Cine Ceará mostra colapso no “Sistema orquestral” e na Venezuela bolivariana de 2017
Por Maria do Rosário Caetano, de Fortaleza
A quarta noite da mostra competitiva ibero-americana do Cine Ceará exibiu o sexto concorrente, um documentário venezuelano — “Los Niños de Las Brisas” (foto), de Marinela Maldonado — e deu início à competição de curtas brasileiros, com “Camacho”, ambientado na Itabira ferrosa de Drummond, “Filhos da Noites”, sobre homoafetivos já entrados nos anos, e “Elusão”, ficção cearense.
Marinela Maldonado, venezuelana na diáspora (primeiro morou na Inglaterra, onde formou-se na Escola Nacional de Cinema e hoje encontra-se radicada nos EUA), escolheu como tema o mais vistoso dos cartões postais da cultura de seu país: “O Sistema”. Ou seja, o Sistema Nacional de Orquestras, complexo musical-educacional-público criado há 45 anos pelo Maestro José Antonio Abreu (1939-2018), para levar a música erudita, de forma difusa e capilarizada, a todo o território venezuelano.
Nos dias atuais “O Sistema”, comandado pela Fesnojiv (Fundação do Estado para o Sistema Nacional de Orquestras Juvenis e Infantis da Venezuela) cuida da manutenção de mais de 125 orquestras (sendo 30 sinfônicas) e coros juvenis, e pela educação de mais de 350 mil estudantes, em 180 núcleos pedagógicos. A figura mais notória do projeto venezuelano atual é o maestro Gustavo Dudamel.
Já no título, Marinela define o recorte de seu longa documental, ela que veio do cinema ficcional e de animação: “Os Meninos de Las Brisas”. São crianças que ingressam n’O Sistema oriundas do bairro de Las Brisas, em Valência, cidade situada a duas horas de Caracas. Durante dez anos, ela acompanhou os adolescentes Dissandra, Eclixon e Wuilly, três jovens de famílias de baixa renda, que, por seus dons musicais, foram agregados ao Sistema de ensino musical elaborado pelo Maestro Abreu.
O filme acompanha, também, de forma complementar, a família dos três jovens violinistas, que têm seus sonhos interrompidos quando são reprovados em testes que poderiam colocá-los em orquestras profissionais. E tais testes se dão no momento em que a Venezuela vive uma de suas maiores crises político-econômicas. Após a morte de Hugo Chávez (1954-2013), que expandira “O Sistema” e fizera dele vistosa vitrine do Bolivarianismo, vieram duras contestações ao Governo Maduro. Contestações amplificadas pela queda do preço do barril de petróleo (que caíra de 100 dólares para pouco mais de 40). O país sul-americano viveu, então, verdadeiro caos econômico, com falta de produtos alimentares e farmacêuticos. As manifestações de rua se multiplicaram e imenso êxodo para outros países se fez notar.
A câmara de Marinela Maldonado e sua equipe registra tudo. Opositora ferrenha do Chavismo (ou Bolivarianismo), a cineasta assume, com a própria voz, a costura narrativa dos registros documentais do cotidiano dos três adolescentes (sem rumo desde a reprovação nos testes de Caracas), de suas famílias e do povo venezuelano, postado em imensas filas em busca de botijão de gás, alimentos e medicamentos.
Eclixon, que tem duas mães, uma jovem e surda, e uma de meia-idade, que amorosamente adotou a ambos, vai prestar serviço militar. Troca “o violino pelo fuzil”, como ele mesmo diz. Dissandra, que mora em trecho de Las Brisas marcado pela violência, forma quarteto de cordas com grupo de amigas para tocar em um restaurante. Gasta parte substantiva do pouco que ganha pagando táxi que a leva de volta ao lar, tarde da noite.
Wuilly, que é homossexual (embora o filme não deixe isso claro!), abraça a militância política anti-Bolivariana e faz do violino seu instrumento de protesto. Acabará preso por três semanas. Depois, migrará para os EUA. Está para conseguir seu visto de permanência definitivo (o green card).
Dissandra vive em situação difícil no Peru e só agora, cinco anos depois da crise, está conseguindo normalizar seu passaporte. Ainda não se empregou num corpo orquestral. Eclixon, que, após dar baixa no serviço militar, montou uma padaria, acabou desistindo do negócio, por sofrer achaques de máfias territoriais, e aceitou um pequeno pedaço de terra no interior, onde planta milho e outros cereais.
