Mestre nonagenário do cinema japonês presta tributo ao “Deus do Cinema”
Por Maria do Rosário Caetano
Uma das atrações japonesas da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo respira cinema por todos os poros. Do título (“O Deus do Cinema”) ao tema. Da trajetória de seu diretor, Yôji Yamada, de 91 anos, ao estúdio que o produziu, o agora centenário Shochiku. Das citações à era dourada da produção japonesa (de Mizoguchi a Ozu), somada à “Rosa Púrpura do Cairo”, de Woody Allen, e aos filmes de Frank Capra. E, claro, ao “Cinema Paradiso”, de Giuseppe Tornatore.
Yamada não figura no panteão do cinema japonês ao lado dos geniais Mizoguchi, Ozu e Kurosawa, nem de criadores da grandeza de Ishikawa, Kobayashi, Naruse, Shindo, Oshima, Imamura ou Koreeda. Muitos preferem situar o realizador de “O Deus do Cinema” na condição de um ótimo artesão.
O que não se pode negar é que Yôji Yamada construiu trajetória única no cinema. Afinal, numa indústria hierarquizada como a japonesa, ele dirigiu 92 filmes (sim, o que a Mostra apresenta esse ano é sua nonagésima-segunda realização). Longevo – completou 91 anos em 23 de setembro último, em plena atividade –, dirigiu a série cinematográfica “É Triste Ser Homem”, a mais duradoura da história do celulóide (com 48 filmes feitos entre 1969 e 1996, só interrompida pela morte do ator-protagonista, Kyoshi Atsumi, o mascate Tora-san, que perambulava pelo Japão e era amado pelo grande público).
O nome de Yamada costuma se fazer acompanhar pelo aposto “o cineasta da simplicidade”. Ele nunca foi um inovador, sempre pensou no público, dialogou com o melodrama e visitou os mais diversos gêneros. Sua Trilogia Samurai o levou a festivais importantes. E ele foi finalista do Oscar em 2004, com o primeiro deles – “O Samurai do Entardecer”. A trilogia completou-se com “A Espada do Samurai” (2005) e “Amor e Honra do Samurai” (2006).
Em 1998, Yamada recebeu grande homenagem no Festival de Havana e teve muitos de seus filmes exibidos no país caribenho. Em São Paulo, boa parte de sua obra costuma frequentar ciclos realizados pelo Centro Cultural São Paulo em parceria com a Fundação Japão. E a própria Mostra SP já exibiu cinco de seus longas – “Sobre Seu Irmão” (2010), “Histórias de Kyoto” (2010), “Uma Família em Tóquio” (2013), releitura de “Era Uma Vez em Tóquio” (1953), uma das obras-primas de Yasujiro Ozu, e “A Pequena Casa” (2014).
“O Deus do Cinema” é, portanto, o sexto longa do prolífico cineasta a chegar à programação da Mostra. Vale lembrar que Yôji Yamada iniciou sua carreira no (agora centenário) Estúdio Shochiku, como assistente de vários diretores, um deles, Yoshitaro Nomura, diretor de 82 filmes, sendo o mais famoso deles, o thriller “Castelo de Areia” (1974).
A trajetória do Estúdio Shochiku é uma das mais ricas da história do cinema japonês. Além de ter produzido o primeiro filme colorido do país oriental e de abrigar dezenas de criadores desde a era muda – nunca é demais lembrar que o Japão já contou com uma das cinematografias mais fortes do mundo – o Shochiku foi a casa de Mizoguchi, Ozu, Naruse, Kinoshita e, claro, de Yamada, até hoje vinculado ao estúdio. Akira Kurosowa estabeleceu, em alguns de seus filmes, parceria com a famosa produtora e distribuidora que nasceu como empresa de teatro kabuki e, poucos anos depois, passou a dedicar-se também ao cinema. O Shochiku foi parceiro, também, de realizadores independentes como os Takashi Miike e Kitano, Kobayashi e até o taiwanês Hou Hsiao-Hsien. E hoje tem no ‘anime’ uma de suas vertentes comerciais mais exploradas.
“O Deus do Cinema” é um filme celebratório. Celebra o cinema, o centenário do Estúdio Shochiku e os melodramas que lhe garantiram fama e dinheiro. O longa-metragem (125 minutos) baseia-se em best-seller de Maha Harada, escritora de 60 anos, que inspirou-se em história familiar, para narrar o amor de dois amigos pela mesma mulher e pelo cinema. Um deles, Go Maruyama (Kenji Sawada), quer ser roteirista e cineasta. O outro (Ken Schimura, na maturidade, e Yojiro Noda, na juventude), mais reflexivo, dedica-se à crítica cinematográfica e acaba tornando-se dono e programador de uma bela (e enorme) sala. Quando o filme começa, Go é um ancião quase octogenário, que passa o tempo bebendo e acumulando dívidas de jogo. Sem saber o que fazer, a esposa e a filha ameaçam o estroina. Confiscam sua aposentadoria e o colocam para fora de casa. Ele vai buscar refúgio no cinema do amigo. Na sala, já decadente, pois o público está desaparecendo, os dois amigos assistem a antigos filmes em preto-e-branco (um deles, “Pétalas ao Vento”, de Demizu), do qual Go foi assistente de direção em sua juventude. Nas cenas do passado, o protagonista é interpretado por Masaki Suda.
Os flashbacks, sobre a produção de cinema e a era de ouro do celuloide japonês, também são inspirados na experiência do próprio Yamada, pois na década de 1950 ele trabalhou como assistente de direção de vários realizadores. Sem nunca abandonar o melodrama, razão de ser do filme, a narrativa prossegue com Go Maruyama escrevendo um roteiro – justo “O Deus do Cinema” – para relembrar o passado. E, nos momentos mais interessante do filme, o storyboard das sequências imaginadas por ele é desenhado na tela, sobre as imagens. E é neste momento que Yamada homenageia “A Rosa Púrpura do Cairo”.
O filme homenageia outras figuras reais, em especial japonesas. Caso de um cineasta cuja aparência remete ao grande mestre Yasujiro Ozu (1903-1963), interpretado pelo ilustrador e ator Lily Franky.
Os cinéfilos não devem, porém, esperar um filme que revisite a história da Era Dourada do Cinema Japonês, com generosas citações de trechos de filmes de Mizoguchi, Ozu ou Naruse. Como sempre fez, Yamada realizou um melodrama nostálgico (dois homens que amaram a mesma mulher, um ex-cineasta viciado em corridas de cavalo, alcoólatra e endividado) e de final feliz para reafirmar seu amor pelo cinema. Afinal, há mais de seis décadas ele dedica-se a esse ofício. Ao contrário de cineastas brasileiros, mesmo os mais longevos (como Nelson Pereira dos Santos, que se aproximou dos 90 anos), dificilmente passam dos 20 filmes. Em 91 anos de vida, o incansável Yôji assinou 92 projetos, o que demonstra que houve ano em que ele fez em média dois ou três filmes. Até quatro. No Japão, o exercício da profissão para quem busca diálogo com o público é constante. Que o diga o “cineasta da simplicidade”.
O Deus do Cinema
Japão, 125 min., 2011
Direção: Yôji Yamada
Roteiro: Yûzô Asahara, Maha Harada e Yôji Yamada
Elenco: Kenji Sawada, Masaki Suda, Ken Schimura, Mei Nagano, Nobuko Miyamoto, Keiko Kitagawa, Yojiro Noda, Lily Franky
Trilha Sonora: Tarô Iwashiro
Produção: Alejandro Landes e Fernando Epstein