Gramado vê sexo no “A Porta ao Lado” e angustia-se com drama familiar argentino
Foto: Equipe e elenco de “A Porta ao Lado” © Edison Vara/Agência Pressphoto
Por Maria do Rosário Caetano, de Gramado
A quinta noite da mostra competitiva do Festival de Gramado teve sexo, traição, choro e angústia. A traição e o sexo vieram do Rio de Janeiro, impressos no oitavo longa-metragem de Júlia Rezende, “A Porta ao Lado”, protagonizado pelo quarteto Letícia Colin, Dan Ferreira, Bárbara Paz e Túlio Starling.
O choro veio do Nordeste na fala emocionada de Antônio Galdino, diretor do drama “O Pato”. Um curta-metragem sobre uma mãe, vítima de violência doméstica, que resolve interromper o indesejado ciclo, poupando sua filha pequena de igual destino. O cineasta, que estudou Cinema em Utah, nos EUA, mal conseguiu expressar sua alegria por encontrar-se em vitrine poderosa como Gramado. Ele chorava, embargava a voz e, quando conseguia expressar-se, agradecia ao pai (presente na Serra Gaúcha), a amigo vindo dos States e a integrantes da equipe. As razões de tanta emoção só ficariam claras na manhã seguinte, durante o debate dos filmes da noite anterior.
A angústia psicológica materializou-se no filme argentino “Quando Escurece”, de Néstor Mazzini, protagonizado por César Troncoso e por uma criança de sete anos (Matilde Creimer), de presença magnetizante. Um longa-metragem sintético (apenas 77 minutos), de muitas qualidades e atmosfera desesperadora.
A noite, que abrigou homenagens a três profissionais do CineGauTchê — a produtora Gina O’Donnel, o técnico Ivo Czamanski e o crítico Hélio Nascimento — contou ainda com um belo curta-metragem, “Solitude”, vindo do distante Amapá, com direção de Tami Martins e Aron Miranda. Trata-se de animação que vem causando sensação nos festivais. Ano passado, o filme venceu o Festival Internacional de Cinema do Rio de Janeiro, conquista inédita para o “Oiapoque brasileiro”. No debate de “Solitude”, os realizadores fizeram questão de lembrar a expressão “Do Oiapoque ao Chuí”, por estarem representando o Estado do extremo-norte, ponto inicial da linha que se completa no Rio Grande do Sul, justo no Chuí”. Toda criança brasileira aprende na escola, que somos um país de dimensão continental, que vai do Oiapoque ao Chuí.
O debate dos três títulos brasileiros foi dos mais concorridos. O do filme argentino mobilizou plateia menor, mas resultou de alta qualidade.
Tami e Aron contaram que “Solitude” nasceu de Edital do MinC, voltado à descentralização da produção audiovisual brasileira, aprovado em 2017. Ou seja, fruto de políticas públicas da Era Lula-Dilma. Mas que passaram-se cinco anos e nenhum novo edital foi promovido, mesmo que o curta amapaense venha causando furor e rendendo prêmios.
“Solitude” conta, em 13 minutos, com desenhos de arrebatadora beleza, a história de Sol, moça amazônica que depara-se com a solidão e diversas carências, depois de terminar relação abusiva. Com as liberdades narrativas que só o cinema de animação permite, o filme nos transporta de região da floresta tropical para o Deserto do Atacama, no Chile, onde uma Sombra busca sua independência, mas começará a esvanecer-se, lentamente.
Tami Martins, que é design de formação e ilustradora (inclusive do livro “Inventário Vermelho”), fez questão de destacar sua crença na luta pela união latino-americana. Daí levar sua narrativa visual da Amazônia verdejante para a secura do deserto chileno. Ela e sua equipe fizeram questão de imprimir nas cartelas finais do filme um protesto pela espera, que já dura cinco anos, de um novo edital. O Amapá não pode viver apartado e esquecido das políticas públicas.
