Medida Provisória
Por Maria do Rosário Caetano
A distopia “Medida Provisória”, segundo longa-metragem de Lázaro Ramos, chegará nessa quinta-feira, 14 de abril, aos cinemas, depois de passar pelos festivais de Moscou, pelo SXSW, a meca norte-americana do filme black, e pela competição do Festival do Rio.
O público poderá conferir o desempenho de Seu Jorge, em seu terceiro papel consecutivo nas telas, no curto prazo de cinco meses. Primeiro, ele encarnou o guerrilheiro Marighella, trabalho que acaba de lhe render o prêmio de melhor ator no Festival Sesc de Melhores do Ano. Depois, deu corpo e voz ao compositor, maestro, flautista e saxofonista Alfredo Viana, em “Pixinguinha, um Homem Carinhoso”. Aos 51 anos, o ator e cantor vive momento de esplendor. Quem assistiu à programação do Festival É Tudo Verdade o viu, também, em imagens de arquivo, ao lado de Cesária Évora, a “diva dos pés descalços”, em documentário da lusitana Ana Sofia Fonseca.
Em “Medida Provisória”, Seu Jorge interpreta um jornalista muito do descolado. Ele divide o protagonismo com o brasileiro, radicado em Londres, Alfred Enoch, e com Taís Araújo, que interpretara sua esposa em “Pixinguinha, um Homem Carinhoso”, cinebiografia comandada por Denise Saraceni e Allan Fiterman.
A primeira ficção dirigida pelo ator Lázaro Ramos – ele estreou no longa-metragem com ótimo documentário sobre o Bando de Teatro Olodum – “Medida Provisória” é uma adaptação da obra dramática, do também ator Aldri Anunciação, “Namíbia, Não!”. Que, aliás, Lázaro levou, com grande êxito, aos palcos.
O filme se passa no Brasil, num futuro distópico, mas não muito distante. As tensões raciais estão a ponto de explodir. Negros são definidos como pessoas com “melanina acentuada” e lutam, sem descanso, por seus direitos básicos. Antônio (Alfred Enoch) é um jovem advogado, que acredita no poder da palavra. Ele batalha, cotidianamente, por mudanças nas leis, buscando reparação histórica por 400 anos de escravidão. Casado com a médica Capitu (Taís Araújo), Antônio divide a moradia com o primo, o desbocado André (Seu Jorge).
O quadro institucional agrava-se, quando o governo aprova medida provisória, que deixa a comunidade afro-brasileira em estado de choque: “todos os portadores de ‘melanina acentuada’ serão capturados e enviados à África”. Ou seja, “devolvidos compulsoriamente aos locais originários de seus ancestrais”.
Na região onde Antonio, Capitu e André vivem, quem comanda a operação “regresso à África” é a rígida inspetora Isabel (Adriana Esteves), que não medirá esforços no cumprimento de sua missão.
Antonio e André acabarão presos dentro da própria residência, enquanto a médica Capitu estabelece relações com os ativistas de um afrobunker, abrigo da comunidade negra, prontos a reagir contra o exasperante estado das coisas.
A tragicomédia escrita pelo cineasta, em parceria com Lusa Silveste, Aldri Anunciação e Elísio Lopes Jr, traz, ainda, no elenco, Emicida, Flávio Bauraqui, Mariana Xavier, Jessica Ellen e atores oriundos do teatro brasileiro. Renata Sorrah faz participação especial.
“Medida Provisória” é, para valer, um projeto coletivo e Lázaro orgulha-se de ter mobilizado um dos maiores elencos negros para produção contemporânea brasileira (ambientada, claro, fora dos tempos da escravidão).
O ator Alfred Enoch, a quem cabe a pedreira de segurar o mocinho ético e bem intencionado, participou de “Harry Potter” e da série “How to Get Away with Murder”, na qual contracenou com a oscarizada Viola Davis. Mas quem rouba a festa é Seu Jorge, com seu jornalista bem-humorado, que usa as redes sociais como instrumento de comunicação e não perde a oportunidade de uma tirada espirituosa.
