Cinemateca comemora centenário de Resnais e circuito de arte lança títulos imperdíveis

Por Maria do Rosário Caetano

O romeno “Má Sorte no Sexo ou Pornô Acidental”, o francês “Está Tudo Bem”, o libanês “1982” e o franco-tunisiano “A Boa Mãe” se somam a uma retrospectiva dedicada ao centenário de Alain Resnais, e a um mês inteiro dedicado ao cinema brasileiro reunido na Mostra Bicentenário da Independência. Como se vê, a temporada está para cinéfilo nenhum botar defeito. Mesmo que o cinema de arte viva momento dos mais preocupantes. Tão preocupante, que o Festival de Cannes dedicou momentos nobres à busca de soluções para tal impasse. Mas não encontrou soluções simples. Os estragos causados pela pandemia e pelo streaming ainda exigirão imensos esforços. Ou o cinema, que foi a arte soberana do século XX, terá que contentar-se com papel secundário.

Os que ainda se animam a sair de casa têm encontro marcado com “Má Sorte no Sexo ou Pornô Acidental”, de Radu Jude, grande vencedor do Urso de Ouro em Berlim 2021. Trata-se de um filme de raras ousadia e inventividade. Que começa como se fosse um filme pornográfico, para depois nos surpreender de forma avassaladora. E nos revelar retrato, um verdadeiro raio-x, desses nossos tempos conturbados. Na primeira parte, vemos um casal, marido e mulher, filmando uma relação sexual. A deles mesmos. Ela é professora. O apimentado vídeo, por uma trapaça da sorte, vai parar na internet e viraliza. Estamos em plena pandemia. A mestra empreende, então, de máscara, verdadeira peregrinação pela cidade de Bucareste, rumo ao colégio, onde um “tribunal” a julgará. O filme parece, então, um documentário.

Quando a professora chega à escola, o “tribunal” se instala. Passamos a ver um mix de filme de Buñuel com comédia do absurdo. Invasão de privacidade, moralismo, militarismo e ideias retrógradas se somam em mais um excepcional e luminoso momento do cinema romeno, que já nos deu filmes fantásticos como “Contos da Era Dourada”. Comédia digna de figurar no cânone do gênero.

Outro filme que justifica deixar o conforto do lar em uma tarde ou noite fria é “Está Tudo Bem”, do parisiense François Ozon, realizador dos mais prolíficos. Dessa vez, para discutir o direito à eutanásia, ele conta história tocante. A de um rico empresário (o rennaisiano André Dussolier), afastado da esposa e das filhas, que depois de grave enfermidade decide recorrer ao “suicídio assistido”. Como tal prática é proibida na França, ele necessita da ajuda da filha interpretada por Sophie Marceau. O empresário afastou-se da família para assumir amor outonal e homoafetivo. A trama receberá do diretor tratamento complexo e instigante. Um filme de sentimentos sutis e grandes desempenhos. Um dos melhores do diretor de “Sob a Areia” e “Frantz”. Ozon em momento de plena maturidade.

“1982” é uma data que diz pouco aos brasileiros, mas significa muito para os libaneses. A ponto do cineasta Oualid Mouaness escolhê-la como título de seu drama estrelado por Nadine Labaki, autora de “Cafarnaum”, finalista ao Oscar internacional em 2019. A bela atriz, estrela de primeira grandeza do cinema árabe, interpreta uma professora atormentada por tempos convulsivos. O Líbano é atacado por Israel, sob a acusação de apoiar a OLP (Organização para a Libertação da Palestina, liderada por Yasser Arafat). A educadora viverá, portanto, complicações amorosas, familiares e profissionais, sob o som das bombas.

"1982", de Oualid Mouaness

Que ninguém espere um retrato dilacerante da guerra como o que foi traçado por Elem Klimov no sovético “Vá e Veja”. A proposta de Mouaness é bem mais simples. Eles quis construir um filme filtrado pelo olhar feminino, no caso o da personagem da bela Nadine Labaki, e de pré-adolescentes que estudam no colégio e já vivem seus primeiros namoricos. Um menino, que adora desenhar, apaixona-se por uma garota de sua classe (no caso, sala de aula, não extrato social). As bombas estão no pano de fundo e os conflitos existenciais em primeiro plano.