Antônio Galdino, diretor de “O Pato”, começou a chorar (também!) no debate. Ao lado do roteirista Fernando Domingos, da atriz Norma Góes, do diretor de fotografia João Carlos Beltrão e da cantora e compositora Polyana Resende, ele foi construindo sua narrativa. Contou ter nascido na pequena Serrinha dos Pintos, no Rio Grande do Norte. Cresceu marginalizado por ser um “gay no interior” atrasado e hostil. Era o estranho, o diferente, aquele rejeitado e humilhado. Queria fazer cinema, mas como? Teve sua primeira chance no projeto “Revelando os Brasis”, criado na Gestão Gilberto Gil, no MinC.
Dirigiu o documentário “Flores que Murcham”, mas não conseguiu sequenciar a carreira. Tentou estudar Cinema na Universidade Federal de Pelotas. Não conseguiu. Foi parar na França. Depois, casou-se com um cidadão norte-americano e conseguiu estudar na Universidade de Utah. “O Pato” é seu trabalho de conclusão de curso. O filme já foi selecionado por vários festivais. Ganhou cinco Troféus Aruanda, Festival de Audiovisual de João Pessoa. Agora foi selecionado para Gramado, em sua festejada quinquagésima edição.
Na plateia do debate, o pai de Galdino o filmava, orgulhoso. O “gay do interior” conseguira ser respeitado como diretor de cinema, apesar de por sua outrora renegada condição homoafetiva. E aí quem começou a chorar foi o roteirista Fernando Domingos, que escreveu para o amigo Galdino uma história singular. Num interior poeirento, Cida (Norma Góes, atriz afro-brasileira de 52 anos) é vítima de violência doméstica. Enquanto lida com as atividades domésticas (mata, desossa e cozinha uma galinha), ela vê a filha pequena brincar num balanço, com os longos cabelos crespos ao vento. Revoltada com a relação tóxica com o marido, ela decide que sua filha não passará pelo que ela vem passando.
“A Cida é minha mãe” – contou o roteirista, de pele branca. Já chorando (como Galdino), Fernando esclareceu que foi criado por uma mãe negra, ao lado de irmãos também negros. E que esta mãe lhe dizia não ser vítima de violência doméstica. Mas, na prática, ela o fôra, pois foi compelida pelo companheiro a criar um filho branco (que ele tivera com uma amante). O menino cresceu com os irmãos e a mãe negra. Amou-os e descobriu sua condição sexual (homoafetiva).
Quando o amigo Galdino resolveu filmar o roteiro de Fernando, ambos decidiram que o filme não teria diálogos. O silêncio, sim, seria eloquente. Só na parte final uma canção intitulada “Não Vou Mais Engolir o Choro” (de Polyana Resende) externaria, com palavras e melodia, o grito de Cida. Como a personagem cozinha uma galinha e não um pato, o público ficou intrigado. Por que outra ave fôra escolhida para título?
Diretor e roteirista explicaram: “o filme foi concebido no momento em que “uma mulher era deposta injustamente da presidência da República“ e a Fiesp criava “um pato que simbolizava o machismo, a canalhice, a opressão sobre mulheres negras e homoafetivos”.
O longa-metragem “A Porta ao Lado” é o único projeto dirigido por uma mulher na competição gramadiana deste ano. No caso, pela carioca Júlia Rezende, diretora de blockbusters como “Meu Passado me Condena” (1 e 2) e “De Pernas pro Ar 3”. E de dois filmes mais contidos em sua busca de diálogo com o público — a comédia dramática “Como é Cruel Viver Assim” e o drama amoroso “Ponte Aérea”, este protagonizado por Letícia Colin e Caio Blat.
No novo filme, “A Porta ao Lado”, Letícia Colin volta como integrante do quarteto de protagonistas. Ela interpreta Mariana, a Marí, jovem que vive relação monogâmica com o marido, Rafa (Dan Ferreira). Um casal multirracial, ele, rico e capaz de dar a ela um simpático restaurante no qual, além de dona, ela é a cozinheira-chefe.
O casal vive amorosamente até chegar para residir no apartamento ao lado a dupla Isis (Bárbara Paz) e Fred (Túlio Starling). O casal que chega vive relacionamento aberto (Isis, inclusive, mantém relação homoafetiva com a personagem de Dani Ornellas). E tudo segue em frente, pois ela, herdeira de fazenda de cultivo de produtos orgânicos, não exige fidelidade do marido, nem ele dela. Há, porém, um limite aceito pelos dois. Ela não terá filhos.
