Gramado tem noite com pastor evangélico, guerrilheiro e bicheiro de origem lusitana

Foto: Elenco e equipe de “O Pastor e o Guerrilheiro”© Cleiton Thiele/Agência Pressphoto

Por Maria do Rosário Caetano, de Gramado

A quarta noite da mostra competitiva do Festival de Gramado compôs-se com dois longas de construção clássica — o brasiliense “O Pastor e o Guerrilheiro”, de José Eduardo Belmonte, e o lusitano-carioca “O Último Animal”, de Leonel Vieira — e dois curtas experimentais. Um, “Tekoha”, do paulistano Carlos Adriano, e outro “Serrão”, do mineiro Marcelo Lin.

Entre os dois programas, sob temporal que fez jorrar água no palco do Palácio dos Festivais, foi homenageado o cineasta Joel Zito Araújo, que recebeu o Troféu Eduardo Abelin por sua importante trajetória no audiovisual.

O diretor de “A Negação do Brasil” (registro dos estereótipos colados às raras personagens negras de nossas telenovelas) e das ficções “Filhas do Vento” e “O Pai da Rita”, subiu ao palco com um sorriso largo no rosto e sólido discurso (não-escrito) para agradecer ao troféu. Evocou seus ancestrais no audiovisual e na vida familiar, dedicou o prêmio a quatro brasileiros (Oscarito, Grande Otelo, Milton Gonçalves e Sirmar Antunes), os dois primeiros, gênios da comédia, e os dois últimos, atores que engrandeceram nosso audiovisual e partiram recentemente.

Joel Zito lembrou a alegria de ter subido ao palco do Palácio dos Festivais com Milton Gonçalves, ator que ele dirigiu em “Filhas do Vento”. Lamentou discursos políticos, inclusive da primeira-dama Michele Bolsonaro, que discriminam os cultos afro-brasileiros e evocou seu protetor, Xangô, deus da Justiça, dos raios, trovões e tempestades. Viu na “cachoeira” que brotou inesperadamente do teto do cinema uma saudação luminosa do seu orixá. Os aplausos do público foram calorosos.

Cineasta e pesquisador Joel Zito Araújo recebe o Troféu Eduardo Abelin © Edison Vara/Agência Pressphoto

A água de um rio, o Araguaia, também fertiliza a narrativa do primeiro longa exibido na quarta noite da competição gramadiana,  “O Pastor e o Guerrilheiro”. O filme de José Eduardo Belmonte tem a Guerrilha do Araguaia como um dos seus temas. Um de seus protagonistas, o guerrilheiro Miguel (Johnny Massaro), tornou-se militante do PC do B (Partido Comunista do Brasil) e foi lutar na zona rural, em região hoje correspondente aos Estados de Goiás, Tocantins e Pará. Incumbido de determinada missão, perdeu-se na mata densa e acabou encarcerado. Foi na prisão que ele conheceu o Pastor Zaqueu (César Mello), de confissão evangélica, encarcerado por engano. Apesar das diferenças ideológicas, o agnóstico e o cristão se entenderam e marcaram um encontro para dali há 27 anos, no Réveillon do ano 2000. Local: a Torre de TV, em Brasília.

O filme do prolífico Belmonte, produzido por Nilson Araújo Fonseca (também autor do argumento e colaborador do roteiro de “O Pastor e o Guerrilheiro”) se desenvolve em três tempos: no começo da década de 1970, quando quadros do PCdoB vão estabelecer guerra de guerrilhas no Araguaia, no final do milênio(1999 para 2000),  e em 1968, ano em que a UnB (Universidade de Brasília), foi invadida pela Polícia. Um dos alunos era João, que adotaria o codinome Miguel, o guerrilheiro que, junto com o Pastor Zaqueu, dá nome ao filme.

Nilson Rodrigues, idealizador do projeto e amigo de dois ex-guerrilheiros (José Genoíno, do PCdoB, e Juca Ferreira, do MR-8, ambos presentes à sessão do filme), teve na leitura do livro “Relato de um Guerrilheiro”, de Glênio Sá, o insight original para este drama histórico, com pitadas épicas. Iniciou as pesquisas que subsidiariam o roteiro junto com o escritor e jornalista José Rezende Jr. Ouviram relatos de guerrilheiros (em especial José Genoíno) e estruturaram um primeiro tratamento da história. Com a escolha de José Eduardo Belmonte, cineasta formado pela UnB, Nilson, Rezende e o diretor passaram a trabalhar  em trio.

Houve, por fim, momento em que sentiram necessidade de trazer um olhar feminino e de fora para dar melhor acabamento ao roteiro. Foi aí que entrou a argentina Josefina Trotta, radicada no Brasil. Ela fez a versão final.

