Festival tem noite black com longa sobre cotas de acesso à UnB e curtas afro-brasileiros
Por Maria do Rosário Caetano, de Brasília
O longa-metragem “Rumo”, de Bruno Victor e Marcus Azevedo, encerrou, sob aplausos calorosos, a terceira noite da mostra competitiva do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro. Afinal, na sessão mais black da quinquagésima-quinta edição do evento, o público já havia assistido a dois curtas — o paraibano “Calunga Maior”, de Thiago Costa, e o pernambucano “Sethico”, de Wagner Montenegro, ambos dirigidos por realizadores negros e com temática afro-brasileira.
Os fortes aplausos a “Rumo” eram esperados. Afinal, os jovens Bruno Victor e Marcus Azevedo realizaram um documentário (com inserção ficcional) de tema incandescente (as cotas para alunos negros na UnB), com reduzido orçamento, 100% candango e sólida equipe de colaboradores (35 deles subiram ao palco). O coletivo ajudou a fazer o docficção, num primeiro momento, na base da ‘brodagem’ (com pontapé inicial de R$8 mil reais, levantados em vaquinha camarada). Depois, com apoio do FAC-DF (Fundo de Apoio à Cultura), conseguiram finalizar a obra e remunerar seus colaboradores.
“Rumo”, nome sintético e aberto, soma três linhas narrativas. Há uma trama ficcional (mãe e filho negros, que sonham entrar na UnB – Universidade de Brasilia), a história da implantação das cotas nesta instituição federal (registrada com valioso material de arquivo) e o reencontro com nomes fundamentais nesta luta de três anos travada pelos integrante do coletivo EnegreSer.
Vinte anos depois, Nelson Inocêncio, Lia Maria, Renata Monteiro Lima, Ana Flávia Magalhães e Rafael Santos (ligados direta ou indiretamente ao EnegreSer) dão seus testemunhos aos dois diretores de “Rumo”. E relembram, com documentação audiovisual milagrosamente salva, a luta travada de 2001 a 2004, pela implantação de cotas capazes de garantir a entrada de afro-brasileiros nos diversos cursos da UnB.
A universidade criada por Anísio Teixeira e Darcy Ribeiro, que está comemorando 60 anos, foi pioneira (entre as federais) na implantação do sistema de cotas. Antes que o Conselho Universitário aprovasse a criação de tal mecanismo, três anos (2001, 2002 e 2003) foram consumidos em calorosas discussões entre os que eram a favor de tal direito e os que se posicionavam contra.
O material de arquivo motivou os diretores a buscar testemunhos, no tempo presente, dos principais participantes daquela luta histórica. O professor Nelson Inocêncio e a polivalente e viajada Lia Maria são responsáveis pelos melhores momentos da narrativa. Bruno e Marcus conseguiram somar relatos de imensa riqueza, enquadrados com elaborada iluminação, o que deixa o filme longe do formato “cabeças falantes”. Além de Nelson e Lia, os “entrevistados” mais carismáticos e envolventes, há outros testemunhos, nenhum banal ou “para constar”.
O roteiro, que foi reescrito depois do material colhido, soube preservar falas e “personagens” com presteza cirúrgica. Sem a cansativa obrigação de dar voz a todos os que batalharam pelas cotas na UnB, mas transformando os que foram ouvidos em personagens familiares, com muito a dizer. O espectador tem tempo de se familiarizar com os militantes da luta pela cotas.
Como a turma do EnegreSer registrou suas reuniões em vídeo, o que a UnB também pode ter feito (embora os diretores nada tenham encontrado nos arquivos da sexagenária universidade), o filme ganha em vivacidade e historicidade.
Cabeças arejadas e inquietas, os diretores Bruno e Marcus abriram espaço nobre para o geógrafo e colunista (da Folha de S. Paulo) Demétrio Magnoli destilar seu feroz discurso anti-cotas. Ele aparece, na Livraria Cultura, lançando seu livro “Uma Gota de Sangue: Historia do Pensamento Racial”, publicado em 2007), sentado em mesa de debate com quatro ou cinco convidados (todos brancos como ele). Um rapaz negro se levanta e enfrenta o orador, questionando suas ideias e a composição da mesa. Arma-se o bate-boca.