A crítica recebeu o filme de Júlia Rezende com um pé atrás. Viu no enredo um projeto temperado com pitadas fashion (ambientes descolados, gente endinheirada, profissões charmosas, roupas coloridas e bem-desenhadas). Ao invés de enfrentar problemas como racismo (Rafa é negro, mas sua cor não faz a menor diferença na história) ou dificuldades laborais, tudo se resume a preocupação obsessiva e única: o que é traição? É manter relacionamento extraconjugal? Quebrar pacto acordado de não ter filhos? O mundo lá fora, com suas mazelas, praticamente não interfere na vida conjugal-erótica dos dois casais.
Se parte significativa da crítica fez restrições ao filme, o público que compareceu ao debate o recebeu com grande interesse. Entusiasmo até. As perguntas se referiram ao projeto de Júlia Rezende de alternar blockbusters com filmes mais íntimos, de estar levando o sexo (a cada novo filme) cada vez mais para o centro de suas narrativas, sobre o desempenho dos atores e questões de produção (o longa foi realizado durante a pandemia, sob rigoroso protocolo, já que os atores trocavam beijos, abraços e calientes carícias).
Ninguém questionou nenhum aspecto estético do filme, nem se incomodou com a bolha vivida pelos dois casais. Nenhum aspecto do roteiro, escrito por Patrícia Corso e LG Bayão, foi questionado. O filme de Júlia, produzido pela Morena Filmes (da dinâmica produtora Mariza Leão), a depender da plateia do debate, foi aprovado.
“Quando Escurece” foi discutido em outro tom. Debateu-se linguagem e a opção do cineasta argentino Néstor Mazzini pelo drama psicológico em diálogo com o horror. O filme, segunda parte de trilogia iniciada com “36 Horas”, conta a história de Pedro (César Troncoso, de “O Banheiro do Papa”), um pai desesperado com a separação da esposa Érica (Andrea Carballo), que resolver empreender viagem com a filha de ambos, Flor (a impressionante menina Matilde Creimer Chabranco). Uma viagem, registre-se, sem destino certo.
Ao volante de um modesto carro, Pedro dá a entender à filha, de apenas sete anos, que eles estão em viagem de lazer. A menina, muito esperta, conversa sobre temas diversos com o pai, se diverte, passeia num teleférico (ou “cadeiras aéreas”, como dizem os argentinos). Mas o pai vive em obscuras conversas telefônicas com a ex-esposa, muitas delas aos gritos. A menininha, com saudades da mãe, insiste em falar com ela. O pai diz que Erica está em lugar ermo, onde não há sinal de celular.
A garotinha começa a desconfiar que algo de estranho está acontecendo. E está mesmo. Transtornado, Pedro, na verdade, sequestrou a filha. Desesperada, a mãe procura a Polícia. Mas não se descobre por onde andam pai e filha. Até que, atormentada, a menina resolve embrenhar-se numa mata escura. E desaparece.
O filme, que já construíra atmosfera densa e intrigante, torna-se ainda mais angustiante. Elenco poderoso, direção de arte despojada e eficiente, fotografia certeira (de Guillerme Saposnik) e montagem de raro poder de síntese (de Flor Gomez García e Mario Pavez) dão ao diretor tudo o que ele desejava para o miolo de sua trilogia. Na primeira história (“36 Horas”), a menina Matilde tinha participação pequena. Em “Quando Escurece”, ela é coprotagonista e brilha ao lado do experiente César Troncoso.
O novo filme, o que encerrará a trilogia de Néstor Mazzini (também roteirista) vai centrar-se na personagem materna. Pedro, depois de cumprir três anos de reclusão (pelo sequestro da própria filha), tentará se reaproximar da criança. A mãe, então, terá que travar luta para proteger a pequena Flor.
O filme argentino é forte candidato a alguns troféus Kikito na competição ibero-americana. O público brasileiro mostrou imenso interesse em conhecer o longa inaugural da trilogia. Néstor Mazzini disse estar em fase de entendimentos com distribuidor gaúcho para que “36 Horas” e “Quando Escurece” estreiem, ambos, nas salas brasileiras.