Em conversa com a imprensa, Marinela Maldonado respondeu a cinco perguntas da Revista de CINEMA sobre a frustração de milhares de jovens que não conseguem ser inseridos nos corpos orquestrais e a situação da Venezuela que ela filmou ao longo de dez anos (2010-2019). E, também, sobre o impacto da crise econômico-política em “O Sistema”, sua opção estilística pela narração em primeira pessoa e o quadro atual do país, que saiu das manchetes da mídia internacional e, depois do período de sufoco econômico, vê o preço do barril de petróleo se reaproximar dos 100 dólares.
Quantos adolescentes “O Sistema” mobiliza em suas bases territoriais espalhadas pela Venezuela e quantos são realmente incorporados aos corpos orquestrais profissionais? Afinal, a música sinfônica é de alcance restrito no mundo inteiro.
Não temos dados exatos, pois o Governo usa “O Sistema” de maneira populista, como propaganda. O Governo Maduro costuma falar em um milhão de crianças atendidas. Diz, em arroubos populistas, que vai chegar a dois milhões. Na verdade, a Venezuela conta com três grandes Orquestras — a Simon Bolivar, regida por Gustavo Dudamel, a Tereza Careño e a de Caracas. A de Dudamel pode absorver uma média de 160 músicos. Em 2018, muitos deles tinham partido para o exterior. A Orquestra de Jalisco, no México, por exemplo, chegou a ter perto de 80% de seus integrantes compostos com músicos venezuelanos. Na verdade, as três maiores formações orquestrais venezuelanas podem oferecer até 600 postos de trabalho. Claro que o Maestro José Antonio Abreu, que criou “O Sistema” há 45 anos — embora Hugo Chávez tentasse fazer crer que seu Governo fôra o criador do projeto — não foi concebido para empregar 200 mil ou 300 mil músicos em orquestras. Na verdade, o Maestro quis dar formação musical a crianças e jovens, de forma que eles pudessem exercer outros ofícios, junto com a música.
Se seus três personagens (Dissandra, Eclixon e Wuills) tivessem sido aprovados nos testes realizados em Caracas, o destino deles seria diferente ou a crise político-econômica da Venezuela foi devastadora para “O Sistema” como um todo?
A crise foi devastadora. A Orquestra de Carabobo, que tem presença significativa em nosso filme, viveu em 2017/2018, auge da crise, situação terrível. Quase 70% de seus músicos não podiam se dedicar a ela. Nem seus três dirigentes eram encontrados em sua sede. Foi algo aterrador. Queríamos filmar os diretores e não os encontrávamos. Nem eles, nem os músicos.
Por que o empresariado venezuelano não ajudou financeiramente “O Sistema” no momento mais agudo da crise?
O Sistema Nacional de Orquestras é mantido por uma fundação ligada ao Estado e recebe significativo apoio internacional. Principalmente da Unesco (braço da ONU para Educação e Cultura). No auge da crise, o empresariado venezuelano estava golpeado, passava por dificuldades. Muitas empresas haviam sido estatizadas. O Governo até criara uma empresa, enquadrada em projeto agrário, que comprava sementes e acabou indo à bancarrota. Daí veio a crise alimentar. Era um quadro muito complexo.
Por que você recorreu à narrativa em primeira pessoa, de caráter didático e retórico? Não acha que despotencializou o poder da imagem e conduziu o olhar e a percepção do espectador, impedindo-o de chegar às próprias conclusões?
Optei pela narração em primeira pessoa, porque o filme faz parte de uma história que é também minha. Não considero minha narração didática. Eu tinha necessidade de explicar certas coisas: o que era “O Sistema”, o que fazia um governo que falava em justiça social, mas praticava o oposto. Caso contrário o mundo não entenderia o filme.
Com o barril de petróleo a 93 dólares (distante dos 40 dólares dos anos de crise aguda) e com a Venezuela fora das manchetes da mídia internacional, como se encontra, neste momento, “O Sistema”?
Como estou fora do país, não tenho acompanhado muito de perto. Não sei muito bem o que se passa com os músicos. Houve a pandemia e todas as escolas de educação musical foram fechadas. Estão voltando a funcionar. O governo continua usando, de maneira populista, “O Sistema”. Promovendo concertos de “12 Mil Niños” para chamar atenção. Mas não disponho de dados atualizados.