Mostra de Tiradentes homenageia Adirley Queirós
Por Maria do Rosário Caetano
A vigésima-quinta edição da Mostra de Cinema de Tiradentes, cidade situada nas Minas Gerais do ciclo do ouro, tinha tudo para ficar na história: exibição presencial de 169 filmes, dois deles capazes de incendiar a plateia – “Lavra”, de Lucas Bambozzi, trágico retrato dos estragos causados pela mineração na terra de Drummond, e “Lutar, Lutar, Lutar – O Filme do Galo”, de Sérgio Borges e Helvécio Marins, vibrante registro da trajetória do time das Alterosas, vencedor de três campeonatos num só ano (o Brasileirão, a Copa do Brasil e o Mineiro).
Só que as chuvas, as enchentes e novo surto de Covid-19 obrigou o comando do mais importante festival de Minas Gerais – liderado pelas irmãs Raquel e Fernanda Hallak – a realizar mais uma edição on-line (a segunda). Tudo foi preparado, com capricho e zelo, para que a festa cinematográfica fosse presencial. Mas o bom senso falou mais alto. Para agravar, outra cidade colonial mineira – Ouro Preto, jóia barroca onde as irmãs Hallak organizam a CineOP, território da memória do cinema – viu ruir, sob avalanche, casarão histórico – o Solar Baeta Neves. As imagens correram o país. Por isso, a Mostra Tiradentes (Ano 25) – que começa nessa sexta-feira, 21 de janeiro, e prossegue até o sábado, 29 – será integralmente on-line com acesso gratuito pela plataforma www.mostratiradentes.com.br.
Todos as atividades programadas serão mantidas. O festival será aberto com homenagem ao cineasta goiano-ceilandense Adirley Queirós, de 51 anos, seguida de exibição de seu mais novo trabalho – “Fragmentos de 2016 em Dois Episódios”, realizado em parceria com Cássio Oliveira. A competição de filmes de jovens realizadores (Mostra Aurora) apresentará sete longas-metragens, em maioria documentários, também em maioria de temática social (ver lista completa abaixo).
Serão exibidos filmes para a criançada (Mostrinha), para adolescentes (Mostra Jovem), a Mostra Olhos Livres (que presta tributo a Carlão Reichenbach), a Mostra 25 Anos (com 25 longas), o Foco Minas (com dez curtas-metragens), Cinema de Transição, tema da edição deste ano (com dois longas, dois capítulos de uma série e 10 curtas), Mostra Valores etc.
Antes de chamar atenção para alguns dos filmes – eles poderão ser acessados em todo território nacional – sedimentados na carreira pregressa de seus realizadores, vale destacar aqui os valores de “Lavra” e “Lutar, Lutar, Lutar”, duas produções mineiras de imensas qualidades.
O quinto longa-metragem de Lucas Bambozzi teve sua pré-estreia mundial no Festival de Amsterdã, a meca mundial do cinema documentário. No Brasil, estreou no tradicional Festival de Brasília. Esperava-se, por suas ousadias narrativas e temática explosiva, que triunfasse na mais politizada competição brasileira. Não foi isso que aconteceu. Coisas de festival.
Embora apresentado como “obra ficcional”, “Lavra” é na verdade um híbrido. Bambozzi introduz personagem ficctícia, Camila (Camila Motta) em um mundo de desolação. Ela dialogará com gente do povo, que vive em Minas Gerais, estado historicamente dilacerado pela mineração (o ouro do período colonial, passando pelo diamante, e desaguando no ferro, que consome montanhas, picos e morros). E que consumiu o sono do poeta Carlos Drummond de Andrade, cujos poemas são fonte de inspiração (e diálogo) de Bambozzi.
“Lavra” é um filme capaz de catalizar emoções e sensações de plateias sensíveis em qualquer tempo. Mas, agora, sob o Governo Bolsonaro, que estimula garimpeiros, madeireiros e grileiros a ocupar áreas da Amazônia, sem preocupar-se com o futuro de nossas populações indígenas e reservas naturais, sua importância tornou-se ainda maior. Exibido no Cine Praça, ao ar livre, na bela Tiradentes, ainda chocada pelas enchentes, pela tragédia de Brumadinho e pelo desabamento do Solar, em Ouro Preto, o filme resultaria em uma missa leiga. Pela internet o impacto não será o mesmo. Mesmo assim será grande.
“O Filme do Galo” é um dos melhores longas-metragens brasileiros dedicados a um clube de futebol. Primeiro pela qualidade de seus dois realizadores, cineastas inquietos e apaixonados pelo tema que abraçaram. Ainda assim, buscaram no jornalista Fred Mello Paiva, o roteirista ideal (e irreverente) para narrar a saga do CAM (Clube Atlético Mineiro).