Em torno do nome do cantor-ator carioca, com carreira internacional (no cinema e na música), paira densa e carregada nuvem política. É só citá-lo nas redes sociais para vozes se fazerem ouvir lembrando que ele é “bolsonarista”.
Um insulto – registre-se – que Seu Jorge não merece. Não há imagem (ou gravação de áudio) que mostre o artista em nenhum ato da campanha vitoriosa de Jair Bolsonaro. Seja no Brasil, seja junto à comunidade brasileira nos EUA. Toda a celeuma nasceu de declaração à imprensa, quando o artista resolveu, ou melhor, preferiu dar “um tempo ao novo governo”. Na dele, Seu Jorge condescendeu: “estou aguardando para ver o que o presidente vai fazer. São sete meses. É necessário ver o que será implementado”.
Depois, em “live” no próprio perfil, no Instagram, Seu Jorge disse de viva voz: “Só para esclarecer uma coisinha. Tem um povo dizendo que sou ‘bolsominion’, e eu não sou, gente! Não tem a menor condição. É só para esclarecer mesmo para vocês não ficarem botando pilha em vocês também (…). Eu não tenho a menor condição de apoiar esse senhor”.
Em 2019, no Festival de Berlim, quando da première mundial de “Marighella”, Wagner Moura segurou camiseta vermelha estampada com a imagem do guerrilheiro que incendiou o mundo” (título do livro de Mário Magalhães), tendo a seu lado um sorridente e cúmplice Bruno Gagliasso, e um Seu Jorge sério e com gestos neutros. O que o ator-protagonista do filme quis simbolizar com tal atitude? Quis ficar na dele.
Por ocasião do lançamento de “Marighella” (em novembro de 2021), o cantor deu muitas entrevistas e participou de coletivas com a imprensa. Ao jornal O Globo (capa do Segundo Caderno), ele fez declarações genéricas, em tom apartidário de quem não quer se comprometer. Direito dele!
Na coletiva paulistana, no Cine Marquise, Seu Jorge foi o mais “moderado” dos que responderam às perguntas dos jornalistas. Perto do atrevido Wagner Moura, que costuma dizer tudo o que pensa, com coragem ímpar, o cantor-ator poderia parecer um “isentão” (palavra da moda).
Cada um age como lhe manda a consciência. Se, no terreno da política, Seu Jorge adota figurino genérico e moderado, na vida pessoal, ele bota para quebrar. É de coragem e franqueza impressionantes. Pedi a ele, quatro anos atrás, na coletiva de outro filme (“Paraíso Perdido”, de Monique Gardenberg, 2018), que comentasse história contada, em debate público, por Fernando Meirelles, diretor de “Cidade de Deus”. Neste filme, Seu Jorge interpreta personagem, Mané Galinha, como o nome indica, um conquistador.
Meirelles testemunhou, no Espaço Itaú Frei Caneca paulistano, no debate-lançamento do documentário “Cidade de Deus – Dez Anos Depois” (Cavi Borges e Luciano Vidigal, 2012):
– “Os ensaios de ‘Cidade de Deus’ corriam à solta quando Karim Aïnouz, que preparava “Madame Satã”, percebeu, junto com Seu Jorge, que este não iria render dramaticamente o que necessitava na pele do transformista pernambucano, atuante nas noites na Lapa carioca. Então, ele me procurou para conversarmos”.
Pelo que se comentava na época (começo dos anos 2000), Seu Jorge não se sentia confortável em cenas com outros homens (ele já declarou em entrevistas que não conseguiria, na ocasião, interpretar a complexa personagem do longa de Karim). Aïnouz e Meirelles teriam, então, conversado, chegado a um acordo e realizado a troca dos atores. Lázaro Ramos deixou o papel de Mané Galinha e tornou-se o protagonista de “Madame Satã”, até hoje seu papel mais impressionante e arrebatador. E Seu Jorge assumiu o lugar do cobrador de ônibus que encantava as garotas.
