Pureza
Por Maria do Rosário Caetano
Filmes como “Pureza”, de Renato Barbieri – que chega nessa quinta-feira, 19 de maio, aos cinemas – costumam ser olhados com benevolência pelos defensores das “boas causas” e com imensa má vontade pelos que vêem o cinema como espaço de criação e invenção.
No último final de semana, depois da emocionante reabertura da Cinemateca Brasileira, me vi em meio a verdadeiro tiroteio verbal entre dois contendores. Um reduzia “Pureza” à condição de “filme ONG”, ou seja, obra utilitária, dedicada à causa nobre, mas de pouca valia como obra cinematográfica. O outro enxergava no filme valores cinematográficos dignos de registro. A começar pelo trabalho da protagonista, a atriz Dira Paes, perfeita na pele da oleira Pureza Lopes Loyola, que corajosamente deixara sua pequena Bacabal, no Maranhão, para meter-se em verdadeiro faroeste caboclo, na região paraense de Marabá, em busca de filho desaparecido.
Como não havia assistido ao filme, só me restou ouvir, em silêncio, os argumentos antitéticos do “tiroteio verbal”. Agora, com a obra vista, recorro a conceito do crítico paranaense Aramis Millarch, já falecido, um humanista juramentado. Ele gostava de externar sua satisfação sempre que assistia a um filme criativo e de “utilidade pública”.
“Pureza”, o sexto longa-metragem de Renato Barbieri, é sim, um “filme ONG”. Ou um filme assumidamente de “utilidade pública”. Nem por isso deixa de ter qualidades. A maior de todas é o elenco. Barbieri, que vem dos experimentos do coletivo Olhar Eletrônico, trupe que reuniu Fernando Meirelles, Marcelo Tas, Paulo Morelli e muitos outros videomakers na São Paulo dos anos 1980, radicou-se em Brasília em meados dos 90, dedicando-se ao documentário. Começou com longa de significativa importância – “Atlântico Negro – Na Rota dos Orixás”. Pegou desvio religioso com “Malagrida”, sobre padre italiano, fez uma ficção histórico-candanga, sem maiores brilhos (“As Vidas de Maria”), dedicou-se a média-metragem sobre “cidades inventadas” e a longa sobre Cora Coralina. Até mergulhar no tema da “Servidão”, ou seja, a escravidão nos tempos modernos. Com este longa documental, preparou-se para recriar a história de Pureza Lopes Loyola.
O recorte temporal deste novo filme é preciso. A narrativa começa em Bacabal, no Maranhão. Pureza (Dira Paes, senhora de seu ofício), trabalha numa pequena olaria com o jovem filho Abel (Matheus Abreu), enquanto sonha com o regresso do marido, que partiu em busca de trabalho e nunca mais voltou.
O filho quer dar a ela uma vida melhor. Quer garimpar, ganhar dinheiro lá pelas bandas do Pará. Pega a estrada. Os meses passam e nenhuma notícia chega do rapaz. Ela se inquieta e vai atrás dele. Um encontro casual com uma prostituta, que reconhecera a foto de seu filho, a encaminhará a um padre (Cláudio Barros), da Comissão Pastoral da Terra. Ele dirá a ela que existe uma rede de aliciamento de trabalhadores rurais por grandes fazendeiros.
Religiosa, Pureza aprendera a ler aos 40 anos, para poder desfrutar da Bíblia Sagrada. Começa a se aproximar dos “gatos” que aliciam trabalhadores. Um dia, falta uma cozinheira e ela oferece seus serviços. Entra no caminhão apinhado de homens e vai parar numa grande fazenda. Torna-se uma espécie de “mãe” dos “escravos” do armazém, que não ganham ordenado, pois pagam pelas ferramentas, pela botas, pela comida, pela cachaça, pelas prostitutas, por tudo. E entregam a carteira de identidade ao empregador, com quem contraem a “dívida”. Trabalhando na casa onde atuam Narciso (Flávio Bauraqui) e Zé Gordo (Sérgio Sartório), os dois capatazes do fazendeiro Serjão (Giulio Lopes), Pureza aguçará os ouvidos, entenderá os meandros do mando sobre os destinos dos trabalhadores aliciados e aprenderá a utilizar o serviço de rádio.
Aí entrará em cena Elenice (Mariana Nunes) uma soma de personagens ligadas à Justiça do Trabalho, que graças ao testemunho e documentos trazidos por Pureza conseguirá desbaratar rede de aliciamento de trabalho escravo durante os governos FHC, Lula e Dilma (mas sofrerá graves recuos no atual governo).
O que prende atenção no filme de Barbieri é sua paisagem humana. Os trabalhadores que se agrupam na região de Marabá, principal locação do filme (há cenas feitas em Brasília, inclusive no Congresso Nacional) trazem força rara. Nenhum ator destoa. Dira é, ela mesma, uma mulher morena, uma brasileira típica das regiões Norte e Nordeste. A isso soma seu imenso talento. Bauraqui e Sartório estão perfeitos como capatazes. Brutos, cumpridores de ordens, mas sem sadismo caricatural. Os trabalhadores, tanto os jovens, quanto os já idosos, retratam a gente que vive em nossas lavouras ou garimpos, com suas peles curtidas de sol. E os que dão seu testemunho para a câmera passam imensa credibilidade.
O roteiro poderia ser menos didático, a trilha sonora menos onipresente e rebarbativa e o lado cristão de Barbieri menos explícito. Chuva redentora e pano na cabeça (transformando Pureza numa Nossa Senhora dos Pobres) soam um pouco demais. A fotografia de Felipe Reinheimer às vezes se apega a firulas excessivas. Se fosse mais contida, mais dura, contribuiria para dar ao filme tom mais documental e potente.
Pureza
Brasil, 101 minutos, 2022
Direção: Renato Barbieri
Elenco: Dira Paes, Flávio Bauraqui, Matheus Abreu, Mariana Nunes, Sérgio Sartório, Cláudio Barros, Gregório Benevides, Guto Galvão, João Gott, Enoque Marinho, Jefferson Mendes, Alberto Silva Neto, Goretti Ribeiro, Andrade Jr.
Roteiro: Renato Barbieri e Marcus Ligocki Jr.
Produção: Paulo Morelli, Affonso Beato e Marcus Ligocki Jr.
Fotografia: Felipe Reinheimer
Montagem: Marcelo Moraes
Trilha sonora: Kevin Riepl
FILMOGRAFIA
Renato Barbieri (diretor, roteirista e produtor, um dos fundadores da Olhar Eletrônico, paulista radicado em Brasília desde 1996)
1998 – “Atlântico Negro – Na Rota dos Orixás” (doc)
2001 – “Malagrida” (híbrido)
2004 – “As Vidas de Maria” (ficção)
2017 – “Cora Coralina – Todas as Vidas” (híbrido)
2019 – “Servidão” (doc)
2022 – “Pureza” (ficção)