“A Invenção do Outro” sobre contato com indígenas isolados arrebata o público do Festival de Brasília
Por Maria do Rosário Caetano, de Brasília
Hoje, 20 de novembro, é Dia da Consciência Negra, mas na quinquagésima-quinta edição do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro pode transformar-se num Dia do Índio. Ou seja, em dia de premiar o longa documental “A Invenção do Outro” (foto), de Bruno Jorge, sobre povo indígena isolado na Amazônia, os Koburo, procurado por missão da Funai. Uma expedição de 30 pessoas (brancos auxiliados por alguns Koburo, já contatados), comandada pelo indigenista Bruno Pereira. Aquele que, em cinco de junho, foi assassinado no Vale do Javari, junto com o jornalista britânico, radicado no Brasil, Dom Phillips.
A sessão do filme, assistida por ótimo público, contou com a presença discreta de Beatriz Mattos, viúva do indigenista assassinado, e de uma filha dele (Maria). No palco, apenas o diretor Bruno Jorge e o autor da trilha sonora Pallazo. Ambos com falas contidas, sem slogans ou palavras de ordem.
“A Invenção do Outro”, com suas 2h24’, chega para fazer história. Afinal, é diferente de todos os documentários sobre povos indígenas a que já assistimos. Bruno Jorge, de 42 anos (mesma idade do amigo e xará assassinado, Bruno Pereira) fotografou e codirigiu (com Mariana Oliva e Renata Terra) o fascinante “Piripkura” (2018), premiado nos festivais de Amsterdã e do Rio. Dessa vez, roteirizou, dirigiu, fotografou e montou sozinho a saga dos Koburo. A filmagem durou 32 dias. A montagem, três anos e meio.
Tudo em “A Invenção do Outro” (que título poderoso!) é impressionante. Em 2019, Bruno Pereira convidou o xará para documentar a maior expedição empreendida pela Funai, em tempos recentes, com a missão de encontrar e estabelecer o primeiro contato com grupo de indígenas isolados da etnia Koburo. Para dar conta da difícil (e questionada) tarefa, Bruno Pereira e equipe, composta de médico, enfermeira e funcionários da Funai, contou com o auxilio de alguns Koburo, anteriormente contatados. Era necessário chegar aos que seguiam solitários na floresta.
Vivendo sob risco de extinção por desentendimentos com a etnia Matís, entre outros graves problemas, os Koburo só seriam contatados no momento em que todos os integrante da missão (incluindo os indígenas) se mostrassem sãos. Ou seja, sem o vírus da gripe, doença facilmente debelada por contaminados brancos, mas fatal para um indígena, que pode morrer no prazo de três dias (se contaminado).
Foi para documentar essa viagem épica e complexa, perigosa e incerta, que Bruno Jorge aceitou o convite de Bruno Pereira. E, a seu modo, repetir filmagens realizadas, em outros momentos históricos, por cinegrafistas como o Major Reis (parceiro de Rondon) e Heinz Forthman (de Darcy Ribeiro). Durante quase cinco semanas, o cineasta e fotógrafo produziu 60 horas de material.
E o que vemos impresso na tela?
Vemos os cuidados do médico da expedição com a saúde, em especial dos Koburo contatados, para que não levassem a doença a seus parentes.
Vemos as preocupações de Bruno Pereira com a segurança de todos, pois a floresta é um ambiente de muitos riscos e perigos.
E vemos, em especial, imagens e diálogos indígenas que nunca vimos ou ouvimos antes. Os Koburo, aqueles contatados e agregados à Missão (em especial Xuxu, um dos protagonistas do filme), conversam com os brancos ou entre si sobre temas inesperados. Falam de sexo. Um deles conta que “se ficar 10 dias sem trepar”, fica descontrolado. Não há presença feminina marcante na expedição (apenas uma enfermeira branca). Bruno Pereira pede que todos a respeitem.
