu vítima de acidente aéreo, aos 27 anos. E “Catadores de História”, de Tânia Quaresma, cineasta mineira que escolheu Brasília para viver e para ambientar sua produção audiovisual. Este seu derradeiro filme, um longa documental, foi realizado cinco anos atrás, na região da Via Estrutural. A diretora de “Nordeste, Cordel, Repente e Canção”, filme que encantou o germânico Werner Herzog, morreu na capital brasileira, em julho deste ano. Ela é uma das homenageadas, in memoriam, pelo festival, ao lado dos atores Paulo José, Paulo Gustavo, Tarcísio Meira, Luiz Gustavo e Lauro Montana. E da professora e escritora Lucília Garcez.

A atriz Lea Garcia, de 88 anos, patrimônio do cinema brasileiro (“Orfeu Negro”, “A Deusa Negra” “Filhas do Vento”) será homenageada em vida. Ela receberá um Troféu Candango Especial por sua longa e luminosa trajetória artística.

Para se entender bem com a programação de um festival 100% on-line, transmitido por uma emissora de TV (Canal Brasil) e uma plataforma de streaming (InnSaei TV), o espectador deve prestar (minuciosa) atenção no site da Secretaria de Cultura do DF. Mas algumas coordenadas facilitam a fruição dos 63 filmes de curta e longa-metragem programados esse ano: os doze curtas da competição brasileira, os quatro longas e os oito curtas da Mostra Brasília (e também os convidados especiais) serão exibidos por 24 horas no InnSaei TV.

O segundo longa da competição brasileira – “Lavra”, de Bambozzi (quarta-feira, reprise na quinta), é definido como “uma ficção”. Como só foi exibido, até agora, no Festival de Amsterdã, a meca do cinema documental, tudo indica que seja um híbrido. É o que o trailer dá a entender: Camila (Camila Motta) retorna à sua terra natal, depois que o rio de sua cidade foi contaminado pelo maior crime ambiental do Brasil, provocado pelo rompimento da barragem de uma mineradora. A moça segue o caminho da lama tóxica. Outra barragem se rompe e mata 300 pessoas.

Este é o terceiro longa de Bambozzi, cineasta, artista visual e pesquisador de novas mídias. O primeiro, o fascinante “O Fim do sem Fim”, ele realizou com Cao Guimarães e Beto Magalhães, e resultou de encontros com praticantes de ofícios em extinção. O segundo, engendrou sozinho – “Do Outro Lado do Rio” – em zonas fronteiriças entre Brasil e Guiana Francesa.

Bambozzi é um dos integrantes do grupo que inseminou o documentário brasileiro com as invenções da videoarte, tendo em Eder Santos um de seus nomes mais representativos. Eder, aliás, está na produção executiva de “Lavra”. E o Grivo, força sonora das Gerais, na trilha.

“Acaso” marca a estreia do arquiteto, artista plástico e fotógrafo Luis Jungmann Girafa no longa-metragem. Para construir sua narrativa, que ele define como “on the road”, Girafa convocou nomes dos mais significativos da vida cultural brasiliense (atores, cantores e poetas). De Hugo Rodas a Renato Mattos, do saudoso Andrade Júnior (1945-2019) ao amigo João Antônio (os dois trabalharam juntos em muitos filmes, em especial em “Rosinha”), de Bidô Galvão a Celso Araújo, de Kuka Escosteguy a Jorge Du Pan, de Carmen Moretzsohn a Luciano Porto, de Emanuel de Lavor a Maria Lúcia Verdi, de Walter Cotton a Suyan de Mattos. Mais Rachel Mendes, Clara Luz, Gaivota Naves, Valéria Pena-Costa, Jorge Crespo e participação especial da bailarina e atriz Eliana Carneiro.

A sinopse de “Acaso” nos indica intrincados caminhos: “A cidade, qualquer cidade, nos contém. A cidade, qualquer cidade, nos expulsa. Ruídos, claustrofobia e as salvadoras atividades cotidianas. Sobrevivemos na estrada, indo de um ponto a outro, na mesma pressa, todos desatentos na urgência do dia-a-dia”.

