É Tudo Verdade premia filmes sobre pandemia e luta antipropagação de armas químicas
Por Maria do Rosário Caetano
Surpresa total. O júri do Festival É Tudo Verdade, que encerrou sua vigésima-sétima edição na noite do último domingo, 10 de abril, escolheu o filme menos badalado de sua vistosa competição brasileira – “Quando Falta o Ar”, de Ana Petta e Helena Petta – como o grande vencedor deste ano. As duas realizadoras abordaram, em sua narrativa documental, produzida pelo ex-presidente da Ancine, Manoel Rangel, a pandemia de Covid-19 e o SUS (Sistema Único de Saúde).
O patinho feio derrotou cisnes como “Adeus, Capitão”, de Carelli e Tita, o vigoroso “Sinfonia de um Homem Comum”, de Joffily, o inventivo “Pele”, de Marcos Pimentel, e o apaixonante “Belchior, Apenas um Coração Selvagem”, de Natália Dias e Camilo Cavalcanti. Havia, ainda, o interessante “Rubens Gerchman, o Rei do Mau Gosto”, de Pedro Rossi.
Ah, dirão as víboras, agora só se premia filme dirigido por mulher. Foi assim em Cannes, Veneza e Berlim. Havia – registre-se – outro filme sob comando feminino – o confessional “Eneida”, da paranaense Heloisa Passos, que também chamou mais atenção que o filme das irmãs Petta (Ana, atriz de grande experiência e cineasta em seus primeiros filmes).
O júri, composto pela historiadora Eloá Chouzal, o diretor de fotografia Carlos Ebert e o documentarista Renato Terra, justificou sua escolha: “‘Quando Falta o Ar'”; é mais do que uma radiografia contundente e corajosa da pandemia da Covid-19 no Brasil. As diretoras conseguem ampliar o entendimento da tragédia humanitária em várias perspectivas: desde os agentes comunitários que trabalham na prevenção até as Unidades de Tratamento Intensivo dos Hospitais, passando pelos corpos ensacados e enterrados em quantidades assustadoras. Tudo feito com um olhar extremamente cuidadoso de quem sabe construir e captar cenas que valorizam os sentimentos humanos dos indivíduos retratados”. E mais: “captura a temperatura dos acontecimentos, o heroísmo e a exaustão dos profissionais de saúde à frente da pandemia, a luta pela vida dos pacientes, o alívio in tenso dos que não se contaminaram, o medo presente no ar, a tristeza dos que perderam pessoas queridas. É um registro precioso de uma memória coletiva ainda recente e um registro inestimável da importância do SUS”.
A justificativa apega-se, excessivamente, ao importante tema do filme das irmãs Petta e ao momento perturbador que (ainda) vivemos. Júris costumam enveredar-se por três caminhos em suas escolhas, optando por filmes mais ousados na pesquisa de linguagem, ou por produções que abordam temas “da hora” ou, ainda, por realizações – estas são as grandes, as imensas – que pegam temas febris e os abordam com invenção e fúria.
Não havia, esse ano, nenhum filme nessa terceira categoria, embora os sete selecionados brasileiros fossem de boa ou ótima qualidade. O mais aguardado – “Adeus, Capitão”, de Vicent Carelli e Tita, fecho da Trilogia Indígena iniciada com “Corumbiara” e “Martírio” – é um belo inventário de memória, fração da vida dilacerda e interrompida desse país incompleto, violento, que parece não se arrumar nunca. Mas não causa o mesmo impacto de “Corumbiara” e “Martírio”.
“Sinfonia de um Homem Comum” foi a grande surpresa desse ETV. O filme mais importante de toda a carreira do veterano José Joffily. Se Canudos contou com Euclides da Cunha para perpetuar sua memória, o diplomata José Maurício Bustani, que o Brasil viu empossado como diretor de órgão da ONU voltado ao Controle de Armas Químicas, tem em Joffily o documentarista que sistematizou, brechtianamente, sua (corajosa) história. A história de um homem que enfrentou o poder desmesurado dos EUA e de seus parceiros servis. Um diplomata que perdeu a batalha, mas não traiu sua consciência, nem se dobrou à arrogância dos donos do mundo.