Em momento inquietante, um indígena diz aos brancos que ele e sua gente querem arma de fogo e motor para barco. Que só ouvem promessas. Que estão cansados de comer apenas peixe, dias a fio. “Povo da Funai só come peixe”, protesta. Os Koburo querem comer carne vinda da caça. E dezenas de catetos (um tipo de macaco) serão caçados e assados para alimentar o grupo.
Ao definir cuidados de higiene no precário acampamento, Bruno Pereira pede que todos façam suas necessidades fisiológicas fora da área comum. Que urinem em árvores mais afastadas. E que defequem mais longe ainda (mas com cuidado para não correr os riscos onipresentes na floresta).
A imagem idealizada pelo cinema — indígenas com corpos banhados constantemente por águas de rios caudalosos e vivendo em total harmonia com a natureza — não tem lugar em “A Invenção do Outro”.
O filme, que pode conquistar importantes prêmios na noite de hoje — até o de melhor longa brasileiro, caso derrote o favorito “Mato Seco em Chamas”, de Adirley Queirós e Joana Pimenta — chegou mesmo para fazer história.
Quem pensou que Bruno Jorge editaria as 60 horas de imagens e sons colhidos na floresta para construir um libelo contra o brutal assassinato de Bruno Pereira e Dom Phillips enganou-se.
O Bruno cineasta, que já planejava outro filme com o Bruno indigenista (sobre articulação com a etnia Marubo do Alto Curuçá) seguiu fielmente seu projeto original: registrar, fielmente, o contato da missão de 2019 com os Koburo ainda isolados no Vale do Javari amazônico.
Sobre a morte do amigo de apenas 42 anos (Bruno Jorge desfrutava também da amizade de Dom Phillips), “A Invenção do Outro” traz apenas uma cartela informativa. O diretor-fotógrafo-montador (e corresponsável pelo som) quis registrar dias e noites da expedição, deslocamentos a pé ou em barcos, montagem de acampamento e, muitas vezes, a busca de peixes e animais da floresta que servissem de alimento ao grupo. E legar aos brasileiros (e ao mundo) um retrato não heroicizado de Bruno Pereira vivo e realizando o que mais gostava — a convivência com indígenas. Convivência complexa e cheia de arestas.
Ao final da sessão festivaleira, os aplausos se fizeram ouvir. Espectadores, ainda tontos pelo que acabavam de ver, trocavam opiniões. O sociólogo amazonense-candango, Carlos Michiles, irmão de Aurelio “O Cineasta da Selva” Michiles, externava suas impressões — “que filme, que experiência!”. E olhe que ele conhece bem a Amazônia e centenas de filmes sobre a questão indígena. Incluindo dezenas deles, realizados pelo irmão, cujo último filme (“Segredos do Putumayo”) voltou à Amazônia peruano-colombiana-brasileira para narrar a saga de indígenas explorados como mão-de-obra escrava pelo capital seringueiro.
Os dois curtas-metragens que encerraram a competição do Festival de Brasília número 55 também voltaram seu olhar aos indígenas. A gaúcha Paola Mallmann, em parceria com o Coletivo Mnya Guarani, dirigiu a ficção (de base documental) “Um Tempo para Mim”. Suas protagonistas são mulheres indígenas da região missioneira do Rio Grande do Sul. No elenco do filme estão a cineasta Patrícia Ferreira, sua mãe na vida real e uma sobrinha que estuda Cinema em universidade na região argentina de Misiones. Patrícia e o companheiro Ariel Ortega (de “Bicicletas de Ñhanderu”) são referência na produção audiovisual gaúcha e brasileira.
Já o paulista Rogerio Borges, do Coletivo Kino Olho, de Rio Claro, interior de São Paulo, encontrou espaço para falar da luta indígena numa fresta do curta-metragem “Lugar de Ladson”. Este filme, que vem de município interiorano, afastado dos grandes centros produtores, tem no adolescente Ladson Vinicius Rocha Pereira seu protagonista.
