Morricone, genial trilheiro do western spaghetti, é tema de filme de Tornatore
Por Maria do Rosário Caetano
A trajetória artística e existencial do compositor Ennio Morricone, famoso por criar trilhas sonoras para alguns dos títulos mais conhecidos do western spaghetti, chega às telas brasileiras a partir desta quinta-feira, 29 de setembro. Afinal, o genial artista italiano, que morreu em julho de 2020, aos 91 anos, é a razão de ser do longa documental “Ennio, o Maestro”, de Giuseppe Tornatore.
O filme, que dura duas horas e meia, constitui programa obrigatório para os fãs do músico erudito, artista de vanguarda, com atuação marcante no Grupo de Improviso Nuova Consonanza. Ele compôs, mesmo que envergonhado, trilhas para muitos dos faroestes italianos filmados na região espanhola de Almería. Temia que seu maestro, o professor Giuseppe Petrassi, soubesse que o aluno brilhante estava metido em filmes comerciais, que imitavam os westerns de Hollywood. Como precisava garantir o sustento da família, ele se desdobrava, trabalhando como remador de Ben-Hur. Fosse como trilheiro de pepluns (filmes de gladiadores romanos), melodramas, western spaghetti ou produções elaboradas de Gillo Pontecorvo (“A Batalha de Argel”), Pier Paolo Pasolini (“Teorema”, “Decameron”, “Saló”) ou Bertolucci (“Novecento”). E ainda dirigia a área de arranjos da RCA italiana. Isto, naquele momento em que o Festival de San Reno e a canzone italiana tinham difusão mundial (vide dois dos sucessos arranjados por ele: “Il Mondo” e “Sapore di Sale”).
Envergonhado ou não, o que deu fama e popularidade ao maestro peninsular foi a trilogia “Por um Punhado de Dólares” (1964), “Por um Punhado de Dólares a Mais” (1965) e “Três Homens em Conflito” (1966), assinada pelo conterrâneo Sergio Leone.
Quem conseguiria esquecer aqueles sons que lembravam uivos de coiotes e colavam nos ouvidos dos espectadores, que depois, felizes, os assoviavam? Junto com Leone, Ennio faria, ainda, “Era uma Vez no Oeste” (1968) e “Era uma Vez na América” (1984). Não realizaram “O Cerco de Leningrado”, porque Leone morreu prematuramente.
O documentário de Giuseppe Tornatore, detentor do Oscar de melhor filme estrangeiro por “Cinema Paradiso”, é um típico “cabeças-falantes”. O conterrâneo de Morricone não dá tempo ao espectador para que respire ou reflita, tamanha a carga de informação e as múltiplas facetas do personagem abordadas-exploradas. E como o realizador conviveu com o maestro (Morricone assinou as trilhas de “Cinema Paradiso”, “Baaria”, “Malena”, “Lenda do Pianista do Mar”, etc.), Tornatore é parte íntima de sua história e parece temeroso de deixar algum colega ilustre (ou nem tanto assim) de fora.
Há, ainda, os fãs que Ennio Morricone conquistou mundo afora (Quincy Jones, Bruce Springsteen, Clint Eastwood e Quentin Tarantino, este o admirador mais fiel e festeiro). Entre os patrícios estão registros de Nicola Piovani, Bertolucci, Bellocchio, Dario Argento, Sergio Leone, Liliana Cavani e a desbocada Lina Wertmuller. Até o chinês Wong Kar Wai tem sua hora e sua vez (ele é um dos produtores e distribuidores de “Ennio, o Maestro”). São 50 “cabeças-falantes”!
Claro que o material de arquivo é arrebatador. A RAI (Rádio e TV Italiana) e outras fontes de imagens europeias primam por manter arquivos brilhando de novos, a ponto de nos deixar morrendo de inveja. Pena que Tornatore não permita que seus entrevistados falem mais que uma ou duas frases. A montagem é picotada, frenética. Se o diretor brasileiro Carlos Adriano, praticante do filme-ensaio e da ressignificação de materiais de arquivo, é capaz de transformar alguns fotogramas num curta-metragem de muitos minutos, Tornatore parece disposto a comprimir milhares de imagens e sons numa avalanche alucinatória.
Mesmo assim dá para captar-memorizar momentos importantes da trajetória do compositor, arranjador e maestro romano, tímido, pacato, modesto, casado a vida inteira com a mesma mulher. Workaholic assumido, ele comporia 500 (sim quinhentas!) trilhas para cinema e TV. Era do tipo que recebia prêmios com imensa alegria. E fazia questão de usar a língua materna para agradecer. Foi assim até na noite do Oscar honorário que Hollywood lhe ofereceria tardiamente. E, mais tardiamente ainda, o único Oscar que recebeu por trilha específica. Sim, o mais genial dos compositores de cinema (junto com outro italiano, Nino Rota, o preferido de Fellini) só conquistou a láurea em 2015 com “Os Oito Odiados”, de Quentin Tarantino. Um registro final: o documentário de Tornatore tem uma trilha sonora genial, composta com trechos das composições morriconianas, que serviram a filmes dos mais diversos autores e estilos. Sempre com muito estilo, talento e ousadia.
Ennio, o Maestro
Itália, 156 minutos, 2021
Direção e roteiro: Giuseppe Tornatore
Depoimentos: 50 músicos, diretores, atores e familiares
Fotografia: Giancarlo Leggeri e Fabio Zamarion
Montagem: Massimo Quaglia
Produção: Fu Works e PotemKino
Distribuição: Risi Film Brasil e Bonfilm