Memórias de Festivais

O dia em que Cardinale e Polanski brincaram com o Boi Garantido

Por Maria do Rosário Caetano

A Revista de CINEMA prossegue série de relatos, contendo lembranças cinematográficas ambientadas em festivais ou mostras brasileiros (e internacionais).

A oitava dessas lembranças tem o Amazon Film Festival, que acontecia em Manaus, com extensão na Floresta Amazônica, e sofreu solução de continuidade após realizar sua décima edição (entre 2001 e 2013).

Pena que tenha acabado, pois durante dez dias colocava a região Norte no centro do debate cinematográfico e em intercâmbio com grandes nomes do cinema, em especial o europeu. Mais ainda com a produção francesa. O Governo do Estado do Amazonas mantinha parceria com empresa sediada na França, que realizava festivais em países francófonos da África e do Caribe. Como os franceses sempre tiveram imenso fascínio pela Amazônia, acabaram estabelecendo base na maior floresta tropical do mundo.

Durante uma década, o Amazon Film Festival atraiu nomes como Carole Bouquet, Tcheky Karyo, Jean-Jacques Annaud, Philippe Petit, o equilibrista, Roman Polanski, cidadão francês de origem polonesa, Wolinsky, Claire Denis, Alex Descas, que se somavam a italianos como Claudia Cardinale, portugueses, como Joaquim de Almeida, ingleses, como Alan Parker e John Boorman, e estadunidenses, como Bill Pullman e Barry Pepper (que trabalhou com Tommy Lee Jones em “Três Enterros” e com Spielberg em “Resgate do Soldado Ryan”).

O festival manauara tinha três bases: o Teatro Amazonas, belíssimo, fruto da riqueza do Ciclo da Borracha, onde os filmes eram exibidos; o Hotel Tropical, dos tempos opulentos da Varig, às margens do Rio Negro, e o Hotel Ariaú, para dois dias de festejos, shows do Boi Garantido ou do Caprichoso, passeios na selva e convivência com micos e clima tropical. E, claro, nunca se pode esquecer, o que mais fascinava a todos: o encontro com o boto cor-de-rosa, que Jacques Cousteau, oceanógrafo e cineasta francês popularizara no mundo inteiro. Atores (Claudia Cardinale), cineastas (Polanski, Annaud, Boorman), todo mundo queria “abraçar” o escorregadio Boto.

O passeio era maravilhoso. Saíamos em um imenso barco, tipo gaiola, para viagem que durava umas seis horas. O primeiro deslumbramento se dava com o “Encontro das Águas” do Rio Amazonas com o Negro, uma barrenta e outra, preta, parecendo desenho de criança, delimitada como se fosse feita a lápis de cores fortes. E a assessoria de imprensa atiçava os jornalistas a conseguirem entrevistar os astros internacionais. Só que uns não queriam saber de nenhuma “mala perguntadora” por perto. Entre estes estava a francesa Claire Denis. Mas esta personagem estará em outro momento dessas lembranças.

O que se lembrará, aqui e agora, aconteceu no ano mais fascinante da história do Amazon Film Festival: o de 2005, quinta edição. A lista de convidados era encabeçada por Claudia Cardinale, estrela de Visconti (“O Leopardo”), Fellini (“Oito e Meio”), Monicelli (“Os Eternos Desconhecidos”), Bolognini (“O Belo Antônio”), Zurlini (“A Moça da Valise”), Sérgio Leone (“Era Uma Vez no Oeste”) e Werner Herzog (“FitzCarraldo”). E por Roman Polanski. Três anos antes, o diretor franco-polonês ganhara o Oscar de melhor direção por “O Pianista”. Depois de anos atribuladíssimos, de processo que o levara às barras dos tribunais (por estupro de menor), ele, aos 72 anos, parecia viver certo apaziguamento.

Claudia Cardinale quase matou o púplico de Amazon Film Festival de emoção. Como “FitzCarraldo foi filmado na Amazônia peruana e em Manaus, no Teatro Amazonas, recriou-se a entrada dela na casa de espetáculos operísticos, enquanto as imagens herzoguianas eram exibidas na tela. Ver a atriz em carne e osso, entrando no teatro, sob aplausos, e suas imagens projetadas no imenso telão, eram um mix de sonho-fantasia-e-realidade para deixar qualquer cinéfilo em êxtase. Depois disso, dividir uma mesa de jornalistas com ela no barco, rumo ao Hotel Ariaú, pareceu muito Neo-Realista, pois todos suavam, ela se abanava, encalorada.

No Brasil – em Manaus, especificamente –, Polanski viveu, como Claudia Cardinale, dias de tranquilidade. Sua missão era lançar adaptação que fizera de “Oliver Twist”, romance de Charles Dickens, no mercado brasileiro. Seu único compromisso profissional no Amazon Film Festival constava de uma entrevista coletiva. O resto eram passeios e a ida ao Encontro das Águas e à selva, com duas noites no Ariaú, onde assistiria a um show do Boi Garantido (de cor vermelha), nadaria com o Boto cor-de-rosa e fumaria baseados com jornalistas e quem mais se animasse. Muitos se animaram.