A trama inspira-sem fatos reais, mas traz personagens fictícios, com Juliana (Júlia Dalávia), que interpreta a filha bastarda de um militar (Ricardo Gelli). Num dia de 1999, o coronel toma atitude extrema e suicida-se. A jovem descobre que ele participara da máquina de repressão e tortura montada pelo regime militar. Um conflito de consciência a atormentará. Ela deverá aceitar a herança dele? Mesmo que sua avó (Cássia Kiss) necessite de recursos para tratamento médico? Com o roteiro pronto, produtor e diretor montaram elenco e equipe técnica (destaque para a fotógrafa uruguaia Bárbara Alvarez, colaboradora da argentina Lucrécia Martel). E estabeleceram as locações do filme: o Bico do Papagaio, próximo ao Pará, onde se encontram os rios Tocantins e Araguaia, Brasília e o campus da UnB, visto em 1968 e 1999. O custo do filme, segundo Belmonte, não chegou a R$5 milhões, pois ele aprendeu, assim como sua fotógrafa Bárbara Alvarez, a filmar sequências épicas com poucos recursos.

O diretor confessou ter buscado nos filmes de Valerio Zurlini e Akira Kurosawa, fontes de diálogo. “Sequências épicas, como a invasão da UnB, foram resolvidas com posicionamentos de câmara e fumaça, como fazia Kurosawa”, exemplificou. E mais: “a direção de arte de Ana Paula Cardoso e os enquadramentos de Bárbara me ajudaram a praticar esta forma austera de filmar”. Belmonte agradeceu, também, ao diretor e produtor Guel Arraes, que confiou a ele a direção da série “Carcereiros”.

— Nesta série, filmávamos uma rebelião por semana. Então, éramos obrigados a registrar grandes cenas em curto espaço de tempo e sem imensas figurações e gastos. Daí nossa expertise em resolver a narrativa com posicionamentos de câmara”.

Nilson Rodrigues, o produtor, preferiu não citar o custo final do filme, mas destacar os parceiros que conquistou ao longo do processo: Edital Brasília, recursos do Fundo Setorial do MinC, o Telecine e o Canal Brasil. Satisfeito, confessou ter chegado à cópia final de “O Pastor e o Guerrilheiro” sem nenhuma dívida, como não ocorrera com projetos anteriores. E que dera ao filme as locações reais que ele exigia. “Filmamos no Bico do Papagaio, providenciei os 500 figurantes exigidos por determinada sequência, contamos com ótimos atores e técnicos. Eu, pessoalmente, contei com a colaboração valiosa de Caetano Curi, o produtor-executivo, que fez trabalho da maior importância”.

Se depender dos parceiros de Nilson Rodrigues, o filme será lançado no dia três de novembro. Mas ele promete esforços para adiar a data, pois “o filme tem convite para vários festivais nacionais e até interacionais”.

Durante o debate de “O Pastor e o Guerrilheiro”, que teve a maior lotação até agora (em parte porque chuva e intenso nevoeiro impediram passeios pelas frias manhãs de Gramado), o público e imprensa mostraram curiosidade sobre o roteiro (o que ele tinha de fato histórico e de ficção), se estávamos diante de “um filme de produtor” ou de “um filme de autor” (já que Belmonte atuou como diretor-convidado) e sobre o desempenho dos atores. O trabalho de Johnny Massaro foi elogiado (pois construído com pegada física, corporal), e o de César Mello, o Pastor Zaqueu, mais ainda. Massaro agradeceu muito à diretora de arte por sua caracterização: “devo 60% do meu desempenho a ela”, exagerou, e elogiou o colega César Mello. “Ele é o protagonista de ‘Doutor Gama’, de Jeferson De, e está no elenco de muitos outros filmes” (em Gramado, integra o elenco coral de “O Clube dos Anjos”). Belmonte contou que houve quem pensasse que ele escalara um pastor de verdade para o filme. E que César inspirou-se na figura do pai, um pastor evangélico.

José Genoíno, que colaborou com testemunhos ao roteiro do filme (da história dele saiu a fissura por água, em momento que somava sede a transtornos decorrentes da malária), lembrou que os que eram libertados do cárcere cantavam a “Internacional” e “minha jangada vai partir pro mar”, de Dorival Caymmi (chorou nessa hora). E disse que os libertos acertavam, com quem ficava, encontro futuro. “Me lembro que, acreditando na Revolução, combinamos de subir juntos a rampa do Planalto, no ano 2000”. Daí que nos emocionamos muito, quando alguns de nós realmente subiram a rampa com Lula, quando ele tomou posse na Presidência, em primeiro de janeiro de 2003.

Johnny Massaro contou que, na preparação do guerrilheiro Miguel, conversou muito com Genoíno. Perguntei a ele se ainda acreditava na luta armada. “Não”, ele me respondeu, “acredito na democracia radical”.

Juca Ferreira, que foi ministro da Cultura de Dilma Rousseff, deu seu testemunho sobre o filme. Gostou do que viu, dos atores, da ausência de maniqueísmos, mas sentiu falta de visão mais afiada e crítica sobre o papel dos evangélicos. “Claro que eles são múltiplos, complexos e não devem ser retratados de maneira simplista. Mas senti falta de rigor com os neopentecostais. Leonel Brizola foi preciso ao detectar o fenômeno religioso que se alastrava na sociedade brasileira. Lamentou a base retrógrada que os estimulava e previu que, além de seus templos e fiéis, eles iriam se infiltrar na política e o fariam fincados na aposta em terríveis retrocessos”.

