Grande Othelo renasce em dois filmes nas telas da Mostra de Cinema de Ouro Preto

Por Maria do Rosário Caetano, de Ouro Preto

Sebastião Prata, o Grande Othelo, morreu há quase 30 anos, em solo francês, a caminho de festival de cinema que homenagearia a ele, aos filmusicais da Atlântida e às chanchadas. Era novembro de 1993 e o pequeno grande ator contava 78 anos.

O tempo passou e Othelo continua presente no imaginário brasileiro. Na Mostra de Cinema de Ouro Preto, a CineOP, ele renasce em dois filmes — um novíssimo, o curta, quase média-metragem, “Não Vim ao Mundo para Ser Pedra”, documentário do mineiro-baiano Fábio Rodrigo Filho, e “Katharsys”, longa ficcional do carioca Roberto Moura, realizado nos anos 1990, com três horas de duração, guardado na gaveta, e agora finalizado em metade do tempo original. Por enquanto, os dois filmes só estão disponíveis em circuito festivaleiro. E um curioso detalhe os une. Ambos foram realizados como trabalhos universitários. O de Rodrigo, como dissertação de mestrado na Universidade Federal de Minas Gerais, defendida recentemente. O de Roberto, como tese de doutorado, orientada por Ismail Xavier, na USP, no início da década de 1990.

É complexa a entrega de obras audiovisuais como fruto de trabalho de mestrado ou doutorado em universidades do mundo inteiro. Além do filme, instituições, fincadas na tradição escrita, costumam exigir textos formatados tradicionalmente. Roberto Moura, que nos anos 1970 e 1980 participava de experiências cooperativas com a Corisco Filmes, produtora fundada com Sérgio Santos e Murilo Salles, resolveu dedicar-se, também, à vida acadêmica. Na Universidade de São Paulo, propôs-se a estudar o processo de feitura de “filmes independentes” realizando um longa-metragem nesses moldes. Aí nasceu “Katharsys”.

Breno Moroni interpreta um cineasta integrado à fértil floração de realizadores alternativos brotada à margem das grandes produções. Ele realiza seus filmes do jeito que consegue e pode e os mostra aos espectadores. E vai enfrentando, aos trancos e barrancos, a realidade política e cinematográfica cada vez mais instável do país.

Ao mostrar o terceiro trabalho, as condições são já tão precárias, que ele só conta com um fotógrafo (Antônio Luiz Mendes) e um ator que é compelido a desempenhar todos o papeis. É nesse contexto que aparece um duplo do personagem, não mais o artista, mas uma entidade, Grande Othelo, Exu que transita pela realidade paralela da virada do milênio. Tudo isto foi mostrado (ao orientador Ismail Xavier) com 180 minutos de duração. Realizado em película, o filme foi engavetado.

Roberto Moura, cujo nome civil é Roberto Marchon Lemos de Moura, passou a dedicar-se por inteiro à carreira acadêmica, fez pós-doutorado na Sorbonne e tornou-se professor na UFF (Universidade Federal Fluminense). Ao aposentar-se, resolveu revisitar seu filme do inicio da década de 90, e finalizá-lo digitalmente e com duração sintética. Houve sessão para convidados na Cinemateca do MAM, no Rio. A primeira exibição pública acontece na CineOP. No elenco, além de Breno Moroni e Grande Otelo, estão Célia Maracajá, Vera Setta e Sebastião Lemos.

Já “Não Vim ao Mundo para Ser Pedra” é um pequeno milagre. Com a impetuosidade dos jovens, Fábio Rodrigues conseguiu o que documentaristas e produtores experientes como Evaldo Mocarzel e Ailton Franco Jr não conseguiram até agora: realizar um filme sobre a trajetória do pequeno Grande Othelo. Evaldo, autor de duas dezenas de longas documentais, esteve com tudo pronto para transformar a complexa e rica carreira artística do astro mineiro em filme, mas não conseguiu superar os obstáculos. O produtor Franco Jr e o diretor Lucas H. Rossi venceram edital da Globo Filmes, Globonews e Canal Brasil e deram início a longa-metragem em 2018. Passaram-se cinco anos e não há data para estreia do filme nos cinemas, nem na TV. E não são conhecidas as razões do atraso.

Pois o jovem Fábio propôs-se a realizar “um samba sobre o infinito”. Assim, dessa maneira —mais lacônica impossível — definiu seu filme (de 25 minutos), no catálogo da CineOP. Semanas atrás, fôra um pouquinho mais generoso no catálogo do Olhar de Cinema curitibano: “Através de recortes, Othelo propõe a ordem dos fatores, altera os resultados mesmo daquilo que parece mais consumado… genialidade que encarna dilemas inerentes, dilemas que estamos acostumados a enfrentar. Monumento porque em constante movimento, escapa, transborda, samba”.

