Cine Ceará premia “5 Casas”, “Chão de Fábrica” e “Minas Urbanas”

Por Maria do Rosário Caetano

Fortaleza (CE) — O júri do Cine Ceará foi criterioso e justo ao distribuir, sem paternalismo, os principais prêmios de sua trigésima-primeira edição entre os longas documentais “5 Casas”, do gaúcho Bruno Gularte Barreto, e “Bosco”, da uruguaia Alícia Cano Menoni. Sem esquecer as ficções cearenses “A Praia do Fim do Mundo”, de Petrus Cariry, e “Fortaleza Hotel”, de Armando Praça. Formado com a curadora chileno-espanhola Andrea Guzmán, o diretor de fotografia panamenho Carlos Arango e o cineasta brasileiro Lírio “Árido Movie” Ferreira, o trio trabalhou com rigor e premiou os trabalhos mais inventivos, guiando-se pela ousadia estética e ética.

O Cine Ceará, ao contrário de outros festivais brasileiros e do desmedido Grande Prêmio Brasil – Troféu Grande Otelo, não se pauta pela abundância alucinada de prêmios. É econômico na distribuição de láureas, o que só valoriza o troféu Mucuripe. E costuma escolher júris compactos e qualificados. Este ano, pôde contar com Andrea, filha de Patrício “Nostalgia da Luz” Guzmán (não que talento seja hereditário, mas ela dispõe de larga experiência cinematográfica vivida no exílio do pai, por Espanha e Cuba). E também com o diretor de fotografia Carlos Arango, que fotografou o documentário “The Act of Killing”, premiado com o Bafta e finalista ao Oscar, e a ficção brasileira “Estrada 47”, de Vicente Ferraz. Arango fez, recentemente, câmara para Vittorio Storaro em novo filmusical de Carlos Saura, “O Rei do Mundo Inteiro”, rodado em Guadalajara, no México. Para completar o trio, o inquieto pernambucano Lírio Ferreira, de “Baile Perfumado”, “O Homem que Engarrafava Nuvens” e “Acqua Movie”.

A trinca não promoveu nenhuma reforma agrária de troféus. Distribuiu criteriosamente os prêmios entre os quatro melhores filmes (dois, um equatoriano e um portorriquenho, não ganharam nada!). Claro que “Bosco”, o poético documentário que a uruguaia Alícia Cano filmou num micropovoado italiano (com apenas sete casas habitadas) poderia ter sido o grande vencedor. O filme é muito bom, passou pelo Festival de Amsterdã, a meca do cinema documental, tem personagens cativantes, em especial uma pastora de cabras e bodes teimosos. Se o longa de Alícia, eleita a melhor diretora, tivesse triunfado, o Cine Ceará — que reserva 30% de suas vagas a filmes dirigidos por mulheres — teria muito a comemorar. Ou seja, orgulhar-se-ia de ter entregue troféus a realizadoras do melhor filme ibero-americano, do melhor longa cearense (“Minas Urbanas”, de Natália Gondim) e do melhor curta brasileiro (“Chão de Fábrica”, de Nina Kopko).

O júri, porém, preferiu eleger o longa documental gaúcho “5 Casas”, que apesar do nome vago e sem apelo, resultou em narrativa potente e de grandes qualidades. Relato confessional, mas generoso, o documentário filmado em Dom Pedrito, quase fronteira com o Uruguai, parte de perdas do diretor (Bruno Gularte Barreto), mas não se prende só ao seu próprio umbigo. As 8 anos, o menino, nascido no pequeno município gaúcho, perdeu a mãe, vítima de câncer. A mesma doença levou o pai, cinco anos depois. Órfãos, ele e os dois irmãos mais velhos, viram a memória familiar depositada (e esquecida) num galpão no fundo do casarão da fazenda do avô. O tempo passou e Bruno tornou-se fotógrafo, artista visual, professor e cineasta reconhecido. Resolveu remexer as caixas depositadas no galpão e lá encontrou a memória afetiva da família. E muitas fotos. Fez um filme sensível, que consegue amalgamar o pessoal e o social. E comover com suas lembranças das mulheres que o criaram, Marias babá, freira e professora, parentes e amigos. O filme também foi exibido no Festival de Amsterdã, o IDFA.