O baixinho polaco, que sempre aparentou bem menos idade do que tem (em 18 de agosto do ano que vem fará 90 anos), se esbaldou, festejou, nadou com o boto, bateu palmas para o bailado do Garantido e usou sua mão como anteparo para um prego saliente, que se destacava no tablado. Temia que bailarinos que rodopiavam em transe pelo imenso salão se ferissem. Claudia Cardinale o protegia, como uma guarda-corpo, vestida com calça branca e uma blusa de estampa delicada. Naquela altura, com o prego já consertado, Polanski ganhara um cocar do Boi Garantido, e ensaiava passos desajeitados. A imprensa de Manaus publicou bela foto da italiana e diretor de “Armadilha do Destino” que tentara impedir aquela armadilha para um bailador “garantido”.

Quando, findo o passeio, regressamos ao Hotel Tropical, em Manaus, aproximava-se a hora de Polanski enfrentar seus “inimigos” históricos: a imprensa. Quem conhece as biografias do cineasta sabe que ele sempre viveu relação das mais conturbadas com repórteres. Quando enfrentou as barras dos tribunais, nos EUA, sua vida foi devassada nos mínimos detalhes e a guerra atingiu lances inimagináveis. Uma carnificina (aliás, nome de um de seus filmes, “Carnage”, de 2011, no Brasil, “O Deus da Carnificina”).

A coletiva começou com a sala lotada. E em tom respeitoso. A língua escolhida foi o inglês e à mesa, com Polanski, estava a tradutora do festival, que dominava o idioma, mas não tinha familiaridade com o mundo do cinema. Estavam, na sala, a assessora de imprensa da Columbia, Lia Visotto, e a produtora polonesa Urszula Groska, radicada no Brasil, dona de imensa cultura, inclusive cinematográfica. Quando chegou minha vez (estávamos em novembro), perguntei se Polanski esperava ser indicado, mais uma vez, ao Oscar (já que ganhara a estatueta de melhor diretor com “O Pianista”) pois, ao adaptar Dickens, trabalhara tema caro aos acadêmicos, a infância desassistida e explorada. A tradutora simplificou a pergunta e deu a entender ao diretor de “Repulsa ao Sexo” que eu insinuara que ele apelara à chantagem temático-sentimental de meninos explorados para ganhar outro Oscar. Algumas vozes tentaram desmanchar o mal entendido, mas não houve tempo. Furioso, Polanski pegou pesado.

Levantei-me, quando ele terminou sua resposta indignada, não por me sentir ferida, mas porque teria que embarcar no Aeroporto de Manaus, pois seis ou sete horas depois moderaria debate do Projeto Curta Petrobras, no Festival Internacional de Curtas do Rio de Janeiro. Sempre admirei o cinema de Polanski, acompanhei sua conturbada trajetória, conhecia histórias de sua infância nos guetos judeus da Polônia ocupada, a morte trágica de sua mulher Sharon Tate (assassinada por seguidores da seita de Charles Mason), o terrível episódio do estupro de uma adolescente na Califórnia, que resultou em sua expulsão dos EUA… E sua relação de pouco amor e muito ódio em relação à imprensa.

Nas duas vezes que o vi, no Brasil, uma no Cinesesc, vestido com a camisa da Seleção brasileira (e no Programa de Jô Soares), e em sua passagem pela Amazônia, só guardei boas lembranças. Do episódio na coletiva, entendi perfeitamente que houvera um equívoco. Um problema de tradução.

Alguns anos depois, encontrei-me com o cineasta mineiro Helvécio Marins, e ele me narrou o que acontecera depois de minha saída da coletiva de Polanski. O cineasta respondera a mais algumas perguntas. Quando a atividade foi dada por finda, Urszula Groska o procurou e, na língua materna de ambos, o polonês, traduziu minha pergunta. Segundo testemunho de Helvécio, o cineasta pediu que me chamassem, que me pediria desculpa pela resposta atravessada. Não me encontraram, pois eu já voava rumo ao Rio de Janeiro. Coisas de festival.

One thought on “Memórias de Festivais

  • 15 de junho de 2022 em 11:06
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    Muito bom iniciar a manhã já lendo seu relato, relato qual encontrei por acaso enquanto estou procurando um filme especifico com a Claudia C. mas muito difícil de encontrar. A foto me prendeu a atenção, adorei imaginar a cena desta brilhante atriz entrando enquanto todos a lotavam de aplausos. Adoro o fato dela sair sempre tão bem nas fotos e sorrindo.

    Lamentável sua experiência ruim com o diretor P. eu não me lembrava que ele era o diretor de O Pianista e nem que era o esposo da falecida e também talentosa Sharon. Bem, que bom que ele percebeu que havia sido um erro de tradução e não uma inconveniência do público.

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