Gramado abre sua edição 50 com filmes sobre assassinato de jovens periféricos e escravidão sexual

Foto: Cristiano Burlan e elenco de “A Mãe”

Por Maria do Rosario Caetano, de Gramado

A noite inaugural da edição número 50 do Festival de Cinema de Gramado foi tão engajada que houve quem estranhasse. O dois curtas e, principalmente, os dois longas-metragens exibidos no Palácio dos Festivais abordaram temas de rara oportunidade e combustão social: o assassinato de jovens na periferia paulistana pelo braço armado do Estado (a Polícia) e a exploração de adolescentes na prostituição em zonas de garimpo na Amazônia peruana.

O primeiro longa exibido foi “A Mãe”, do gaúcho Cristiano Burlan, criado desde a pré-adolescência no Capão Redondo, zona periférica de São Paulo. Um cineasta que, trágica e prematuramente, enterrou muitos parentes próximos e conheceu a violência bem de perto. Seu novo filme (já são vinte no total) tem Marcélia Cartaxo no papel de Maria, mãe-solo, que vende óculos coreanos nas cercanias do Viaduto Santa Ifigênia. Com ela, que é a protagonista absoluta da narrativa, contracena elenco de apoio de significativo vigor. Maria mora em área periférica (filmagens foram feitas no Jardim Romano), onde a ação do Estado é praticamente nula. Só se mostra hipertrofiada, quando envia seu poder armado, a Polícia, para agir junto a pobres, em maioria pretos. Na companhia da mãe, solteira e trabalhadeira, vive seu filho Valdo (Dunstin Farias). O rapaz, que é rapper, sai para dar um rolê com um amigo. E não regressa.

A mãe, abalada, sai em busca do filho. A narrativa se constrói no estilo documental, marca profunda do cinema de Burlan, premiado no Festival É Tudo Verdade com “Mataram meu Irmão” (registro real e terrível do assassinato de Rafael, um dos filhos de sua genitora, ela também assassinada por um companheiro, tragédia registrada no longa “Elegia de um Crime”). Antes destes dois filmes, Burlan iniciara sua Trilogia do Luto com um média-metragem sobre a morte de seu pai, Vânio Porto (“Construção”).

O diretor de “A Mãe” escreveu, em parceria com Ana Carolina Marinho, um roteiro duro, seco, com raros momentos de, digamos, “deleite”. Eles surgem, quando surgem, na voz de Valdo, que declama um poema de Patativa do Assaré, canta um rap ou tira sarro da mãe, que passa batom para enfrentar mais um dia de trabalho duro como camelô. No campo visual, raras cenas abandonam a dureza cotidiana de um bairro periférico. Na mais bela e livre delas, um plano transforma os cabelos de Marcélia Cartaxo em foco de luz que se multiplica em muitas cores.

A construção da personagem de Maria é exasperante. Em sua busca pelo filho, ela não encontra apoio nas amigas, nem nas instituições, nem na vendedora de ovos e açúcar do mercadinho, nem na igreja evangélica. Duas pregadoras, ao invés de ajudá-la, a impacientam.

Quem se acostumou com a Marcélia Cartaxo que a todos consternou com Macabéia (“A Hora da Estrela”), a prostituta Laurinda (“Madame Satã”) e a bailarina Pacarrete do filme de mesmo nome, vai ter que acostumar-se ao registro duro de Burlan. Ele contou, no debate do filme, que conteve a atriz. “Ela gosta de extravasar, de ser intensa”. Por isso, sofreu muito durante as filmagens. “Eu vivia com os olhos em lágrimas” — testemunhou Marcélia —, “pedia para dar vazão aos meus sentimentos, mas Burlan me continha”.

“Houve um dia” — explicou o cineasta — “em que deixei-a extravasar. Ela ia à casa da amiga Lúcia perguntar se tinha notícias do filho, que não voltara para casa. Ninguém atendia à porta. Marcélia fez um escarcéu, gritou, quase arrancou o portão. A equipe aplaudiu, houve uma comoção. Mas o tom do filme seguiu contido. Eu não queria nada melodramático”.

Se Cristiano Burlan foge do melodrama, o mesmo não acontece com o jovem cineasta peruano Dorian Fernández Moris. Ao debater seu filme “La Pampa” com o público de Gramado — tendo ao lado sua protagonista, Reina (a atriz estreante Luz Pinedo) —, o diretor contou que seu quinto longa-metragem nasceu de muita pesquisa em região da Amazônia peruana, dominada pelo garimpo e pela prostituição (inclusive juvenil). Mas que, ao construir o roteiro (em parceria com Rogger Adrianzén), dialogou com fontes narrativas capazes de aproximar a história do público. Inclusive com o melodrama.

Juan (Fernando Basílio, “um dos atores mais premiados do Peru”) interpreta homem que passou por trágica perda pessoal. Fugitivo da Justiça, ele chega a mudar de nome. A troca, pelas trapaças da sorte, colocará novo drama em sua vida. Duas adolescentes aparecem em sua casa dizendo que uma delas é filha dele. A jovem está doente e vem de La Pampa, zona de prostituição que atende a garimpeiros, vorazes devastadores da região (outrora Floresta Amazônica, agora plana e de vegetação rarefeita como os pampas).

O homem sabe que a jovem não é sua filha, pois o nome que carrega é fruto de sua opção por nova (e protetora) identidade. Mesmo assim, resolve ajudá-la a encontrar algum parente. Ele sabe que atrás das fugitivas (e dele, por consequência) estarão capangas dos exploradores de La Pampa. Nenhuma fuga é admitida, já que servirá de incentivo à rebelião de outras prostitutas, mantidas como escravas sexuais, principalmente as mais jovens.