“A Praia do Fim do Mundo”, de Petrus Cariry, conquistou o Prêmio da Crítica e dois troféus do júri oficial — melhor fotografia e melhor direção de arte. Ao agradecer o prêmio pelas imagens de seu quinto longa, Petrus, que recebeu o Mucuripe das mãos do colega panamenho Carlos Arango, disse que estava duplamente feliz: pela láurea e por saber que havia um diretor de fotografia no júri, o que comprovava o olhar especial e técnico-artístico sobre seu trabalho, ele que ama os ofícios escolhidos — a direção cinematográfica e a direção de fotografia.

Armando Praça representou seus atores, a pernambucana Clébia Sousa, sua vigorosa camareira Pilar (em “Fortaleza Hotel”), em seu primeiro papel como protagonista, e o ator Wanderley Bernardino. O cineasta expressou sua alegria ao ver seus intérpretes reconhecidos, pois “sou um realizador que tem imenso prazer em dirigir seus atores”. Um registro: no terreno das interpretações, este foi um festival das mulheres. De Clébia, de Marcélia Cartaxo, de Fátima Macedo, de Larissa Góes… Os homens, coisa rara, ocuparam espaços coadjuvantes.

Os prêmios aos dois filmes cearenses não são fruto de nenhum paternalismo ou ‘brodagem’. O cinema local vive uma verdadeira primavera. Este ano, foram exibidos na tela do Cineteatro São Luiz sete longas-metragens produzidos no estado: além de “A Praia do Fim do Mundo” e “Fortaleza Hotel” (ambos na competição ibero-americana), “Minas Urbanas”, de Natália Gondim, “Transversais”, de Emerson Maranhão, e “De uma Distância Esquizóide“, de Gabriel Silveira (na mostra Olhar do Ceará), o infanto-juvenil “Pequenos Guerreiros”, de Bárbara Cariry (no projeto O Primeiro Filme a Gente Nunca Esquece) e, como convidado da noite de encerramento, o poderoso “O Marinheiro das Montanhas”, de Karim Aïnouz, cearense que foi à África magrebiana buscar sua metade argelina (ele é filho de mãe cearense e pai cabiliano). Até o governador do estado, Camilo Santana, ficou plugado no filme, de seu primeiro fotograma até o último.

Para completar a ótima fase do cinema cearense, Wolney Oliveira ganhou o tradicional e respeitado troféu Margarida de Prata da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), com o longa documental “Soldados da Borracha”. Pela primeira vez, um troféu já entregue a filmes de Leon Hirszman, Paulo Gil Soares e Jorge Furtado foi atribuído a um longa-metragem produzido no Ceará. Outro feito do cinema alencariano: uma família que trabalha unida — os Cariry — soma já a significativa quantia de vinte longas-metragens 100% cearenses. Treze dirigidos pelo veterano Rosemberg Cariry, seis por Petrus (o sexto, “Mais Pesado é o Céu”, com Silvia Buarque e Matheus Nachtergaele, está em finalização) e um da estreante Bárbara (que colocou o cinema infanto-juvenil de qualidade no mapa da produção nordestina).

Na Noite dos Troféus Mucuripe, o governador Camilo Santana recebeu o Prêmio Eusélio Oliveira, homenagem ao criador (já falecido) do Cine Ceará, por sua contribuição ao audiovisual produzido nestas terras de Iracema. Acompanhado do representante da Assembléia Legislativa, ele assinou projeto de lei que propõe a criação da Ceará Filmes, similar às empresas Spcine e Riofilme. Esta ideia, que o veterano Rosemberg Cariry desenvolve com sua categoria profissional há muitos anos, ganha agora alguma materialidade. E mais: o secretário de Cultura, Fabiano Piúba prometeu, no palco do Cineteatro São Luiz, que o Governo do Estado investirá, em 2022, por meio de editais, R$11 milhões no setor audiovisual.