O longa português “O Último Animal” tem DNA carioca, pois se compõe como um genérico de “Cidade de Deus” e “Tropa de Elite”, temperado com protagonistas estrangeiros (um bicheiro inspirado em Castor de Andrade, interpretado por Joaquim de Almeida, um ongueiro britânico que troca as boas ações por cocaína e sexo, e um empresário chicano, que vem associar-se a negócios escusos no Brasil). Eles somam-se a dois irmãos favelados — um, de apelido Didi, honesto e trabalhador, interpretado por Júnior Vieira, e outro, chefe do tráfico, de nome Calango. E quando se fala em Jogo do Bicho, não se pode esquecer das Escolas de Samba e de seus patronos. No filme de Leonel Vieira, uma jovem, Paulinha (Gabriela Lorran), sonha em ser destaque na agremiação mantida pelo Dr. Caio (na verdade o apelido de um imigrante português, de nome Casimiro Alves, que ganha interpretação correta de Joaquim Almeida).

O filme tenta inovar a história das jovens mulatas, bonitas e donas de curvas sensacionais, que sonham causar furor no carnaval. Na trama, Paulinha será uma jovem transexual, filha bastarda (e renegada) do poderoso bicheiro. Leonel Vieira, que conquistou três trofeus Kikito com “A Sombra dos Abutres” (em 1999), urdiu com parceiros europeus e brasileiros (representados pelo produtor Carlos de Andrade), um filme de alma gringa. Ele nega o rótulo, jura que, mesmo sendo lusitano, tem profunda ligação com o Brasil (foi coprodutor de “Budapeste”, de Walter Carvalho) e que, depois de ler artigo sobre o Jogo do Bicho e suas ligações com o tráfico de drogas e lavagem de dinheiro sujo, bolou o argumento de um filme cujo nome provisório seria “A Grande Jogada”. Aliou-se a dois roteiristas brasileiros, Leonardo Gudel e Ernesto Solis, e construiu um “favela movie” em ritmo de thriller à moda norte-americana. Falado em inglês e português (com um pouquinho de espanhol) o filme parece uma colcha de retalhos costurada para públicos internacionais.

Equipe do longa-metragem estrangeiro “O Último Animal” © Cleiton Thiele/Agência Pressphoto

Os ingredientes vieram de “Cidade de Deus”, “Tropa de Elite” e até da série “Doutor Castor” (Globoplay),  mesmo que esta lhe seja posterior. Afinal, dezenas de reportagens foram escritas sobre o mais famoso dos bicheiros cariocas, patrono da Mocidade Inependente de Padre Miguel e do Bangú Esporte Clube, além de ser um os chefões que criaram a poderosa Liga Independente das Escolas da Samba (a Liesa). Desta vez, não devem sobrar trofeus Kikito para “A Grande Jogada” de Leonel Vieira. Ele e sua equipe optraram por um título realmente empolgante — “O Último Animal”. Mas o filme é o que outrora se chamava “macumba para turista”. E hoje, em tempos politicamente corretos, podemos chamar, sem nenhum constrangimento, de “colcha de retalho para aquecer gringos”. Ou “genérico pouco eficiente”.

Os dois curtas da quarta noite — “Tekoha” (“onde se é”, em guarani, referindo-se ao território), e “Serrão” (referência a favela mineira, onde Helvécio Ratton filmou “Uma Onda no Ar”) — sequenciam os trabalhos de seus criadores, o experimentado e erudito Carlos Adriano e o jovem Marcelo Lin, formado sob a influência do time de realizadores da produtora Filmes de Plástico, de Contagem, na Grande BH.

Adriano mergulha, mais uma vez, no cinema experimental, para transformar curtos registros visuais (um tiro que mata um indígena guarani, e o fogo que devorara casa de rezas do mesmo grupo étnico) para, com citações poético-textuais de T. S. Elliot, Souzândrade e Ailton Krenak,  desenhar quadro dantesco dos sofrimentos impingidos à nação Guarani, em luta contra o extermínio há mais de quatro séculos.

Marcelo Lin parte de sua comunidade (a favela do Serrão) e grupo de familiares e amigos para mostrar um homem que perdeu um olho e regressa à sua gente para tentar reconstruir sua vida. Se Buñuel e Dali causaram sensação com um olho cortado por navalha em “Un Chien Andaloux”, Lin se aproxima de tal horror-dor ao filmar seu protagonista em ato inusitado. Ele coloca um olho-prótese na vista destruída. O faz em close, causando no espectador imenso desconforto.

O jovem cineasta já lançou quatro curtas e médias e tem outros prontos para mostrar. Promete, em breve, um longa-metragem capaz de somar tudo o que filmou na favela, território conhecido como a palma da mão, e que batiza seu novo filme, um dos concorrentes ao Troféu Kikito.

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