A Mostra Tiradentes apresentou, anos atrás, outro filmes sobre o Galo, mas focado só na torcida (“O Dia do Galo”, de Azzi e Fernandes). Através dela, e de alguns torcedores em particular, víamos a conquista da Taça Libertadores da América, em 2013. Mas sentíamos, como espectadores, o desejo de ver o jogadores e suas jogadas. Só que o direito de imagem custa cada vez mais e exige operações de alta complexidade.
Sérgio e Helvécio puderam realizar um filme com poderoso arquivo de imagens, com Reinaldo, Dario, Ronaldinho Gaúcho, entre muitos outros craques. A trama é rica, complexa, apaixonada, cheia de momentos de glória e de dificuldades, muitas dificuldades. Ah, o filme foi feito antes do triunfo de 2021 (portanto sem a tríplice coroa que alucinou a Nação Atleticana, sem a Taça do Brasileirão conquistada 50 anos depois do longínquo triunfo de 1971).
Na Mostra Praça (que acabou transferida para simbólica “praça virtual”), estão ainda filmes como “Carro Rei”, da pernambucana Renata Pinheiro, “A Felicidade das Coisas”, da paulistana Thaís Fujinaga, e “As Faces do Mao”, de Dellani Lima e Lucas Barbi, que se somarão a 13 curtas-metragens.
No segmento Cinema em Transição, serão exibidos dois títulos que constituem apostas das mais instigantes: “Ficções Sônicas #2 – Feitiço” (peça-filme da atriz e diretora Grace Passô), e “Diário Dentro da Noite”, do ator Chico Diaz. A eles se somarão dois capítulos da série “Hit Parade”, de Marcelo Caetano, e dez curtas, dois deles assinados por Suely Maxakali (“Yãu Tu Nunãhã Payexop – Encontro de Pajés”, de 26 minutos), e André Novais Oliveira (“Rua Ataléia”, de 10′).
A peça-filme de Grace Passô (75 minutos) foi realizada durante a pandemia, em São Paulo. Artistas ocupam o Teatro Municipal e ensaiam peça sem público, em busca de caminho capaz de despertá-los da inação e da automação de suas sensibilidades. Trata-se de projeto da atriz, no qual ela se dedica a uma série de criações artísticas voltadas à experimentação de sons e ações a partir de vidas negras na diáspora.
O projeto de Chico Diaz tem a ver com o romance “A Lua Vem da Ásia”, de Campos de Carvalho, que o ator já levou aos palcos e quer transformar em filme. Por enquanto, ele apresenta esse ensaio de 65 minutos, que se passa em noite vivida em 2020, em meio à pandemia e ao negacionismo. O ator, em processo de ensaio, mescla confinamentos, o seu e o do personagem que ensaia. “Como burlar os limites impostos pelo espaço, pelo tempo, pelo corpo? Qual a saída? A memória? O afeto? O imaginário?” Eis as questões.
De Júlio Bressane, a Mostra Tiradentes exibirá “Capitu e o Capítulo”. De Lírio Ferreira e Natara Ney, “Cafi, Salve o Prazer”, sobre o autor da bela capa do primeiro elepê do Clube da Esquina, aquele com duas crianças sentadas na estrada, uma negra e de tênis e uma branca e descalça. “O Tempo de Ruy (Guerra)” será lembrado em filme de Adilson Mendes. A obra completa de Adirley Queirós, o homenageado (oito títulos, somando curtas, médias e longas-metragens, documentais e ficcionais), será exibida em caráter retrospectivo.
Entre as atrações da Mostra 25 Anos, que relembra a história do festival mineiro, estão “A Vizinhança do Tigre”, de Affonso Uchoa, “Baronesa”, de Juliana Antunes, “Batguano”, de Tavinho Teixeira, “Estrada para Ythaca”, de Guto Parente, Pedro Diógenes e Luiz e Ricardo Pretti, “Cartola, Luz para os Olhos”, de Lírio Ferreira e Hilton Lacerda, e “Crítico”, primeiro longa-metragem de Kleber Mendonça.
Os adolescentes poderão assistir a dois programas dedicados a eles: um com cinco curtas-metragens e outro com o longa “Os Dragões”, de Gustavo Spolidoro. O cineasta gaúcho buscou inspiração em artista mineiro, o escritor Murilo Rubião (1916-1991).
Ao longo de 87 minutos, o autor de “Ainda Orangotangos” registra encenação de peça baseada em conto fantástico por cinco jovens. O desafio e o medo da vida adulta, porém, irão gerar transformações assustadoras em seus corpos e personalidades. Como eles estão inseridos em comunidade muito conservadora, serão objeto de repulsa social. Por isso, devem decidir se aceitam seu lado “Dragão” ou rendem-se “ao tédio e às regras locais”.
Spolidoro define “Dragões” como “um mergulho no universo fantástico de Rubião”. Para realizar o filme, ele mobilizou 23 integrantes de grupo amador de Cotiporã, pequena cidade gaúcha, onde nasceu sua avó, e onde ele rodou o documentário “Morro do Céu”.