O filme foi indicado ao Oscar, pelo Líbano, mas não chegou à final, feito de “Cafarnaum”. Como tem o diretor de teatro brasileiro (de origem libanesa) Jorge Takla como produtor-executivo, “1982” vem recebendo significativa divulgação no Brasil. O que se deve, também, ao empenho da distribuidora Estúdio Escarlate, comandada por Joana Henning. Resta ver se a comunidade de origem libanesa aqui radicada (estimada em 10 milhões de pessoas) irá prestigiar o filme, que tem algo de autobiográfico. Quarenta anos atrás, quando se deu a Guerra entre Israel e Líbano, o diretor e roteirista Oualid Moauaness era criança.

Também do mundo árabe vem “A Boa Mãe”. Mas o filme se passa em solo francês, na grande cidade portuária de Marselha. Nela vive Noa (Halima Benhamed), uma senhora de origem magrebiana, trabalhadora, que acorda cedo, prepara tudo para os netos e vai fazer faxina em aeroporto e, ainda, cuidar de pessoas idosas. Trabalhava sem descanso. Um de seus filhos, Elyseu, está preso por roubo. A advogada exige somas cada vez maiores para retirá-lo do cárcere. Ela se desdobra para atender a todos com abnegação de uma boa mãe, que a diretora vê como uma representação da própria cidade de Marselha, a preferida da comunidade árabe que migra para a França, e de Nossa Senhora da Guarda, padroeira representada por imensa escultura que a todos abençoa com um filho nos braços. Que ninguém, porém, espere um filme cristão e ingênuo. Muito menos pudico.

A diretora e roteirista de “A Boa Mãe” é a atriz Hafsia Herzi, protagonista do belo “O Segredo do Grão” (2007), primeiro sucesso internacional de Abdellatif Kechiche (que explodiria em Cannes com o homoerótico “Azul é a Cor Mais Quente”). Ela tinha de 19 para 20 anos quando atuou no “Grão” e ganhou o prêmio de atriz revelação em Veneza e no Cesar. Dirigiu um curta, partiu para seu primeiro longa (“Tu Mérites un Amour”) e começou a esboçar, ainda em 2007, as primeiras ideias da “A Boa Mãe”, inspirada em sua própria genitora. O filme ficaria pronto muitos anos mais tarde e a levaria à mostra Un Certain Régard. Por merecimento. Se Nora representa uma geração de mulheres de mais idade, que se desdobrava fibra por fibra pelos filhos, seus descendentes já estão em outro registro. As jovens do “A Boa Mãe” são mulheres cheias de vontade, que se dispõem à prática do sexo sadomasoquista e conversam, sem pudor, sobre o assunto. Utilizando a crueza bruta das ruas.

Para comemorar Bicentenário da Independência do Brasil, que acontecerá em setembro próximo, o distribuidor e exibidor André Sturm organizou mostra com 200 filmes brasileiros, sendo 100 longas-metragens e 100 curtas. Quem for a uma das quatro sessões diárias da Sala 4 do Cine Belas Artes, ao longo de todo mês de junho, pagará ingressos a preços simbólicos (quatro e dois reais). Quem preferir o streaming, poderá ver parte da mostra (30 títulos), de graça, na plataforma #CulturaEmCasa, da Secretaria de Estado da Cultura. A ideia do exibidor é apresentar um amplo panorama do cinema brasileiro, de suas origens, desde a fase muda (“A Filha do Advogado”, “Ganga Bruta”, que já fala um pouco), passando pelos filmusicais e chanchadas da Atlântida, pelos melodramas da Vera Cruz, pelos nordesterns, pelo Cinema Novo (com “Vidas Secas”, de Nelson Pereira dos Santos), pelos documentários (“Cabra Marcado para Morrer”), pelo Neo-Realismo (“A Dama do Cine Shangai”), pela Retomada (“Baile Perfumado”, “O Invasor”), até os dias atuais (“Que Horas Ela Volta?”, “Branco Sai, Preto Fica”) etc.

“A Dama do Cine Shangai”, de Guilherme de Almeida Prado

Já a Cinemateca Brasileira, em pleno processo de revitalização, comemora o centenário de nascimento de Alain Resnais, que acontece nesta sexta-feira, três de junho. Com apoio da Cinemateca da Embaixada da França, serão exibidos curtas, médias e longas-metragens de um dos mais importantes diretores do cinema europeu e mundial, autor de inquestionável obra-prima (“Hiroshima mon Amour”), e obra-enigma, que ainda hoje instiga os que têm o cinema como fonte de encantamento (“O Ano Passado em Marienbad”). E um média-metragem que integra o cânone dos mais exigentes: “Noite e Neblina”. E, a título de curiosidade, um filme — “Meu Tio da América” — que frequenta a lista de cult movies de Jorge Furtado. Além de exibir estes e outros títulos rennaisianos, a Cinemateca Brasileira oferecerá a seus frequentadores (todas as sessões serão gratuitas) palestra do professor Cristian Borges, da ECA-USP, sobre o diretor de “As Estátuas Também Morrem”. Aquele que dedicou um pequeno filme a uma imensa tela, “A Guernica”, de Picasso.