A nós, idiotas da objetividade, vale uma descrição mais clara do belo ensaio documental de Fábio Rodrigues. Ele retrabalha materiais de arquivo (entrevistas de Othelo ao Roda Viva, Vox Populi, Quem Tem Medo da Verdade, TV Mulher) e fala de sua relação com “Macunaíma” e seu criador, Mário de Andrade. O faz com fartas imagens do filme de Joaquim Pedro de Andrade (“Macunaíma”, 1969) e de “Exu Piá” (Paulo Veríssimo, 1984). E com o comovente desabafo da professora Diva Guimarães a Lázaro Ramos, na Flip 2017. Enfim, um “samba sobre o infinito” que nos enriquece com as vivências do menino de Uberlândia que um dia virou ator para poder, como os que já exerciam o ofício, “comer bife a cavalo”.

Assim como “Não Vim ao Mundo para Ser Pedra”, outros filmes poderão ser vistos na CineOP on-line, até as 23h59’ desta segunda-feira, 27 de junho. Aproveitem, pois há biscoitos finos que hão de agradar a paladares exigentes. Principalmente aos apreciadores de filmes que dialogam com o cinema de arquivo. Caso de “A História da Guerra Civil”, de Dziga Vertov e Nicolai Ozvolov, “Glauber, Claro”, de César Meneghetti, “O Bom Cinema”, de Eugenio Puppo, “Quem Tem Medo?”, de Dellani Lima, Henrique Zanoni e Ricardo Alves Jr, “São Paulo em Hi-Fi”, de Lufe Steffen, e “Tempo Ruy”, de Adilson Mendes.

O filme que Adilson dedicou ao diretor de “Os Cafajestes” parece despretensioso. Mas não é. Trata-se de deliciosa (e franca) conversa entre um cidadão do mundo teimoso com ele só, impaciente aos 90 anos, com um pesquisador sereno e muito paciente. Em plena pandemia, Adilson vai à casa do cineasta, com muitas questões para colocar ao poeta, ator, compositor, montador, roteirista, cineasta, cronista, escritor, dramaturgo e pensador nascido na africana terra de Moçambique, educado na Europa (França, em especial) e radicado, por opção, no Brasil.

Quem conhece Ruy Alexandre Guerra Coelho Pereira sabe que ele é genioso e só fala o que quer e quando quer. Não faz média com ninguém, é bocudo, brigão, dono de ideias muito próprias. E, para defendê-las, se tiver que deixar amizades pelo caminho as deixará. E sem remorso aparente.

Tanto assim, que “Tempo Ruy”, que segue seu trajeto em clima de ensaio poético, com imagens de arquivo (TV Cultura), leitura de poemas e evocações memorialísticas, sofre um tranco quando Adilson pede que o moçambicano leia duas cartas (decerto dele a Glauber Rocha). Ruy se nega com rispidez. Calmo, o interlocutor-documentarista pergunta se pode, então, lê-las. De forma alguma, avisa Ruy. E agrega que, se o conteúdo delas aparecer no filme, Adilson Mendes será processado.

Em poucas palavras Ruy bom de Guerra diz que o desentendimento com Glauber teria nascido de fofoca. Não saberemos de nada. Contará que foi ao enterro do colega cinemanovista. Adilson Mendes, professor da Unicamp, pesquisador seríssimo, abandona logo o clima de intriga e parte para a obra de dois dos nomes máximos do Cinema Novo: o importante, argumenta, é lembrar que há aproximações entre os filmes que ambos realizaram, entre “Deus e o Diabo” e “Os Fuzis”, entre locações (de “Os Fuzis” e “O Dragão da Maldade”, realizados em Milagres, na Bahia). Há, inclusive, proximidades entre “Dragão” e “Os Deuses e os Mortos”. Ao que Ruy acrescenta: “há coincidências, sim, eu filmei ‘Os Deuses e os Mortos”, na Bahia, e nele há homens em árvores. Ao mesmo tempo, na África, Glauber realizava filme com homens também trepados em árvores. Um não via o filme do outro. Estávamos em continentes diferentes. Eram coincidências”.

No restante do filme, de enxutos 72 minutos, Ruy Guerra se mostra calmo, com seu inseparável e fumacento charuto, evoca a saudade que sente do amigo Gabo (o finado Gabriel García Márquez), com quem manteve intensa convivência no México e em Cuba e escreveu roteiros de filmes e séries (Me Alquilo para Soñar, Erendira, A Bela Palomera, Veneno da Madrugada). O vemos, jovem, lindo e intrépido em fotos de filmes de Werner Herzog e outros realizadores ou nos bastidores de suas muitas realizações. O incansável afro-lusitano-brasileiro está preparando o fecho de sua trilogia iniciada com “Os Fuzis” e sequenciada com “A Queda”. Em agosto fará 91 anos.

