Gramado chega aos 50 anos com muitas histórias para contar
Por Maria do Rosário Caetano
A Revista de CINEMA inicia, hoje, uma série de relatos, contendo lembranças cinematográficas ambientadas em festivais. Brasileiros ou internacionais.
A primeira delas do Festival de Gramado, que irá festejar seus 50 anos em agosto (de 12 a 20), na Serra Gaúcha, depois de duas edições on-line exigidas por tempos de pandemia. O fato relembrado é gaúcho em sua origem – o curta-metragem “Ilha das Flores”, de Jorge Furtado. Um curta de apenas 12 minutos, que ganhou dimensão nacional e internacional. Exibido no Festival de Berlim, conquistou o Urso de Prata. Já trazia na bagagem nove prêmios ganhos em Gramado.
A cada nova semana (e serão muitas) relembraremos histórias ocorridas, além de Gramado, nos festivais de Brasília, Jornada da Bahia, Festival de Havana, Cine Ceará, Aruanda paraibano, Veneza, Paulínia, Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, Amazon Film Festival, CineSul, Festival do Memorial da América Latina, Cannes, Olhar de Cinema, entre outros.
Para festejar Gramado no ano de sua edição número 50, nada melhor que relembrar a histórica noite de exibição de “Ilha das Flores”. A noite em que um curta-metragem roubou a festa de uma série de longas. E ganhou a maior ovação da história do mais badalado festival do país.
Naquele tempo – décima-sétima edição – Gramado dividia com o Festival de Brasília do Cinema Brasileiro (já em sua vigésima-segunda edição), o prestígio de principal vitrine do cinema brasileiro. Os dois disputavam os melhores filmes. A situação não andava das melhores, mas ninguém esperava o terremoto Collor, com confisco de poupança e extermínio da Embrafilme e Concine (Conselho Nacional de Cinema), que chegaria em março de 1990.
A noite fria de Gramado esquentou com as imagens de “Ilha das Flores”. O híbrido furtadiano contava a história de um tomate, plantado, colhido e levado ao supermercado. Acabaria amassado e arremessado ao lixo. Terminaria ali sua “existência”? Não. Na Ilha das Flores, porcos e seres humanos iriam disputar sobras, resíduos, rejeitos. E tomates.
Com humor, ironia e crítica social, Jorge Furtado e equipe (a turma do coletivo Casa de Cinema de Porto Alegre, então no auge de sua criatividade) construiriam um filme que faria história.
Naquele noite de 1989, o Cine Embaixador colocou-se de pé para aplaudir o curta gaúcho por dez minutos. Eu estava lá, testemunhei. E como repórter, medi o tempo no relógio. E aplaudi também.
No dia seguinte, dezenas de jornalistas acordaram cedo para entrevistar a turma da Casa de Cinema, Jorge Furtado – então com seus quase “30 anchietanos” – à frente. O clima era de euforia. Imaginávamos, todos, que nascia ali uma carreira de glórias. E, até que, não nos enganamos.
Em fevereiro de 1990, o realizador gaúcho e seu filme ganhariam o Urso de Prata em Berlim. Ele só não imaginava a pancada collorida do fatídico 15 de março. Tão fatídico, que Jorge Furtado continuaria fazendo curtas até 2002, quando lançaria seu primeiro longa, “Houve Uma Vez Dois Verões”, um filme de baixíssimo orçamento. Portanto, 13 anos separaram a consagração de “Ilha das Flores” da estreia no formato “profissional”.
Por sorte, a TV Globo, que não é boba, contratou a turma da Casa de Cinema para colaborar com suas minisséries e com o Núcleo de Criação de Guel Arraes. Só não conseguiu arrancar o gaúcho do Rio Grande, de sua Porto Alegre. Ele está lá, desde que nasceu, em 9 de junho de 1959, dia de Anchieta.
Ah, não houve unanimidade em torno de “Ilha das Flores”. Houve uma dissidência. Sim, uma. Ela veio de Juremir Machado da Silva, gaúcho como Jorge, culto e metido a polemista. Postura que levaria pela vida, seja como jornalista, escritor ou professor universitário. Num tempo em que não havia internet, a surpresa nos chegou dois dias depois da noite de aplausos ensurdecedores da plateia do Cine Embaixador. Na linha “espírito de porco”, Juremir, então com 27 anos, garantiu já no título de matéria publicada em jornal portalegrense, que “Ilha das flores” somava “Pieguice e melodrama enganadores”.
Os aplausos, segundo o ponto de vista do jornalista, eram fruto de espectadores que haviam sucumbido diante do “lobby da comunidade de cineastas locais, realizado durante toda a semana”. E citou nomes: “o grupo de José Pedro Goulart, Giba Assis Brasil e Werner Schünemann trabalhou duro, no corpo a corpo”.