O jovem rioclarense, tolhido em seus passos por processo de cegueira em estágio muito avançado, vive com a mãe e três irmãos numa casa modesta. Necessita de materiais didáticos especiais, mas a Secretaria de Educação negligencia suas tarefas. A mãe reivindica os direitos do filho. Juntos assistem na TV (Ladson ouve) substantiva reportagem sobre a levante indígena pela posse de seus territórios. O rapaz, como todo adolescente, está com os hormônios em polvorosa. E tenta, pelo celular, marcar um encontro amoroso. O filme conta com formidável trabalho fotográfico (de Yuji Kodato, sobrinho do craque Lúcio Kodato). Um trabalho imagético dos mais elaborados e instigantes.
O gaúcho “Um Tempo para Mim” é um filme feminino em todos os sentidos. Sua realizadora escolheu quatro mulheres indígenas para tratar de tema que diz respeito a elas: a primeira menstruação. A pré-adolescente Florência (Juliana Timóteo) sente os incômodos da chegada do primeiro ciclo menstrual. A avó (Elza Chamorro) prepara para a neta um remédio de ervas da mata (puã) e lembra a tradição Guarani, que liga a menstruação à influência da lua sobre o corpo feminino.
A jovem conversa com outras mulheres indígenas e com uma mãe que amamenta o filho (Patrícia Ferreira). Depois da troca de experiências, resolve recolher-se, seguindo os preceitos da tradição Mbya Guarani. Ocorre, então, um eclipse da Lua.
O filme, falado em língua Guarani, é delicado e conta com sútil montagem de Tyrell Spencer, vencedor do Festival É Tudo Verdade 2018, com o longa-metragem “Cidades Fantasmas”.
O júri — composto com as cineastas Anna Muylaert (“Que Horas Ela Volta?”) e Alice Lanari (“América Armada”), com a atriz Ana Flávia Cavalcanti (“Rã”, que protagonizou e codirigiu com Julia Zakia), somadas ao crítico Juliano Gomes e ao diretor Sergio Carvalho, vencedor de Gramado com “Noites Alienígenas” — deverá, por seu perfil, tomar atitudes ousadas.
O prêmio de melhor interpretação feminina, num festival dominado pelo documentário — “Rumo”, sobre Cotas para afro-brasileiros na UnB, “Mandado” sobre arbítrio judicial-militar, “A Invenção do Outro” e até o híbrido “Mato Seco em Chamas”, ficção com sólida base documental — deve ser atribuído às três protagonistas da incendiária narrativa de Adirley Queirós e Joana Pimenta. As gasolineiras da Kebrada (as ex-presidiárias Joana Darc, Léa Alves e Andréia Vieira) são força vital na distopia filmada no assentamento Sol Nascente, na Ceilândia.
Mônica Maria, a Jimena que protagoniza “Canção ao Longe”, de Clarissa Campolina, também está no páreo. Mesmo caso de Rita Carelli, atriz, escritora e diretora do projeto Vídeo nas Aldeias.
As opções no campo da atuação masculina são rarefeitas. Nesse item, o júri do festival candango deve ousar e surpreender o público que estará neste domingo, no Cine Brasília, para assistir à entrega dos troféus Candango (e também do Prêmio Assembleia Legislativa do DF aos vencedores da Mostra Brasília, o Candangão) e ao longa “Diálogo com Ruth de Souza”, de Juliana Vicente, e ao curta “O Nosso Pai”, da Anna Muylaert.
A categoria que mais opções oferece ao júri é a de direção de fotografia. São notáveis o trabalho de Bruno Jorge (“A Invenção do Outro”), de Joana Pimenta (“Mato Seco em Chamas”) e de Ivo Lopes Araújo (“Canção ao Longe”). Na montagem, também, há trabalhos que impressionam, como o do polivalente Bruno Jorge (o filme dos Koburo), Cristina Amaral (“Mato Seco”) e de Luiz Pretti (no ficcional “Canção ao Longe”).