 

Má Sorte no Sexo ou Pornô Acidental
Romênia, Croácia, República Tcheca, 106 minutos, 2020
Direção: Radu Rade
Elenco: Katia Pascariu, Stefan Steel,Oana Maria Zaharia, Marina Voica, Claudia Ieremia, Nicodim Ungureanu, Nodi Vasluianu, Alex Bogdan

Está Tudo Bem
França, Bélgica, 112 minutos, 2021
Direção: François Ozon
Roteiro: François Ozon e Emmanuéle Berheim
Elenco: André Dussolier, Sophie Marceau, Geraldine Pailhas, Charlotte Rampling

A Boa Mãe
França, 103 minutos, 2021
Participação na mostra Un Certain Regard no Festival de Cannes 2021
Direção e roteiro: Hafsia Herzi
Elenco: Halima Benhamed, Sabrina Benhamed, Jawed Hannachi Herzi, Mourad Tahar Boussatha
Fotografia: Jérémie Attard. Montagem de Camille Toubkis
Produção: Saïd Ben Saïd e Michel Merkt

1982
Líbano, EUA, Noruega e Catar, 100 minutos, 2019
Falado em árabe e em inglês
Direção: Oualid Mouaness
Elenco: Nadine Labaki, Mohamad Dalli, Rodrigue Sleiman, Aliya Khalidi, Ghassan Maalouf, Gia Madi, Lelya Harkous, Said Serhan, Zeina Saab de Melero, Joseph Azoury
Produção: Oualid Mouaness, Alix Madigan-Yorkin, Georges Schoucair, Myriam Sassine, Christopher Tricarico e o brasileiro Jorge Takla

Mostra Bicentenário da Independência
Exibição, ao longo de todo o mês de junho, de 200 filmes brasileiros (100 longas-metragens e 100 curtas) no Cine Belas Artes (Rua da Consolação)
Trinta desses títulos serão exibidos no #CulturaEmCasa (streaming da Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo), de 15 a 29 de junho
Entre as atrações estão filmes da era muda (como “A Filha do Advogado”, do Ciclo do Recife, “Ganga Bruta”, de Humberto Mauro), passando pelo Cinema Novo, com “Vidas Secas, e chegando ao cinema contemporâneo, com “Que Horas Ela Volta?”
As sessões on-line são gratuitas. As sessões presenciais custam R$4,00 (inteira) e R$2,00 (meia).

Mostra 100 Anos de Alain Resnais
Local: Cinemateca Brasileira – Sala Grande Otelo (210 lugares, com assentos para cadeirantes) – Largo Senador Raul Cardoso, 207 – Vila Mariana
Ingressos gratuitos e distribuídos uma hora antes de cada sessão
Grade a seguir:

Quinta-feira, 2 de junho

20h00 – Hiroshima, Meu Amor (92 min, 35mm)

Sexta-feira, 3

19h00: As Estátuas Também Morrem (30 min, 35mm)

Toda a Memória do Mundo (22 min, digital)
20:00 – Mélo (112 min, digital)

Sábado, 4

16h00 – Palestra com o professor da ECA-USP Cristian Borges
18h00 – O Ano Passado em Marienbad (94 min, 35mm)
20h00 – Smoking (149 min, 35mm)

Domingo, 5

18h00 – No Smoking (149 min, 35mm)
21h00 – Guernica (13 min, 35mm)
Van Gogh (20 min, digital)
Paul Gauguin (14 min, digital)
O Canto do Estireno (19min, digital)

Quinta-feira, 9

20h00 – Guernica (13 min, 35mm)
Van Gogh (20 min, digital)
Paul Gauguin (14 min, digital)
O Canto do Estireno (19min, digital)

Sexta-feira, 10

19h00 – Muriel (112 min, 35mm)
21h00 – Stavisky… (120 min, 35mm)

Sábado, 11

18h00 – Amores Parisienses (120 min, 35mm)
20h30 – Meu Tio da América (125 min, 35mm)

Domingo, 12

18h00 – Noite e Neblina (32 min, 35mm)
Hiroshima, Meu Amor (92 min, 35mm)

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