Sambistas vivem entre subemprego e sonho de sucesso na noite paulistana

Por Maria do Rosário Caetano

“Curtas Jornadas Noite Adentro”, terceiro longa-metragem de Thiago B. Mendonça, chega, nesta quinta-feira, 15 de setembro, aos cinemas brasileiros, depois de passar pelo circuito de festivais. Seus protagonistas são seis sambistas paulistanos, que vivem de empregos modestos (ou subempregos) e de uma paixão verdadeira – a música. Se dependesse deles, dedicar-se-iam por inteiro aos palcos, como integrantes do coletivo Zagaia, estariam juntos, na noite paulistana, ou em excursões, tocando e cantando suas próprias composições, somadas às de Dadinho Velha Guarda e outros bambas.

O Zagaia forma-se com o atabaque de Ninão (Carlos Francisco, o pai de família de “Marte Um”, ator da hora), o cavaco de Jeguedé (Marquinho Dikuã), o surdo e tamborim de Madá (Monalisa Madalena), o violão de Paulo (Renato Martins), a cuíca de Edgalo (Ronaldinho da Cuíca) e o pandeiro de Marçal (Tiganá Macedo). A eles, ocasionalmente, se somam Clara (Lua Reis), a cantora branca e endinheirada, e o tocador de surdo (Val Pires).

A trama, porém, tem os “zagaia” como alma e razão de ser, pois é o sexteto, que – transgredindo as leis de trânsito – se espreme dentro do velho carro de Ninão, para tentar encontrar casas noturnas capazes de servir de vitrine às composições por ele criadas. São movidos pelo prazer de executar seus instrumentos, de compor, de cantar, de estar junto, beber junto, “hidratar o figueiredo”, “molhar a serpentina” com um chope gelado.

A trama é ficcional, mas construída a partir de vivências de muitos dos integrantes do grupo musical. Tanto que o festival no qual “Curtas Jornadas Noite Adentro” fez sua première foi o DOCLisboa, como o nome indica, um evento dedicado ao cinema documentário.

Thiago, que é também roteirista (inclusive parceiro dos primeiros trabalhos de Adirley Queirós), agitador cultural e crítico de cinema, dedica-se a filmes híbridos, ou seja, àqueles que não se importam com fronteiras narrativas. Aliás, ele gosta de subvertê-las.

Augusto Pompeo, que vimos em outros filmes, inclusive em “A Grande Noitada” (Denoy de Oliveira, 1997), interpreta um morador de rua em uma das sequências mais instigantes do filme. Ele está encostado à parede de prédio que abriga uma universidade (privada) e um segurança, negro como ele, vem dizer que não pode continuar ali.

“Por que não?”, indaga o sem-teto, se está “em espaço público”? Além de Pompeo, destaca-se no elenco Carlos Francisco, vindo do coletivo teatral Folias. Ele torna-se, a cada novo filme, estrela do novíssimo cinema brasileiro, com presença firme nos três longas de Thiago, passando pelos mineiros da Filmes de Plástico e por “Arábia”, da dupla Affonso Uchôa e João Dumans, e pelos pernambucanos “Bacurau” e “Rio Doce”. Suas intervenções nestes filmes são notáveis. Em “Curtas Jornadas” não teria por que ser diferente.

Seu personagem, Ninão, é mais velho que seus colegas do grupo Zagaia. Encontra-se em liberdade condicional. Casado com mulher evangélica, Dona Vera (Nani de Oliveira), com um filho de uns sete anos, ele vive de bicos como motorista. Tem um carro velho, que serve de veículo para carregar os colegas e seus instrumentos. Espremidos como sardinha na lata, eles saem em suas “longas jornadas noite adentro” (claro que Thiago presta, com seu título, tributo à famosa peça de Eugene O’Neill).

Os resultados de tais incursões são curtos para o “precariado” das periferias paulistanas dedicado ao samba. Seus trabalhos diários (como seguranças, de faculdade ou de uma espécie de Febem, carregadores de placas, etc.) resultam em mecanismos de obtenção de algum dinheiro. O sonho, o prazer, o ideal, porém, estão na música, no samba, no prazer de tocar e cantar em grupo.

Para realizar sua “ode ao samba”, Thiago contou com a cumplicidade de seus músicos-atores, com a montagem precisa de Cristina Amaral, mas ficou devendo nas imagens (embora haja planos muito bonitos, como o do Bar do Surdo, que ilustra o cartaz do filme), a fotografia deixa a desejar. Todos sabemos que o cineasta não cultiva “le cinéma de qualité”, preferindo mil vezes projetos imperfeitos, desde que pulsantes. Que rejeita filmes arrumadinhos, engomados e metidos a besta. Mas, comparado a seus curtas-metragens, formalmente muitos mais elaborados, “Curtas Jornadas Noite Adentro” parece executado sem a iluminação necessária.

Por sorte, o que falta em beleza plástica, sobra em emoção. Vide a sequência em que Ninão mostra, empolgado, um poema a Dona Vera. E aquela em que Seu Dadinho Velha Guarda canta um novo samba para o filho, o violonista Paulo.

A maior parte da narrativa se passa numa São Paulo distante dos cartões postais. Periférica e de arrabaldes. Mas um sambista seresteiro cantará um samba dolente para a cantora “patricinha” que mora em Higienópolis. E ela reside justo num edifício da Rua Maranhão, criação do grande Artacho Jurado. Thiago Brandimarte Mendonça, filho de intelectuais, ele mesmo um ensaísta de mão cheia (são brilhantes seus textos sobre Carlão Reichenbach e filmes brasileiros contemporâneos) sabe a importância do construtor de origem espanhola, sem diploma, mas que tornou-se uma das forças renovadoras da arquitetura brasileira. Ponto para o filme.

 

Curtas Jornadas Noite Adentro
Brasil, 106 minutos, 2022
Direção: Thiago Brandimarte Mendonça
Elenco: Carlos Francisco, Marquinho Dikuã, Monalisa Madalena, Renato Martins, Tiganá Macedo, Lua Reis, Augusto Pompeo, Nani de Oliveira, Bete Dorgam, Dadinho Velha Guarda, Geovana, Marcelo Cabeça
Fotografia: Victor de Melo
Montagem: Cristina Amaral
Produção: Memória Viva
Distribuição: Livres Filmes

 

FILMOGRAFIA

Longas-metragens:

2022 – “Curtas Jornadas Noite Adentro”
2017 – “Um Filme de Cinema”
2016 – “Jovens Infelizes ou um Homem que Não Grita Não É um Urso que Dança” (vencedor da Mostra Tiradentes)

Curtas-metragens (entre 2008 e 2022, ele realizou):

– “Minami em Close-Up”
– “A Guerra dos Gibis”
– “Piove, il Film di Pio”
– “O Canto da Lona”
– “Entremundo”
– “Procura-se Irenice”
– “O Karaokê de Isadora”
– “Belos Carnavais”

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