Por sorte, a poderosa Associação de Profissionais de Edição Audiovisual atribuiu seu Prêmio EDT (de melhor montagem) a Jordana Berg, que organizou o rico material colhido por Jofilly no Brasil, EUA, Europa e Oriente Médio. Para completar, o diplomata é um pianista que cultiva a música com a mesma convicção cultivada em sua luta contra a invasão do Iraque, baseada em imensa e fabricada mentira (o país árabe teria armas químicas).
O júri oficial reconheceu a qualidade do trabalho de Jordana Berg, embora tenha justificado, sem muito entusiasmo, a menção honrosa que atribuiu a “Sinfonia de um Homem Comum”: por contar “com montagem envolvente, o filme narra a história de um brasileiro que lutou contra os imensos interesses norte-americanos por trás da Guerra do Golfo e na Síria. O filme é hábil em equilibrar a índole inabalável e o talento artístico do diplomata José Bustani para contar sua história de jeito original e eficiente”.
Se o júri oficial quisesse apostar num filme de maior ousadia experimental (e plugado na pulsação das ruas proletárias brasileiras) teria escolhido “Pele”, do mineiro Marco Pimentel. Um filme que começa como videoarte e vai ganhando calor e vida, a ponto de nos arremessar nas entranhas do espaço urbano. Um espaço que traz o grito dos que não têm voz na mídia, nem nas instituições de poder sacramentado. Slogans desenhados como grafitis imprimem-se feito cicatrizes em viadutos, paredes e muros. Arrebatador. Pena ter passado sem nenhum prêmio.
No caso de “Belchior, Apenas um Coração Selvagem” – uma pequena maravilha – houve uma verdadeira consagração popular. Na internet o filme bombou. E os elogios vieram não só da “igreja belchioriana”, que cultua com fervor o “rapaz latino-americano sem dinheiro no bolso”. Veio de todos os lados, de críticos e leigos, todos encantados com o bigodudo cearense, filósofo e compositor popular, gente boa até mais não poder. A dupla Natália Dias e Camilo Cavalcanti começou bem demais a safra de filmes e séries prometida à trajetória do bardo de Sobral.
O júri internacional, composto pelos cineastas Luiz Bolognesi (“A Última Floresta”) e Megan Mylan, dos EUA (diretora de “Smile Pinki”, vencedor do Oscar) e pelo jornalista e designer uruguaio Hugo Burel, dobrou-se ao fetichismo do dispositivo.
Ao escolher o polonês “O Filme da Sacada” (da Varanda, ou do Balcão), de Pawel Lozinski, eles deixaram de lado um dos mais impressionantes filmes da seleção internacional – “Tantura”. Não havia, entre os 12 filmes estrangeiros do ETV 27, uma obra-prima. Havia bons documentários e uns cinco, pelo menos, excelentes. Um deles era o israelense “Tantura”. Incrível que um cidadão de Israel — como seu conterrâneo Amos Gitai – utilize o cinema para mostrar que a criação do estado judeu se fez subjugando direitos do palestinos, massacrando povoamentos. Caso da Aldeia de Tantura.
Há um parentesco entre a “Sinfonia” joffiliana e este corajoso documentário de Alon Schwarz. Cinema sem retórica. Cinema feito por devotos de São Bertoldt Brecht. Na linha dos dois há que agregar também Sierra Pettengill, diretora de “Riotsville, USA”, documentário vigoroso e entusiasmante, que revela as entranhas militares das forças policiais norte-americanas, modelo de centenas de outras brigadas repressivas, espalhadas mundo a fora.
Registre-se, pois, a excessiva euforia da trinca de jurados com o filme da “Sacada” (ou do dispositivo hiper-valorizado): “o diretor Pawel Lozinski entrevista, da sacada do seu apartamento, em Varsóvia, pessoas que passam ali em frente, traz histórias singulares, trata dos modos como lidamos com a vida na condição de indivíduos”. Para prosseguir: “o júri atribuiu o prêmio por unanimidade, levando em conta o mosaico de retratos profundos de personagens retirados do anonimato urbano por um dispositivo insólito e simples que realiza um surpreendente mergulho em suas personalidades, medos e desejos. Além do lirismo das personagens, a originalidade do dispositivo narrativo une a simplicidade da ideia genial com a postura de escuta paciente e sensível do realizador polonês”.
Ou fui tragada pela maratona de imagens do É Tudo Verdade, ou me faltou sensibilidade. Vacilei. Não vi “profundidade” nos “retratos dos personagens retirados do anonimato urbano”.