O geógrafo e articulista desiste de buscar argumentos ponderados e dá o encontro por encerrado. Garante que o faz por causa da “milícia fascista” (assim ele define os que questionam seu pensamento e a composição 100% branca da mesa). Os dois cineastas brasilienses buscaram (e encontraram) tal registro nos arquivos do YouTube. Asseguraram que ele já foi utilizado em outros filmes.
Na parte ficcional, protagonizada por mãe (Leni Rabbi, de 57 anos) e filho (Sierra Veloso, atriz e modelo que fez sua transição durante o filme), vemos a encenação da luta de duas pessoas (dois corpos pretos), colocados no extrato de baixa renda, que lutam para estudar na UnB.
No caso específico de Leni Rabbi, a história é real, pois ela, depois de concluir o segundo grau e ver os três filhos na Universidade, se perguntou se não chegara sua hora e vez. Foi aprovada no vestibular e hoje estuda Artes Cênicas na UnB.
Sierra Veloso interpreta personagem trans, incentivada, sem descanso, pela mãe, a estudar, estudar e estudar. Para que seja aprovado no vestibular. No debate do Festival de Brasília, a parte documental do filme (que ocupa parte substancial de seus enxutos 71 minutos), motivou mais curiosidade e perguntas que a parte ficcional.
Os diretores confessaram que tal amálgama (a soma de documentário e ficção) foi tema de muito debate entre a equipe do filme. A montadora Isabele Araújo — contaram Bruno e Marcus — entendeu, em certo momento, que não havia a necessária organicidade entre os dois registros. Por isso, “repensamos juntos o roteiro do filme, reescrevendo-o para que chegasse ao resultado desejado”.
“Rumo” nascera como curta-metragem que foi crescendo, a ponto de transformar-se em um longa-metragem e ser selecionado para a principal competição do Festival de Brasília — a de longas brasileiros. Junto com “Mato Seco em Chamas”, de Adirley Queirós e Joana Pimenta, “Rumo” disputa troféus Candango com produções de outros estados brasileiros. Não ficou restrita à competição distrital (a Mostra Brasilia, promovida pela Secretaria de Cultura em parceria com a Assembleia Legislativa do DF).
O curta paraibano “Calunga Maior” inspira-se na cosmogonia Bantu. Seu diretor, Thiago Costa, é filho de Oxóssi, e vem direcionando sua produção audiovisual para universo afro-brasileiro. Iniciou-se no cinema com “Santos Imigrantes”, prosseguiu com “Axó”, “Visitas” e “Calunfa Maior”. E está finalizando “Axé meu Amor”, para a Amazon, com sua mãe-de-santo como protagonista.
O filme conta a história de Ana (Mari Miguel), jovem que, ao deparar-se com a orfandade, decide mergulhar em espaços escondidos de sua memória. Ela reelabora seus relacionamentos rompidos com a mãe e a avó. Mas tudo se dá fora dos padrões da “narratologia branco-cristã”. Durante três anos, Thiago pesquisou em fontes ligadas à tradição Bantu e leu tese de doutorado do influente Tiganá Santana, defendida na USP (“A Cosmologia Africana dos Bantu-Kogo por Bunseki Fu-Kiang: Tradição Negra, Reflexões e Diálogos a Partir do Brasil). O mesmo Tiganá desempenhou papel crucial na construção da série “Independências”, de Luiz Fernando Carvalho, atração da TV Cultura.
“Sethico” é um ensaio sensorial construído por Wagner Montenegro, ator e praticante de técnicas desenvolvidas por Augusto Boal (Teatro do Oprimido), artista plástico e cineasta. Na narrativa, urdida pela enxuta equipe do filme (destaque para a fotografia do paraibano Breno César), um ser mítico, coberto com expressiva máscara africana (da região subsaariana, com evocações egípcias), faz sua travessia pelos espaços geográficos fundamentais da cidade do Recife. Tudo começa no Rio Capibaribe, porta de entrada para muitas pessoas traficadas de África, passando por edificações, praças e pelo marco zero, cenários da brutal subjugação e exploração de milhões de afro-brasileiros.
Os registros audiovisuais da história da gente negra que passou por tais espaços é tão precário (ou inexistente), que Wagner Montenegro recorre a dois dispositivos — o “lamb” (colagem de cartazes em paredes-muros com grossas camadas de cola) e sobreposição de imagens, que ele desejava que tivessem “pegada psicodélica”.
O resultado soma a figura escondida sob a máscara-tótem africana e a força do que surge impresso-escrito nos cartazes colados nas paredes e muros. O resultado é de grande beleza plástica e de significativa força política.
Na Mostra Brasília (o Candangão) foi exibido o segundo concorrente na categoria longa-metragem (“Profissão Livreiro”, de Pedro Lacerda) e mais dois curtas — o documentário “Levante pela Terra”, de Marcelo Costa, e o ficcional “Reviver”, de Vinícius Schuenquer, protagonizado por Márcia Costa e João Antônio.
O longa documental de Lacerda levou ao Cine Brasília nomes da linha de frente do universo editorial-cinematográfico brasilense: o editor Victor Alegria (Thesaurus Editorial), os livreiros Ivan Presença e Chiquinho da UnB, os cineastas Vladimir Carvalho, Tânia Montoro e Pedro Jorge Castro, o jornalista e apresentador de TV Maurício Mello Jr e o cineclubista José Damata.
O filme desenha, ao longo de 74 minutos, terrível retrato do desmantelamento das livrarias brasilienses (e brasileiras, por extensão), agravado depois da chegada de grandes vendedores digitais (cujo símbolo máximo é a Amazon). O luso-brasileiro Victor Alegria, radicado em Brasília há 60 anos, lembrou que a cidade já contou com 47 livrarias. Hoje são cinco ou seis e todas enfrentando grandes dificuldades.
“Profissão Livreiro” abre espaço especial para Ivan Silva, criador da Livraria Presença, que marcou a vida editorial da cidade. De tal forma, que ele foi “rebatizado” como Ivan Presença. Não dispõe mais de uma livraria física, nem do Quiosque Literário que mantinha no Setor Comercial Sul (Conic), próximo à Faculdade (e Teatro) Dulcina de Morais. Mas guarda em galpões, numa longínqua chácara, mais de 50 mil livros e 10 mil elepês em vinil.
O piauiense Chiquinho, que mantém espaço de venda de livros na UnB desde 1975, também tem oportunidade para falar de sua luta em defesa dos livros. Ele conta que seu apertado quiosque recheado de volumes e incrustado numa das principais entradas do Minhocão (Instituto Central de Ciências) esteve ameaçado de extinção. Por sorte, a comunidade acadêmica (professores e alunos) o defendeu e ele conseguiu permanecer no mesmo lugar. Já a conquista de novos leitores torna-se cada vez mais difícil e o comércio de livros cada vez menos lucrativo para pequenas e médias livrarias (e até para as grandes). Na avaliação de Chiquinho, a Amazon é um concorrente poderoso demais para ser enfrentado.
O longa documental, de construção clássica e na linha “cabeças falantes” (são muitos os entrevistados), é dedicado à escritora e professora de literatura da UnB Lucília Garcez (1951-2021), importante colaboradora do projeto e incansável pesquisadora do hábito (ou falta dele) de leitura entre os brasileiros.
“Profissão Livreiro” conta ainda com depoimentos de Dad Squarisi, Vladimir Carvalho, Cristovam Buarque, Victor Alegria, Maurício Melo Jr e pessoas espalhadas por avenidas de Brasilia (ou Feiras de Livro). A maioria não consegue citar os títulos dos últimos livros lidos. Aquelas que lembram do nome (“Macunaíma”, por exemplo) diz que a obra é de Machado de Assis (e não de Mário de Andrade). Jovens confessam nunca ter ouvido falar em Dostoiévski, Tolstoi e (pasmem) Jorge Amado.