O filme, que custou 400 mil dólares, foi produzido num ano de ouro para o cinema peruano, 2019. Naquela data, pré-pandemia, o país andino produziu 60 filmes. Com a chegada do coronavírus, a produção caiu para pouco mais de dez longas por ano. O filme “La Pampa” foi selecionado para diversos festivais. Gramado é o nono deles.

O cineasta, que está na cidade em companhia da atriz Luz Pinedo, contou que a jovem foi selecionada entre 1.500 candidatas ao papel. Ele queria um rosto jovem e que lembrasse as moças de Madredeus, nome do estado (departamento) do sul peruano, onde o garimpo destrói a Floresta Amazônica e prostitui centenas de mulheres (muitas ainda adolescentes). A reduzida equipe aguarda a chegada de Fernando Basílio, o protagonista masculino de “La Pampa”, um dos representantes do filme no Festival de Lima, organizado pela Pontifícia Universidade Católica. “Nós também estávamos participando do festival limenho. Só que não esperamos a noite da premiação, pois queríamos conhecer o festival e a cidade de Gramado, tão linda”.

Dorian Fernández Moris e Luz Pinedo © Cleiton Thiele/Agência Pressphoto

Dorian Fernández Moris contou que seu filme foi integralmente realizado no norte do país, região que não tem nada a ver com La Pampa. “Nossa equipe de pesquisa enfrentou problemas com um drone, que lá captou imagens. Capatazes do garimpo queriam saber o que queríamos por ali. Minha equipe mentiu dizendo que fazia pesquisa universitária. Ameaçada, foi embora”. Os principais cenários do filme (em especial a zona de garimpo e a zona de prostituição) foram, então, reconstruídos em um campo de futebol, bem longe de Madredeus.

O cineasta garantiu que a situação nas zonas garimpeiras de seu país é terrível e que, depois da exibição do filme em Gramado, alguns espectadores lhe disseram que a situação na Amazônia brasileira é muito semelhante à peruana. Garimpos devastam a floresta. E a prostituição, inclusive de menores, também acontece com igual intensidade. Por fim, Dorian contou que seu quinto loga-metragem tem um “final feliz”, mesmo que banhado em violência. “Foi a forma que encontramos de dar alguma esperança ao espectador, de dizer que a situação pode mudar”. Afinal, arrematou, “mostramos uma realidade tão dura, que seria terrível se não houvesse uma esperança, mesmo que mínima, para nossa Reina”.

Dois curtas foram exibidos na primeira noite da competição de Gramado: o paranaense “O Fim da Imagem”, de Gil Baroni, diretor do descolado “Alice Jr”, e o fluminense “Deus Não Deixa”, de Marçal Viana, realizado em Nova Iguaçu. O primeiro é um ficção científica ambientada no mundo digital, que em nada lembra o colorido, esfuziante e LGTBTQ de “Alice Jr”. O segundo (“Deus Não Deixa”) realiza curioso mergulho no cotidiano de um jovem, “gay desde criança”, que reprime seus desejos, pois tornou-se evangélico.

“O Fim da Imagem” vem das experiências de Gil Baroni com a geração atual, esta que passa a maior parte de seus dias plugada no mundo digital. Ele, afinal, trabalhou com vários “influencers” como a badalada Kéfera. Em sua trama, o paranaense acrescenta ingredientes de horror ao gênero ficção científica. Dois pré-adolescentes permanecem fechados num quarto e imersos no mundo digital. A mãe do garoto implora que ele abra a porta. Berra, espanca a madeira, torce e retorne a fechadura. Na parede do quarto, vemos uma imagem de Jack Nicholson em “O Iluminado”. O que acontecerá ali só será entendido por quem acreditar num mundo totalmente dominado pela imagem virtual, capaz de levar uma garota negra e seu amigo branco a recorrer a um tipo de “eutanásia” existencial.

“Deus Não Deixa” revela muito das dificuldades vividas pelo diretor (nascido e criado em “New Guaicy”) e seu personagem, o jovem Luiz Miguel Bispo Baeta, também nascido na grande cidade da Baixada Fluminense. Ambos LGBTQ+, eles enfrentaram a discriminação, em especial na infância e adolescência. O curta-metragista abraçou o cinema e viu no criador da transformista Miga Sapequinha uma experiência de vida tão complexa, que resultaria muito bem em um longa-metragem. Como ganhou dinheiro, em edital, suficiente apenas para fazer um curta, aproveitou a oportunidade. Mas continua disposto a revelar muitas outras facetas do jovem Luiz Miguel, que neste momento tem “se sentido hétero” e continua frequentando e cantando na igreja evangélica, com sua voz melodiosa.

Aguardemos, pois. O longa-metragem não saiu das metas dos dois jovens da Baixada Fluminense, que estão “felicíssimos e honrados” por colocar uma produção de Nova Iguaçu na vitrine do mais badalado festival de cinema do país.

One thought on “Gramado abre sua edição 50 com filmes sobre assassinato de jovens periféricos e escravidão sexual

  • 15 de agosto de 2022 em 13:19
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    “O fim da imagem” toca num ponto que ninguém quer falar… autoflagelo como forma de aliviar a dor… causar uma dor física para bloquear a dor psíquica. Adolescentes vivem diariamente seus dramas internos, sem serem notados… o filme é um grito surdo, real, atual, mais forte ainda com a vivência desse tempo de reclusão pandêmica… só não vê quem não quer – excelente tema, ótima atuação… parabéns Gil Baroni

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