“Ela e Eu”, de Gustavo Rosa de Moura, reúne o elenco mais conhecido dessa edição do Festival de Brasília: Andrea Beltrão, Karine Telles, Jéssica Ellen, Eduardo Moscovis, Marina Lima e a jovem Lara Tremouroux. Na fotografia, a craque Barbara Alvarez, uruguaia que assina trabalhos de Lucrécia Martel (“A Mulher sem Cabeça”), Stoll e Rebella (“Whisky”) e Anna Muylaert (“Que Horas Ela Volta?”).

Andrea Beltrão interpreta Bia, uma mulher que, ao dar à luz sua primeira filha, entra em coma. Vinte anos depois, ela acorda. O marido (Moscovis) vive com sua nova mulher (Mariana Lima) e a filha (Tremouroux) já é moça feita. Bia terá que reaprender a enxergar, a falar, a andar e a se relacionar com as pessoas que a cercam. Na produção do filme, a apresentadora, atriz e diretora Marina Person, companheira de vida afetiva e profissional de Gustavo.

“De Onde Viemos, para Onde Vamos?”, da goiana Rochane Torres, é um documentário filmado em terra indígena, no estado de Tocantins. Com este longa-metragem, a cineasta registra “conflitos de identidade, perda das formas tradicionais de vida e resistência” junto ao povo Iny, que vive na aldeia de Santa Isabel do Morro, na Ilha do Bananal. Sua intenção é registrar “diferentes olhares imagéticos no entrelaçamento entre cineasta indígena e a diretora do filme”. Ou seja, o olhar de um realizador Iny, com sua câmara, e o da cineasta que assina o documentário.

O sexto e último concorrente do Festival de Brasília é “Saudade do Futuro”, da carioca Ana Azevedo, que dirigiu com Eduardo Souza Lima e Renata Baldi o delicioso “Rio de Janô” (2004), sobre cartunista francês que visitou (e desenhou) o Rio de Janeiro (e sua gente). Autora de vários curtas que rodaram festivais nacionais e internacionais, Ana faz seu primeiro longa solo e para tanto percorreu três países – Portugal, na Europa, Cabo Verde, na África, e o Brasil, nas Américas.

Nos três continentes, a diretora sai “em busca de personagens marcados por ausências produzidas por acontecimentos que transformaram a história de seus países – o fascismo, o colonialismo, a escravidão, as ditaduras. E, em especial, “o partir para nunca mais voltar”. A “cultura da saudade” entrelaça conversas à beira-mar. Pelo menos dois dos “conversadores” nos são familiares – o compositor, cantor e escritor Martinho da Vila e o ficcionista lusitano Valter Hugo Mãe.

No campo do curta-metragem brasileiro, o Festival de Brasília não conseguiu garantir filmes 100% inéditos, embora esteja pagando aluguel de R$10 mil a cada título exibido (R$30 mil para os longas). É que o acúmulo de festivais nessas últimas semanas do ano tornou-se tão alucinante que, mal terminou o Cine Ceará, iniciam-se, nesses dias, junto com o festival candango, os festivais do Rio e o Aruanda (este, na capital paraibana) e o Festival de Cinema Latino-Americano de São Paulo.

Festivais como o Kinoforum, o Mix Brasil e o Cine Ceará exibiram (ou premiaram) alguns dos títulos que agora serão exibidos em Brasília. Caso de “Chão de Fábrica”, de Nina Kopko, o grande vencedor do Troféu Mucuripe, em Fortaleza. O regulamento do Festival de Brasília nunca aceitou filmes lançados comercialmente, nem laureados com o prêmio principal em outro certame brasileiro.

Em 1998, o festival foi obrigado a desclassificar (e exibir hors concours) o curta catarinense “Novembrada”, de Eduardo Paredes, pois ele conquistou o Prêmio Glauber Rocha, a maior láurea da Jornada de Cinema da Bahia, semanas antes da realização da festa dos Troféus Candango.

Com a pandemia, a desorganização do calendário cultural-cinematográfico do país e a inoperância do Fórum dos Festivais, instalou-se um verdadeiro vale-tudo. Que em 2022, o segmento se reorganize, sob risco dos festivais perderem cada vez mais espaço social (junto às instituições, à mídia e ao público).