O imenso cinema gramadiano comportava mais de mil espectadores. Os três integrantes da Casa de Cinema, convenhamos, eram poderosos. Capazes de milagroso convencimento de plateia massiva. Mas voltemos aos argumentos de Juremir: “Trata-se (‘Ilha das Flores’) de uma obra redundante, demagógica, apelativa e incapaz de permitir a atividade do intelecto alheio”. Na análise formal do filme, que teria influência seminal no curta-metragem brasileiro dali em diante, o conterrâneo de Jorge Furtado não viu nenhuma novidade: “Formalmente, é uma cartilha para analfabetos. Uma volta ao explícito levada às últimas consequências”.
Tudo leva a crer que, naquele momento, o jovem Juremir adotava práticas sugeridas por um dos personagens mais envolventes (e sórdidos) de Honoré de Balzac, o editor Etienne Lousteau, de “Ilusões Perdidas” (interpretado por Vincent Lacoste no filme de mesmo nome, dirigido por Xavier Giannoli, detentor de seis trofeus César, o “Oscar francês”, recém-entregues).
Não sei o que Juremir, hoje com 60 anos, reconhecido como tradutor, escritor e professor da PUC-RS, pensa desta diatribe da juventude. Poderia orgulhar-se dela se o filme tivesse ficado restrito aos contornos do Rio Grande do Sul. Mas não. “Ilha das Flores” correu mundos. Depois do Urso de Prata em Berlim, passou por dezenas de festivais internacionais. Tornou-se, no Brasil, um cult movie.
Certa vez, fui a Paracatu, no interior de Minas Gerais, participar de um debate, na Casa de Cultura, sobre “A Terceira Margem”, filme de Nelson Pereira dos Santos, precedido da exibição de documentário sobre o vaqueiro Manuelzão, parceiro de viagem de Guimarães Rosa. Na hora das perguntas, o então prefeito do município mineiro (Almir Paraca) pediu a palavra para dar seu testemunho. Contou que o filme brasileiro que mais o impressionara fora “Ilha das Flores”, assistido em grupo comunitário. Que ficara impressionado com o impacto que a obra causara em todos os jovens que o assistiam (e debatiam).
Em 2019, a Abraccine (Associação Brasileira de Críticos de Cinema) elegeu os 100 Melhores Curtas Brasileiros (de todos os tempos). Em primeiro lugar, “Ilha das Flores”, seguido de “Di”, de Glauber Rocha, “BlaBlaBla”, de Andrea Tonacci, “A Velha Fiar”, de Humberto Mauro, “Couro de Gato”, de Joaquim Pedro de Andrade, “Aruanda”, de Linduarte Noronha e dezenas e dezenas de outros.
Um registro final: em janeiro deste ano de 2022, estreou no Brasil uma animação japonesa chamada “Belle” (“O Dragão e a Princesa Sardenta”), de Mamoru Hosoda. Ao ler sobre o filme, notei que os fãs dessa obra nascida de famoso anine nipônico orgulhavam-se dos 14 minutos de aplauso que ele recebera em sessão realizada no Festival de Cannes. Soube, também, que “O Labirinto do Fauno”, de Guilhermo del Toro, fora aplaudido por mais de 20 minutos, que “Cafarnaum”, da libanesa Nadine Labaki, por mais de 15, “Belle”, por 14, portanto mais que “Tiros em Columbine”, de Michael Moore (por 13). Enfim, há uma tabela com os 20 “tops” em aplausos em Cannes.
Como frequentadora de festivais em várias regiões do país, registro aqui meu testemunho. O recordista de aplausos, entre os que presenciei, foi “Ilha das Flores”. Depois, “Como Nascem os Anjos”, de Murilo Salles, no Festival de Brasília. E vi ovações consagradoras para Esther Goés (por “Stelinha”, na escadaria do Cine Embaixador, em Gramado), Marcélia Cartaxo (em Brasília, por “A Hora da Estrela” e, em Gramado, por “Pacarrete”), a Riachão (por Samba Riachão, no Festival de Brasília). E a Fernanda Montenegro e Karim Aïnouz, de mãos dadas, no palco do Cine Ceará.
As duas vaias mais altissonantes que presenciei: a de Claudia Raia, no Festival de Brasília (não por seu trabalho no remake de “Matou a Família e Foi ao Cinema”, de Neville D’ Almeida), mas por seu apoio a Fernando Collor, e a que foi dirigida ao ator-apresentador Perry Salles, que resolveu aparecer mais que a homenageada da noite, a espanhola Sarita Montiel, La Violetera, no Cine Ceará. Tudo numa noite quente e perfumada (por um cesto de violetas) em Fortaleza.
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