“São Paulo em Hi-Fi” (disponível on-line) foi exibido, presencialmente, na CineOP, em sessão dupla com “Os Primeiros Soldados”, do capixaba Rodrigo Oliveira. Os dois têm temática homoafetiva. E se passam em período semelhante. Um termina no momento em que o outro começa. “Hi-Fi” registra, com variado material de arquivo e ricos depoimentos (da divertidíssima Kaká di Polly, do escritor João Silvério Trevisan, dos jornalistas Celso Curi e Leão Lobo, da empresária Elisa Mascaro), a efervescente vida paulistana em casas noturnas que promoviam a ferveção gay, com shows e muita alegria. Tudo corria às mil maravilhas até que a Aids chegou para o desespero e morte de tantos.

É aí que, em Vitória, no Espírito Santo, encontraremos os protagonistas de “Os Primeiros Soldados”, um jovem branco (Johnny Massaro), que regressa da França, uma travesti (Renata Carvalho) e um videomaker black (Vitor Camilo). O três, soldados desconhecidos, enfrentarão uma guerra ainda indefinida ou intencionalmente ignorada por parentes, médicos e enfermeiros. O filme, que conquistou o Troféu Carlos Reichenbach, na Mostra de Cinema de Tiradentes, estreia nacionalmente no próximo sete de julho. Rodrigo Oliveira, também roteirista e montador, é um dos diretores do belo longa documental “Todos os Paulos do Mundo”, sobre o ator Paulo José.

Além de debruçar-se sobre a produção de realizadores indígenas, tônica deste ano, mostrar mais de 150 filmes e promover debates, oficinas, seminários e encontros na área dos patrimônio audiovisual, a CineOP chama atenção pela quantidade de livros reunidos em movimentada tarde de autógrafos. Estão aqui, na cidade que ambientou a Inconfidência Mineira, autores de 35 livros (26 impressos em papel e nove e-books). Três deles chamam atenção especial: “O Cinema Brasileiro em Resposta ao País (2016-2021)”, com coordenação editorial de Cleber Eduardo e organização das irmãs Raquel e Fernanda Hallak, ”Cine-Olho: Manifestos, Projetos e outros Escritos de Dziga Vertióv”, organizado por Luís Felipe Labaki, e “O Negócio do Filme – A Distribuição Cinematográfica no Brasil – 1907-1915”, de Rafael de Luna Freire.

O primeiro, um alentado volume publicado pela CineOP, pega a era Bolsonaro e o estrago que ela causou ao audiovisual brasileiro, no calor da hora, para promover mais que necessária reflexão. O livro de Labaki Jr, um calhamaço de mais de 600 páginas (Editora 34) tornou-se obra incontornável para quem se interessa pelo cinema documentário e por um de seus maiores artífices, o “pião que roda”, o “movimento incessante”, o Dziga Vertov (ou Dziga Vertióv, como prefere o jovem tradutor, prefaciador, organizador, anotador e adorável “cabeçudo” Labakinho). O rapaz, que é também cineasta, formado pela ECA-USP, tem vinte e poucos anos, fala russo, estuda dia e noite com prazer de causar inveja. E é simpático, nada arrogante.

O livro de Rafael de Luna, editado pela Cinemateca do MAM, em parceria com a UFF, regressa ao começo do século XX pra entender os primórdios da distribuição cinematográfica no Brasil. Um assunto vital.

Dos livros de papel, boa parte integra coleção editada pela Multifoco (onze títulos). Muitos tratam de temas dos mais interessantes, embora a embalagem seja fria e acadêmica. Capas que não se vendem ao leitor, impressas sem fotos, com cores esmaecidas e sem nenhum esmero visual. Um deles, de nome quilométrico, esconde assunto da hora — o cinema black e um de seus nomes seminais, o ator-cineasta Zózimo Bulbul (“A Produção de Presença Negra na Formação de Professores Pelos Olhares Decoloniais da Cinematografia de Zózimo Bulbul”, de Fábio José Paz da Rosa).

Houve um tempo em que livros, vindos de dissertações de mestrado ou teses de doutorado, estudavam o cinema (principalmente) de Peter Greenaway e outros realizadores badalados. Agora, a onda virou. Dos 35 livros lançados na CineOP, só um é dedicado a um grande mestre do cinema: “Conversas com Kurosawa”, de Nilda Alves (Editora Dp et Alii).

Os demais tratam de temas ligados à Inclusão, Educação Básica na Perspectiva da Diferença, Cinema na Escola do Vidigal (favela do Rio de Janeiro), os Clássicos do Cinema e a Educação, o Cinema Educativo Produzido no Brasil e na Argentina, Imagens de Velhices e Infâncias, Narrativas da Juventude do Quilombo Mato do Tição, a Realização Cinematográfica na Rede Municipal de BH, Pedagogias da Videoarte, Cinema nas Escolas, Caderno Para Brincar e Fazer Cinema. É, muita coisa mudou.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado.