Documentário sobre pianistas argentinas e “Big Bang” mineiro triunfam no Cine Ceará

Por Maria do Rosário Caetano, de Fortaleza

“Inseparáveis”, um documentário argentino sobre duas pianistas — gêmeas e nonagenárias, que conheceram a fama nos anos 1950 — e “Big Bang”, curta mineiro já reconhecido com o Leopardo de Ouro em Locarno, foram os grandes vencedores da trigésima-segunda edição do Cine Ceará, o Festival Ibero-Americano de Cinema de Fortaleza.

O filme argentino, realizado pela esfuziante María Álvarez, autora de trilogia dedicada à terceira idade (iniciada com “Las Cinephilas” e “El Tiempo Perdido”) ganhou, ainda o prêmio de melhor montagem (da própria Álvarez) e o Prêmio da Crítica (Abraccine).

“Big Bang”, impactante ficção dirigida pelo paulista-mineiro-potiguar Carlos Segundo, que neste momento batalha vaga na ‘short list’ do Oscar com seu curta anterior (“Sideral”), relata a surpreendente história de Chico, um ressentido eletricista (Giovanni Venturini), que conserta fogões em casas e fábricas. Por sua baixa estatura, ele cabe dentro dos equipamentos que conserta.

O júri de longa-metragem, composto com a documentarista Reneé Castelo Branco, o crítico Bruno Carmelo e o roteirista espanhol Pablo Arellano, não adotou postura distributivista, o que é ótimo. Tanto que deixou três dos oito concorrentes — o brasileiro “O Acidente”, de Bruno Carboni, o equatoriano “Lo Invisible”, de Javier Andrade, ambos ficcionais, e documentário venezuelano “Los Niños de Las Brisas”, sem troféus.

Em compensação, o júri desperdiçou quatro Mucuripes com uma bobagem vinda da Espanha. “Pietá” (A Piedade), de Eduardo Casanova, nem devia constar da seleção. Trata-se de mera provocação juvenil que mistura influências do primeiro Almodóvar (aquele dos tempo da “Movida”) com as caricatas sátiras políticas de Sacha Baron Cohen. Mas tudo banhado em fashionismo publicitário, temperado, vez ou outra, por procedimentos “trash”: troca de vômito de longa distância, uma citação “dessacralizadora” (heim?) de clássicos da pintura, etc.

O uso da política — a dinastia norte-coreana de Kim Il-sung e Kim Jong-il —, que nasce em balé encenado pela invejosa protagonista (a “madre” interpretada por Angela Molina) e chega a um assassinato de crianças com morangos envenenados e vai acabar na Coreia do Sul e em crise de anonimato, é de primarismo aterrador.

Comparar esta “Pietá” espanhola aos primeiros filmes de Almodóvar é ofender o manchego. “Pepi, Luci, Bom”, “Maus Hábitos”, “Labirintos de Paixões”, “Que He Hecho Yo…?” eram obras transgressoras, de baixo custo, feitas coletivamente para desafogar a opressão acumulada em décadas de uma Espanha ditatorial falangista-castradora. “A Piedade” é uma produção luxuosa, toda em cor-de-rosa, fashion até não mais poder, patrocinada até pelo Programa Ibermedia (entre outras siglas institucionais). Ganhou quatro (!!!!) troféus Mucuripe. Pasmem: até o de roteiro!!!!

E — valha-me Diós! — como nas festas do Oscar, seduziu o júri por suas “qualidades técnicas” (direção de arte, som e trilha sonora). Mas obras trash-transgressoras, aquelas que subvertem ‘le cinéma de qualité’ não se impunham por avacalhar com a qualidade técnica? Vai entender!!!!

Madre por madre, fiquemos com as almodovarianas. As dos tempos da Movida, a sublime de “Tudo sobre minha Mãe”. E as “Madres Paralelas”. Essa Pietá cor-de-rosa- fashion, laureada com quatro troféus Mucuripe, é de lascar o cano. Uma ponto baixíssimo na carreira de Angela Molina, que no início de sua carreira foi musa do bruxo Luís Buñuel.

O filme cubano “Vicenta D.”, sobre cartomante-sensitiva afro-habanera, rendeu a seu realizador, Carlos Lechuga, e à sua protagonista, Linnett Hernández Valdés, os troféus de melhor direção e atriz. O filme traz visão complexa e matizada da ‘santeria’, religião praticada por maioria da população cubana, que, como nossa umbanda, mescla-se a rituais do catolicismo. O cineasta inspirou-se na vida de sua própria  avó.

O júri, que viu tantas qualidades onde elas inexistiam (caso da “Pietá” espanhola), não enxergaram os méritos do brasileiro “A Filha do Palhaço”, de Pedro Diógenes. Se não fosse o sensacional trabalho do ator Démick Lopes, o intérprete de Renato — humorista homoafetivo que ganha a vida interpretando a transformista Silvanelly em casas noturnas —, o oitavo longa do realizador cearense teria passado em branco. No palco do Cine São Luiz, Démic, que é conhecido como “o Sean Penn do Ceará” deu show de elegância e alegria.

— Aqui no palco histórico desse cinema, onde assisti aos primeiros filmes na minha infância (ele tem 44 anos), recebo este troféu com imensa alegria e quero dedicá-lo a Ednardo, que aqui me antecedeu, a toda a equipa do filme, em especial a minha mulher, a atriz Sâmia de Lavor, que ajudou a preparar a mim e a todo o elenco, a nosso diretor e amigo Pedro Diógenes, e a meus pais, pois se não fossem eles, eu não estaria aqui. E quero cantar uma canção de Márcio Greyck, tantas vezes cantada nos ensaios, e que foi muito importante para entrarmos no clima buscado pelo filme.

E, a capela, o ator cantou, com emoção, versos de imensa força romântica, que anunciavam a necessidade da chegada de pessoa amada e importante, muito aguardada. Sem retórica, apenas com um gesto (a letra L) e sorriso largo, ele encerrou seu agradecimento. Sob aplausos calorosos.

“Green Grass”, produção chileno-japonesa, dirigida por Ignácio Ruiz e protagonizada pelo nipônico Masataka Ishizaki, ambos presentes em Fortaleza, recebeu um troféu Mucuripe, o de melhor fotografia (para Victor Silva).

No terreno do curta brasileiro, além do prêmio principal atribuído ao mineiro “Big Bang” (e referendado pelo júri do Canal Brasil), outro filme se destacou — o alagoano “Infantaria”, de Laís Santos Araújo. Do júri oficial, o curta nordestino recebeu o prêmio de melhor direção. E foi escolhido como melhor curta pela Crítica (Abraccine) e pelo jornal O Povo (Troféu Samburá).

O júri oficial escolheu o roteiro de “Último Domingo”, que Renan Barbosa Brandão recriou do romance “O Evangelho Segundo Jesus Cristo”, de José Saramago, para receber o Troféu Mucuripe.

A Mostra Olhar do Ceará atribuiu dois prêmios: o de melhor longa-metragem para “Escuridão na Terra da Luz”, de Popy Ribeiro, e o de melhor curta para “Ópera Sem Ingresso”, de Andrea Pires.

O longa de Ribeiro revela, em 94 minutos, pontos cartográficos e históricos da terra do sol (Fortaleza) resgatados do esquecimento pela memória de perseguidos políticos como Fausto Nilo, Ruth Cavalcanti, Helena Serra Azul, Rita Sipahi, Oswaldo Barroso, José Genoíno Neto, Válter Pinheiro, Manoel Fonseca, José Machado, entre outros. Estes testemunhos são pontuados por intervenções do arquiteto Romeu Duarte e do historiador Régis Lopes, que ajudam “a desvelar significâncias urbanísticas, históricas e políticas preservadas nestas edificações”.

“Ópera sem Ingresso” vale-se de uma casa aberta para entoar “ópera cotidiana na qual a poesia se faz junto ao relógio, que não para de girar”. A música cearense guia ”uma narrativa diversa e histórica, recortando arquivos e colando memórias às partituras colhidas”. A ópera se passa num condomínio que, em breve, será demolido para dar lugar a imenso edifício, em forma de torre. A diretora reuniu os músicos para que eles se fizessem depositários da memória de sua gente.

Confira os vencedores:

Longa-metragem ibero-americano

. “Las Cercanas” (“Inseparáveis”, Argentina) – melhor filme, Prêmio da Critica (Abraccine), montagem (María Álvarez)
. “Vicenta D.” (Cuba) – melhor direção (Carlos Lechuga), atriz (Linnett Hernandez Valdés)
. “A Filha do Palhaço” (Brasil) – melhor ator (Démick Lopes)
. “A Piedade” (Espanha) – roteiro (Eduardo Casanova), trilha sonora (Pedro Onetto), direção de arte (Melanie Atón), som (Mar González, Mercedes Tennina, Sebastián Gonzales)
. “Green Grass” (Chile-Japão) – melhor fotografia (Victor Silva)

Curta-metragem brasileiro

. “Big Bang”, de Carlos Segundo (MG): melhor filme, Prêmio Canal Brasil
. “Infantaria” (Alagoas) – melhor direção (Laís Santos Araújo), Prêmio da Crítica (Abraccine), Troféu Samburá do jornal O Povo
. “Último Domingo” (RJ) – melhor roteiro (Renan Barbosa Brandão)
. “Camacho”, de Breno Alvarenga (MG) – Troféu Samburá do jornal O Povo (melhor direção)

Mostra Olhar do Ceará

. “Escuridão na Terra da Luz”, de Popy Ribeiro – melhor longa-metragem
. “Ópera sem Ingresso”, de Andreia Pires – melhor curta-metragem, Prêmio Unifor

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