Para crianças (e também adolescentes) há que se indicar “Os Pequenos Guerreiros”, da cearense Bárbara Cariry, fotografado e montado por seu irmão, o cineasta Petrus Cariry. O filme, que integra a Mostrinha de Tiradentes, faz parte da boa safra que tem chegado do estado nordestino, nos últimos anos, e que viveu seu esplendor em 2021, com sete títulos exibidos no Cine Ceará.
“Pequenos Guerreiros” centra-se em família de pescadores que resolve ir, do litoral ao sertão cearense, num carro meio combalido, pagar promessa durante a Festa do Pau da Bandeira, em Barbalha. Que ninguém tema um filme saudosista da pureza sertaneja, na linha do “pau e corda”. De forma alguma. O roteiro é esperto, as crianças têm bons desempenhos, os cenários (trata-se de um road movie) são encantadores, a fotografia de Petrus é de excelente qualidade e a banda sonora muito elaborada. Um bom (e surpreendente) momento do cinema infanto-juvenil brasileiro.
Além da aventura cearense dos três pequenos aventureiros de Bárbara, que se envolvem com ETs, dinossauros e um cinema abandonado, a Mostrinha de Tiradentes apresentará mais dois longas (ambos cariocas – “Poropopó”, de Luiz Antônio Igreja (80 minutos), e “Tromba Trem”, animação de Zé Brandão (94 minutos). E cinco curtas-metragens.
O segmento Olhos Livres apresentará seis filmes: “Os Primeiros Soldados”, de Rodrigo Oliveira (Espírito Santo), os paulistas “Germino Pétalas no Asfalto”, de Coraci Ruiz e Júlio Mattos, “Avá, Até que os Ventos Aterrem”, de Camila Mattos”, e “Você nos Queima”, de Caetano Gotardo, o carioca “O Dia da Posse”, de Allan Ribeiro, e “Manguebit”, do pernambucano Jura Capela.
25ª Mostra de Cinema de Tiradentes
Data: 21 a 29 de janeiro
Em formato on-line, com programação gratuita pelo site www.mostratiradentes.com.br
Durante nove dias, serão exibidos 169 filmes
A Mostra promove, também, debates, rodas de conversa e Encontro com os Filmes e seus Diretores (todos com transmissão ao vivo), além de exposição virtual, oficinas e shows.
MOSTRA AURORA
. “A Colônia”, de Mozart Freire e Virgínia Pinho (Doc-fic, 73min, CE) – O bairro cearense de Antônio Justa, em Maracanaú, surge a partir de colônia fundada em 1942 para o isolamento de pessoas com hanseníase. Hoje os novos moradores e os descendentes dos primeiros pacientes convivem em território marcado pela ocupação irregular e especulação imobiliária, atravessado pelo estigma da doença no passado e pela precariedade atual.
. “Bem-Vindos de Novo”, de Marcos Yoshi (Doc, 105min, SP) – Pais e filhos se reencontram depois de 13 anos separados. Este é o ponto de partida do filme, que acompanha o processo de reconstrução afetiva da família do diretor Marcos Yoshi, atravessada pelo fluxo de migrações entre o Brasil e o Japão, conhecido como fenômeno dekassegui.
. “Grade”, de Lucas Andrade (Doc, 98min, SP-MG) – O filme acompanha as experiências diárias e sonhos dos moradores de um tipo específico de reclusão de liberdade em que os apenados assumem a manutenção do espaço, o controle das próprias atividades e de sua segurança. Com abordagem multifacetada, propõe reflexão sobre o potencial criativo das pessoas encarceradas e do próprio gênero do documentário.
. “Maputo Nakuzandza”, de Ariadine Zampaulo (Ficção, 60min, RJ-SP) – Amanhece na capital de Moçambique. Jovens saem de uma festa e nos quintais senhoras iniciam o dia. Um homem corre, uma mulher chega de viagem, um turista passeia, um trabalhador apanha o transporte público e a rádio Maputo Nakuzandza anuncia o desaparecimento de uma noiva.
. “Panorama”, de Alexandre Wahrhaftig (Doc, 66min, SP) – Entre as cicatrizes do passado e as incertezas do futuro, o Jardim Panorama resiste. Há pouco mais de dez anos, a favela foi rasgada ao meio por um monstro. Hoje, o monstro dorme. Até quando? Um filme sobre os sonhos, as memórias e o cotidiano de quem mora em uma comunidade cercada pelos muros de um bairro nobre de São Paulo.
. “Seguindo Todos os Protocolos”, de Fábio Leal (Ficção, 75min, PE) – Após ficar 10 meses sozinho em quarentena, Francisco quer transar.
. “Sessão Bruta”, de As Talavistas e ela.ltda (Experimental, 84min, MG) – Rodado a quente com uma câmera Mini-DV, em 2018, sem grandes preparativos, mas com muito suor e cerveja, o filme se apresenta como uma sucessão de prólogos de um filme sempre por fazer. O que une todos é o desejo de pegar para si uma fatia do mundo.