No terreno do curta-metragem, o grande vencedor da Noite dos Troféus Mucuripe foi o curta paulista “Chão de Fábrica”, realizado por coletivo feminino de 35 mulheres comandado por Nina Kopko, assistente de direção de Karim Aïnouz em “A Vida Invisível“. O filme baseia-se em fragmento dramatúrgico de Sérgio Carvalho, da Campanhia do Latão, e passa-se dentro do banheiro de uma fábrica, no ABC Paulista. Neste exíguo espaço, quatro operárias, interpretadas por Helena Albergaria, Carol Duarte, Alice Marcone e Joana Castro, conversam sobre temas íntimos e sobre o que se passa lá fora (a greve dos metalúrgicos de 1979). Um filme de grande força narrativa e que faz uso sintético e poderoso de imagens metalúrgicas do ciclo ABC. Tudo pelo olhar feminino. “Chão de Fábrica” ganhou, também, o Prêmio (aquisição) Canal Brasil.

O falso documentário mineiro “O Resto”, sobre os fantasmas que povoam o imaginário das gentes de Belo Horizonte, rendeu o Mucuripe de melhor direção a Pedro Gonçalves. O potiguar “Sideral”, de Carlos Segundo, que foi a Cannes, teve seu engenhoso roteiro reconhecido pelo júri oficial e foi escolhido como o melhor curta pelo tradicional colegiado do Troféu Samburá, do jornal O Povo, de Fortaleza. A crítica preferiu “O Durião Proibido”, do pernambucano Txai Ferraz. O mesmo Troféu Samburá foi atribuído às jovens (e estreantes) diretoras paulistanas Júlia Fávero e Victoria Negreiros, que realizaram — como trabalho de finalização de curso na ECA-USP — o curta black-homoafetivo “Como Respirar Fora d´Água”.

O melhor curta da mostra Olhar Cearense foi a animação “Sebastiana”, de Claudio Martins, o escolhido do Júri Oficial. Por isso, além do troféu Mucuripe, o filme fez jus a prêmio no valor de R$5 mil do Curso de Cinema da UniFor, entregue pela professora Bete Jaguaribe. Margarita Hernández, diretora de programação do Cine Ceará, lembrou que, ao premiar um curta animado, o júri revalorizou a importante trajetória do cinema de animação no estado. Que, convenhamos, já viveu dias melhores, quando o Núcleo de Animação da Casa Amarela, ligado a Universidade Federal do Ceará, era um dos focos criativos mais importantes do país. Anda, porém, em fase de relativo ostracismo.

Confira os premiados:

LONGA-METRAGEM

. “5 Casas”, de Bruno Gularte Barreto (Brasil, RS) – melhor filme ibero-americano (Troféu Mucuripe e R$20 mil), melhor roteiro (Bruno Gularte Barreto e Vicente Moreno), melhor som (Emil Klotzsh)

. “Bosco” (Uruguai-Itália) – melhor direção (Alícia Cano Menoni), montagem (Guillermo Madero), trilha sonora original (Giorgio Ferrero e Rodolfo Mong)

. “A Praia do Fim do Mundo”, de Petrus Cariry (Brasil, CE) – melhor filme da Crítica (Abraccine), fotografia (Petrus Cariry), direção de arte (Sérgio Silveira)

. “Fortaleza Hotel”, de Armando Praça (Brasil, CE) – melhor atriz: Clébia Sousa, melhor ator (Wanderley Bernardino)

. “Minas Urbanas”, de Natália Gondim – melhor filme da Mostra Olhar do Ceará

CURTA-METRAGEM

. “Chão de Fábrica”, de Nina Kopko (SP) – melhor filme (Trofeu Mucuripe), Prêmio Canal Brasil (troféu, R$15 mil e exibição na emissora)

. “O Resto”, de Pedro Gonçalves (MG) – melhor direção

. “Sideral”, de Carlos Segundo (RN) – melhor roteiro (Carlos Segundo) e Prêmio Samburá, do Jornal O Povo, de melhor curta-metragem.

. “O Durião Proibido”, de Txai Ferraz (PE) – Prêmio da Crítica (Abraccine)

. “Como Respirar Fora d’Água”, de Júlia Favero e Victoria Negreiros (ECA-USP) – Troféu Samburá, do jornal O Povo, de melhor direção

. “Sebastiana”, de Claudio Martins (CE) – melhor curta da Mostra Olhar do Ceará (Troféu Mucuripe), Prêmio Unifor (Universidade de Fortaleza) no valor de R$5 mil

. “Jeanstopia”, de Gabriel Viggo e Murilo da Paz (CE) – melhor filme do concurso Água e Resistência-Cagece

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