Brasília não dispõe de cartela de longas-metragens tão poderosa quanto a apresentada pelo Ceará no ítem “cinema local”. A produção alencariana marcou presença estelar com sete longas, que iam de Karim Aïnouz à jovem Bárbara Cariry, de Armando “Greta” Praça à estreante Natália “Minas Urbanas” Gondim, de Emerson Maranhão a Petrus Cariry etc. E com o governador do estado sendo aplaudido por assinar – no palco do Cineteatro São Luiz – projeto-de-lei que propõe (à Assembleia Legislativa) a criação da Ceará Filmes (empresa similar à Spcine e à Riofilme). Mesmo assim, quatro longas candangos estarão em competição na Mostra Brasília: “Mestre de Cena”, de João Inácio, o único documentário, e três ficções: “Noctiluzes”, de Jimi Figueiredo e Sérgio Sartório, “Advento de Maria”, de Vinícius Machado, e “Acaso”, de Luis Jungmann Girafa. Cada um receberá aluguel no valor de R$15 mil (e R$5 mil para cada um dos oito curtas brasilienses).

 

54º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro
Data:
7 a 14 de dezembro
On-line (pelo Canal Brasil, 23h30, e pela plataforma InnSaei TV, de 1h30 da madrugada até 22h29 do dia seguinte)
Acesso Gratuito
Noite de abertura: às 20h00 – solenidade inaugural, entrega da Medalha Paulo Emilio a Olga Futemma, da Cinemateca Brasileira, e apresentação do filme “Já que Ninguém Me Tira Para Dançar”, de Anna Maria Magalhães (Mostra Nacional) e de “Catadores de História”, de Tânia Quaresma (Mostra Brasília), ambos na InnSaei TV.
Mais informações: www.festcinebrasilia.com.br

 

OS SELECIONADOS

Mostra nacional (longas): no Canal Brasil, reprise no dia seguinte no InnSaei TV

. Terça-feira, 7 de dezembro – “Alice dos Anjos”, de Daniel Leite Almeida (Bahia, ficção)
.Quarta-feira, 8 – “Lavra”, de Lucas Bambozzi (MG, híbrido)
. Quinta-feira, 9 – “Acaso”, de Luis Jungmann Girafa (DF, ficção)
. Sexta-feira, 10 – “Ela e Eu”, de Gustavo Rosa de Moura (SP, ficção)
. Sábado, 11 — “De Onde Viemos, Para Onde Vamos?”, de Rochane Torres (GO, documentário)
. Domingo, 12 – “Saudade do Futuro”, de Ana Azevedo (RJ, documentário)

Mostra Brasília (longas): no InnSaei TV

. “Mestre de Cena”, de João Inácio (doc)
. “Noctiluzes”, de Jimi Figueiredo e Sérgio Sartório (fic)
. “Advento de Maria”, de Vinícius Machado (fic)
. “Acaso”, de Luis Jungmann Girafa (fic)

Mostra nacional (curtas): no InnSaei TV

. “Ocupagem”, de Joel Pizzini (SP)
. “Cantareira”, de Rodrigo Ribeyro (SP)
. “Sayonara”, de Chris Tex (SP)
. “Como Respirar Fora d’Água”, de Fávero & Negreiros (SP)
. “Chão de Fábrica”, de Nina Kopko (SP)
. “Filhos da Periferia”, de Arthur Gonzaga (DF)
. “N.F. Trade”, de Thiago Foresti (DF)
. “Era Uma Vez …Uma Princesa”, de Lisiane Cohen (RS)
. “Deus me Livre”, de Oliveira & Ansorena (PR)
. “Adão, Eva e o Fruto Proibido”, de R.B. Lima (PB)
. “Da Boca da Noite à Barra do Dia”, de Tiago Delácio (PE)
. “Terra Nova”, de Diogo Bauer (AM)

Mostra Brasília (curtas): no InnSaei TV

. “Tempo de Derruba”, de Gabriela Dalgean
. “Tinhosa”, de Rafael Cardim Bernardes
. “Cavalo Marinho”, de Gustavo Serrate
. “Benevolentes”, de Thiago Nunes
. “Ele Tem Saudades”, de João Campos
. “A Casa do Caminho”, de Renan Montenegro
. “Virus”, de Larissa Mauro e Joy Ballard
. “Filhos da Periferia”, de Arthur Gonzaga

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