“Ilusões Perdidas” oferece Balzac ao público da era das celebridades

Por Maria do Rosário Caetano

É chegada a hora. Quem não assistiu à aliciante recriação do monumental e corrosivo romance “Ilusões Perdidas”, de Balzac, no Festival Varilux, poderá fazê-lo, agora, nos cinemas. Nessa quinta-feira, 9 de junho, o filme de Xavier Giannoli estreia nos cinemas brasileiros, depois de representar a França no Festival de Veneza e de triunfar na festa do Cesar, o Oscar francês, em 2021, acumulando sete estatuetas.

Giannoli foi sábio ao adaptar o mais famoso dos romances de Honoré de Balzac. Nem com uma minissérie de dez capítulos conseguiria abarcar, por inteiro, a apaixonante história do sonhador Lucien de Rubempré, poeta provinciano que deseja fazer carreira nos meios artísticos e intelectuais parisienses. E, quem sabe, conseguir um título de nobreza, já que, passados os anos revolucionários, vive-se o período da Restauração. Sua mãe, insiste o rapaz, teria alguma gota de sangue azul correndo nas veias.

Giannoli, diretor de poucos filmes, tido pela crítica como mero artesão, decidiu — em parceria com o roteirista Jacques Fieschi — atrever-se a adaptar apenas a segunda parte do livro, “Um Grande Homem de Província em Paris”. Agindo assim, abandonou a juventude de Lucien em Angoulême, onde foi tipógrafo e iniciou-se na poesia, e a parte final, delirante e algo fantasmagórica, marcada por ilusões esgarçadas, desfeitas. As que dão título ao volume de 700 páginas.

“Ilusões Perdidas”, o filme, recebeu boas críticas, prêmios significativos e ótima bilheteria (em plena pandemia, vendeu quase um milhão de ingressos m salas francesas). A maré parece, pois, estar mudando seu curso. Giannoli pode deixar o segundo time do cinema francês. E, o que é melhor, passar a figurar naquele clube, por tão poucos frequentado, dos que conseguem realizar obras com muito a dizer, e que, mesmo assim, conseguem dialogar com o grande público.

O prolífico Honoré de Balzac (1799-1850) viveu pouco (apenas meio século), mas produziu como um louco movido a dívidas, ambição, café e outros aditivos. Conviveu com ironias pesadas. A maior delas do jovem conterrâneo, o esteta Gustave Flaubert (1821-1880), que gostava de ironizar: “que grande escritor Balzac seria, se soubesse escrever”. O tempo passou, e a história fez justiça a ambos. Ao criador de “Madame Bovary” e ao inventor da monumental “Comédia Humana”. Este realizou o milagre que poucos realizam: foi amado por imensas multidões de leitores, pelos séculos que se seguiriam, e por intelectuais da grandeza de Karl Marx, Friedrich Engels, Marcel Proust, Walter Benjamin, György Lukács, Paulo Ronai e Robert Stam.

O húngaro Lukács (1885-1971) definiu o romance “Ilusões Perdidas” como “o Dom Quixote das ilusões burguesas”. Antes, o germânico Engels faria observação ainda hoje surpreendente: “apesar de todas suas opiniões reacionárias”, Balzac valeria “por mil Zolas com toda a imagem democrática que deste se fazia”, pois o autor de “Ilusões Perdidas” nos ensina “mais sobre a sociedade francesa do que todos os historiadores, economistas e estatísticos profissionais do período juntos”. Robert Stam, da Universidade de Nova York, em seu livro “O Espetáculo Interrompido – Literatura e Cinema de Desmistificação”, coloca “Ilusões Perdidas” em linhagem nobre que vem de Cervantes, Fielding e Sterne, e lembra que “o tema central deste romance de Balzac é “a degradação da literatura e sua transformação em mercadoria na sociedade burguesa”.

O acerto de Giannoli está em realizar um filme ambientado no século XVIII, mas que fala de nosso tempo. “Um Grande Homem de Província em Paris” poderia se passar na Nova York, na Londres ou na São Paulo destes nossos anos marcados pela banalização das fake news, pela superficialidade, pelo mundanismo, pelo culto à celebridade, pela adulação.

Com diálogos cortantes, corrosivos e fieis ao original literário (sem nenhuma literatice), o cineasta constrói narrativa vigorosa, apoiada em poderoso elenco. Claro que o jovem Benjamin Voisin não tem cacife para enfrentar feras como Gérard Depardieu (arrasador na pele de editor venal, que passa cinco minutos em cena, mas eles valem por mil), Jeanne Balibar (uma nobre esnobe), Jean-François Stévenin (Singalis, um sórdido crítico de teatro) e Cécile de France (a protetora Condessa de Bargeton). E os jovens Vicent Lacoste (roubando a cena na pele do sarcástico Etienne Lousteau), Xavier Dolan, como narrador de voz aliciante, e a rechonchuda e encantadora Salomé Dewaels, a Coralie, dançarina de meias escarlates, presente em espetáculos de segunda categoria. Ela sonha ser uma grande atriz e, assim, figurar em elencos de importantes tragédias de Racine.

Quando o provinciano Lucien Chardon — que prefere ser identificado pelo sobrenome materno (Lucien de Rubempré, com o “de”, que traz resquício de nobreza) –chega a Paris, ele está impregnado de ilusões românticas. Acredita que obterá reconhecimento e êxito. Suas ilusões são plenas. Conta com a proteção de uma condessa, que o ama. Só que, sem perceber, será apanhado por engrenagem que soma o mundo editorial, no qual reina o editor Dauriat (Depardieu), o corrompido meio jornalístico (território do sarcástico Etiénne Lousteau) e o também escritor Raoul Nathan (Xavier Dolan). Conhecerá a Marquesa d’Esard (Jeanne Balibar), que olhará com estranho desprezo para aquele jovem provinciano, tão mal vestido, tão destoante da fina elite palaciana. O rapaz acabará por envolver-se com uma jovem atriz de espetáculos populares, Coralie (Salomé Dewaels).

O filme desenhará, em sedutores 149 minutos (que voam na tela), corrosivo e atualíssimo retrato dos bastidores da mídia (e da sociedade do espetáculo), seja ela a imprensa da segunda metade dos 1800, seja a de nossos dias. Estamos ainda na metade do ano, mas dificilmente “Ilusões Perdidas” e o romeno “Má Sorte no Sexo ou Pornô Acidental”, de Radu Jude, estarão ausentes das listas dos dez melhores lançamentos da temporada.

 

Ilusões Perdidas
França, 149 minutos, 2021
Direção: Xavier Gianolli
Elenco: Benjamin Voisin, Vincent Lacoste, Cécile de France, Salomé Dewaels, Gérard Depardieu, Xavier Dolan, Jeanne Balibar
Vencedor dos prêmios Cesar de melhor filme, roteiro adaptado (Xavier Giannoli e Jacques Fieschi), fotografia (Christophe Beaucarne), ator revelação (Benjamin Voisin), ator coadjuvante (Vincent Lacoste), figurino (Pierre-Jean Larroque), direção de arte (Dupire-Clément)

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