Já a menção honrosa para o francês “Ultravioleta e as Gangues das Cuspidoras de Sangue”, de Robin Huzinger, é muito bem-vindo. Trata-se, mesmo, de um filme surpreendente, encantador, a começar pelo título, somado à sua inventiva construção narrativa.
O júri oficial destacou sua “lírica reveladora do sentimento de desajuste feminino num mundo institucionalizado à revelia de seus valores e demandas. A beleza da narrativa consegue construir um panorama que combina história particular e pessoal com a memória cinematográfica da época, numa linguagem poética e original”.
A maratona de longas-metragens foi tão avassaladora, que só pude assistir a dois curtas-metragens do ETV 27: “Sem Título # 8: Vai Sobreviver”, do brasileiro Carlos Adriano, e “Duke Ellington em Isfahan”, do iraniano Ehsan Khoshbakht. Ambos apaixonantes.
Adriano segue com seus exercícios de cinefilia radical. Dessa vez, seu diálogo se dá com o Godard de “Viver a Vida”. Com Anna Karina e seu rosto e lágrimas. E o faz com mais uma construção dissonante, somando poesia concreta e o hino gay “I Will Survive”, sucesso planetário na voz de Glória Gaynor. Ver Anna Karina dançando sob alucinante ritmo discothèque é algo sublime. Que o filme seja, com urgência, mostrado ao nonagenário Jean-Luc Godard.
Tive uma epifania ao assistir “Duke Ellington em Isfahan”. A primeira imagem mostra a Grande Mesquita de Isfahan, cidade histórica da pátria de Kiarostami, situada a 370 km de Teerã. Ao fundo, música oriental, daquelas que nos encantam em templos muçulmanos. Não entendi nada, naquele instante, pois sabia apenas que assistiria a um filme sobre Duke Ellington (1899-1974), gênio do jazz. Depois entendi tudo.
O artista fora mostrar, na base da política da boa convivência, ao mundo árabe e persa as maravilhas do jazz. E o fez, com sua orquestra, em 1963. Em Isfahan, quedou-se deslumbrado com a Grande Mesquita e com tudo de belo que viu na milenar cidade iraniana. Resolveu, então, dedicar a ela uma composição musical. Nascia um dos suportes do disco “Duke Ellington’s Far East Suite”. A excursão, um sucesso sem igual, terminou no dia 22 de novembro, com o assassinato do presidente John Kennedy. O jazzista e seus músicos, de luto, não viram sentido em continuar o congraçamento com o mundo muçulmano. Regressaram aos EUA.
“Cantos de um Livro Sagrado”, de Cesar Gananian e Cassiana der Haroutiounian, foi escolhido o melhor curta do ETV 27. O documentário se faz acompanhar de extensa justificativa do júri: “o filme amplia a compreensão da Revolução de Veludo ocorrida na Armênia em 2018. Ao adotar perspectivas complementares e simultâneas, vai do particular ao coletivo sem perder o fio da meada”.
“Cadê Heleny?”, de Esther Vital, que ganhou menção honrosa e o importante Prêmio Canal Brasil (no valor de R$15 mil), teve seu destaque justificado pelo júri oficial: “o filme usa a técnica de stop motion a partir de bonecos e bordados, realizados com primor por um coletivo de dezenas de pessoas, para recontar a história da prisão, tortura e desaparecimento de Heleny Guariba, militante da VPR (Vanguarda Popular Revolucionária), durante a ditadura militar brasileira. Mais do que isso, ao adotar a técnica das ‘arpilleras’ para compor personagens e cenários, Esther Vital faz uma costura com as trágicas ditaduras da América do Sul. O curta traz uma abordagem histórica surpreendente ao tratar de tema bastante “duro” através de linguagem entendida como ‘eve’, sem no entanto perder sua força de expressão e emoção. Um tema que, muitas vezes retratado, adquire pertinência aumentada por mostrar a crueldade de uma ditadura celebrada pelo governo desumano que hoje está no poder”.
O júri ressaltou, ainda, a seleção de dois curtas, nos quais viu que houve uma “amplitude da temática negra refletida pelos olhares de autores negros. Os filmes ‘Alágbedé’, de Safira Moreira, e ‘Solmatalua’, de Rodrigo Ribeiro-Andrade, trazem novos ares para o pensamento cinematográfico brasileiro”. O filme de Rodrigo ganhou, ainda, o Prêmio EDT (por sua montagem).
Na competição internacional, o vencedor foi o estadunidense “Como se Mede um Ano?”, de Jay Rosenblatt. O júri destacou “a originalidade da ideia, o esforço da produção que durou 17 anos, o controle necessário para garantir que durante todos esses anos a estética e a linguagem do filme não fossem afetados e o conteúdo humano, expresso no crescimento e na transformação da filha do cineasta – única personagem do filme”. E mais: “as respostas que ela dá às mesmas perguntas feitas por seu pai a cada ano, trazem uma mensagem direta e existencial muito comovente. Em apenas 29 minutos, o bebê se torna uma mulher, crescendo e mudando diante de nossos olhos.”
O curta iraquiano “Ali e Sua Ovelha Milagrosa”, realizado em parceria com o Reino Unido, sob direção de Maythem Ridha, ganhou menção honrosa. O júri destacou “a sobriedade, a sensibilidade e economia dos recursos visuais e narrativos utilizados para contar a história de um menino de nove anos que se vê obrigado a sacrificar Kirmeta, sua ovelha favorita. Em sua jornada para o local do sacrifício, Ali torna-se nosso guia para um Iraque que é ao mesmo tempo belo e empobrecido. Sua realidade social está ligada à crenças ancestrais e a um reino superior ao qual deve sacrificar suas ovelhas. Para Ali, o sacrifício é um gesto que considera tão inútil quanto incompreensível. Sua peregrinação se torna uma rebelião contra a barbárie. O filme é feito com objetividade e contenção esmagadoras”.
Por ser reconhecido pela Academia de Artes e Ciências Cinematográficas dos EUA como um festival classificatório para o Oscar, o É Tudo Verdade qualifica automaticamente as produções vencedoras (competições brasileira e internacional de longas e curtas) à inscrição direta visando a disputa de uma estatueta.
Por fim, há que se registrar que, mais uma vez, o Festival É Tudo Verdade mostrou as razões de seu prestígio e sua condição de Festival classe A. Apresentou filmes 100% inéditos, seminário, debates, catálogo, sessões presenciais e on-line (abertas para brasileiros espalhados por todo país) e um núcleo histórico de fôlego (com a primeira sessão nas Américas de “A História da Guerra Civil”, de Dziga Vertov, 1921). Uma sugestão ao comando do ETV: criar mais alguns prêmios oficiais. Jamais promover a reforma agrária de troféus presente em outros (a maioria) dos festivais brasileiros. Mas um prêmio só para tantos filmes, todos 100% inéditos, é muito pouco. Detalhe final: o Festival já anunciou a data de sua e dição de número 28: em abril de 2023, de 13 a 23.
Confira os premiados:
Longa-metragem
. “Quando Falta o Ar”, de Ana Petta e Helena Petta (SP) – melhor documentário brasileiro
. “Sinfonia de um Homem Comum”, de José Joffily (RJ) – menção honrosa do Júri Oficial e Prêmio EDT (Associação de Profissionais de Edição Audiovisual) de melhor montagem (para Jordana Berg)
. “O Filme da Sacada”, de Pawel Lozinski (Polônia) – melhor documentário internacional
. “Ultravioleta e as Gangues Cuspidoras de Sangue”, de Robin Hunzinger (França) – menção honrosa
Curta-metragem
“Cantos de um Livro Sagrado”, de Cesar Gananian e Cassiana der Haroutiounian (Brasil-Armênia) – melhor curta brasileiro, Prêmio Mistika
. “Cadê Heleny?”, de Esther Vital (SP) – menção honrosa (curta brasileiro) e Prêmio Aquisição Canal Brasil de Incentivo ao Curta-Metragem
. “Solmatalua”, de Rodrigo Ribeiro-Andrade – Prêmio EDT (Associação de Profissionais de Edição Audiovisual)
. “Alágbedé”, de Safira Moreira, e “Solmatalua”, de Rodrigo Ribeiro-Andrade – curtas de realizadores afro-brasileiros que “trazem novos ares para nosso pensamento cinematográfico”
. “Como se Mede um Ano?” (EUA) – melhor curta internacional
. “Ali e sua Ovelha Milagrosa” (Iraque/Reino Unido), de Maythem Ridha – menção honrosa