Mesmo tendo escrito, para a Coleção Aplauso, da Imprensa Oficial de São Paulo, o livro-depoimento “Fernando Meirelles – Biografia Precoce” (2005), eu desconhecia esta história. Ao estar, frente a frente com Seu Jorge na coletiva de “Paraíso Perdido” narrei o que escutara de Fernando Meirelles. Para minha surpresa, ele colocou o pingo no i: “Não houve troca, eu fui demitido pelo Karim”.
E passou a narrar sua versão da história. Lembrou suas origens: nasceu em Belfort Roxo, na Baixada Fluminense, em família pobre, dormiu na rua, passou por imensas dificuldades. Poderia ter virado um marginal, ter morrido cedo.
Não foi isso o que aconteceu. Seu Jorge virou artista respeitado em seu país, reconhecido também no exterior, com filmes e discos, protagonista absoluto de “Marighella”, filme que conquistou seis prêmios da Crítica e do Público no Festival Sesc Melhores do Ano. Um ator negro que não sai de cartaz há cinco meses, seja na pele de um guerrilheiro, de um músico ou de um jornalista descolado. E que, semanas atrás, foi ao Congresso Nacional, ao lado de Caetano Veloso e outros integrantes do Ato pela Terra, lutar contra o “Pacote da Destruição“ do Meio-Ambiente e da Amazônia.
Medida Provisória
Brasil, 100 minutos, 2022
Direção: Lázaro Ramos
Elenco: Taís Araújo, Alfred Enoch, Seu Jorge, Adriana Esteves, Emicida, Flávio Bauraqui, Hilton Cobra, Pablo Sanábio, Dona Diva, Mariana Xavier, Jessica Ellen, Aldri Anunciação, Renata Sorrah. Roteiro: Lusa Silvestre, Lázaro Ramos, Aldri Assunção e Elísio Lopes Jr.
Fotografia: Adrian Teijido
Trilha sonora: Plínio Profeta, Rincón Sapiência e Kiko de Souza
Produção: Lereby e Lata Filmes
Distribuição: Elo Company e H2O
FILMOGRAFIA
Lázaro Ramos (Salvador, Bahia – 01-novembro-1978)
No Cinema, como diretor:
2022 – “Medida Provisória”
2018 – “Bando, um Filme De:” (diretor com Thiago Gomes)
Como ator:
2021. “O Silêncio da Chuva” (Daniel Filho)
2017. “O Beijo no Asfalto” (Murilo Benício)
2016. “Mundo Cão” (Marcos Jorge)
2015. “Tudo que Aprendemos Juntos” (Sérgio Machado)
2015. “O Vendedor de Passados” (Lula Buarque)
2014. “Sorria, Você está Sendo Filmado” (Daniel Filho)
2012. “O Grande Kilapy” (Zezé Gamboa)
2011. “Amanhã Nunca Mais” (Tadeu Jungle)
2007. “Saneamento Básico, o Filme” (Jorge Furtado)
2007. “Ó Pai, Ó” (Monique Gardenberg)
2006. “Um Cobrador” (Paul Leduc)
2005. “Quanto Vale ou É por Quilo” (Sérgio Bianchi)
2005. “Cafundó” (Betti e Bueno)
2005. “Cidade Baixa” (Sérgio Machado)
2004. “Meu Tio Matou um Cara” (Jorge Furtado)
2003. “O Homem que Copiava” (Jorge Furtado)
2003. “Carandiru” (Hector Babenco)
2002. Madame Satã (Karim Aïnouz)
Na televisão (destaques):
. “Mr Brau” (seriado)
. “Lado a Lado” (Zé Maria)
. “Cobras e Lagartos” (Foguinho)