“Pérola”, de Murilo Benício, provoca lágrimas e risos na plateia do Festival Aruanda
Por Maria do Rosário Caetano, de João Pessoa
“Pérola” (foto acima), segundo longa-metragem dirigido pelo ator Murilo Benício, provocou lágrimas e risos no público que o prestigiou na quarta noite da mostra competitiva brasileira do Festival Aruanda. Já o longa paraibano “Cordelina”, de Jaime Guimarães, da competição Sob o Céu Nordestino, causou encantamento.
Murilo Benício não pôde comparecer ao Cinépolis Manaíra, que exibe em sua sala top, a Macro XE, todos os filmes do festival. Mas mandou mensagem gravada e, para representá-lo, seu parceiro em outros trabalhos, o produtor Marcello Maia, da Pureza Filmes.
A atriz Odília Nunes, protagonista absoluta de “Cordelina”, não pôde comparecer ao festival paraibano, mesmo morando em Ingazeiras, no vizinho Pernambuco, por razão inusitada. Foi ferroada por um escorpião.
O diretor Jaime Guimarães dedicou a ela a maior parte de suas falas durante o debate do filme. Contou que a conheceu por acaso, como derradeira atração de um festival de cultura popular. O impacto foi tamanho que resolveu, com parcos R$40 mil, ganhos em edital da Lei Aldir Blanc, realizar um curta com a criadora e sua criatura, a boneca Cordelina, cabeça de cabaça.
O curta foi ganhando corpo até transformar-se em longa-metragem, de pegada híbrida (ele prefere defini-lo como documentário) e pé na estrada. Um road movie que perambulou por dez cidades da Paraíba e de Pernambuco, cenários da poética narrativa, que conta com fotografia arrebatadora de Breno César.
O filme de Murilo Benício não se concentra em apenas uma atriz como a boneca performático-mamulengueira de Odília “Cordelina” Nunes. “Pérola”, afinal, reúne elenco coral, liderado por uma esfuziante Drica de Moraes, coadjuvada por craques como Rodolfo Vaz, Louise Cardoso, Cláudia Missura e Gustavo Machado somados aos jovens Leonardo Fernandes e Valentina Bandeira. Um time reunido pela diretora de elenco Cinthia Falabella, que buscou frescor em suas bem-sucedidas escolhas.
Por tratar-se de filme de época, ambientado na interiorana Bauru (reconstruída no Grajaú carioca), com numeroso elenco e fortes hits musicais na trilha sonora, a produção exigia orçamento robusto. Marcello Maia garantiu, no debate, não tratar-se de uma superprodução. “Realizamos o filme” — testemunhou — “com R$3 milhões, o que não é muito para produção tão complexa e de época”. Mas “Pérola”, que recria a peça-homônima de Mauro Rasi, seu maior sucesso nos palcos, trouxe novo desafio ao produtor Marcello Maia.
“Necessitávamos de dinheiro” — detalhou — “para adquirir direitos autorais de músicas (de Gonzaguinha, Roberto Carlos, da trilha de “Bonequinha de Luxo”, etc.). Um edital da Riofilme nos salvou. Gastamos 95% deste recurso complementar na aquisição das canções e de direito de imagem de filmes (caso de “O Sol por Testemunha”, com Alain Delon).
“Pérola” faz parte da trilogia autobiográfica de Mauro Perroca Rasi (1949-2003), natural de Bauru, que presta tributo à sua mãe, histriônica estrela do lar. Ela adorava falar alto, beber caipirinha, ver TV e fofocar com as irmãs e amigas. Adorava, também, cuidar da casa, que sonhava ver ampliada e com piscina. Uma piscina que pudesse exibir para a sociedade bauruense, quem sabe com notas na coluna social do Diário de Bauru.
Na companhia do amado marido Valdo (Rodolfo Vaz, do grupo Galpão, impecável), ela criou os dois filhos, Mauro e Elisa. A jovem casou-se com rapaz muito conservador (e, no filme, evangélico) e Mauro Rasi resolveu ir para o Rio de Janeiro tentar a vida artística. E buscar a liberdade (e o direito) de viver sua homoafetividade longe do olhar de reprovação da provinciana sociedade de Bauru.
Murilo Benício, que estreou na direção com o metalinguístico “O Beijo no Asfalto”, realizou, com “Pérola”, um filme comercial de muitas qualidades. Elenco notável e afinado, créditos técnicos de primeira e dosagem perfeita de humor e (melo)drama. Por isso, arrancou muitas risadas (fincadas fielmente nos irônicos diálogos de Rasi) e muitas, mas muitas, lágrimas. E não só dos homoafetivos, sensibilizados pela delicada abordagem da ocultação da homossexualidade do personagem junto a seu núcleo familiar mais próximo. Arrancou lágrimas (e risos) do público em geral. Todos se identificaram com uma família provinciana, comandada por uma mãe hiperativa e sonhadora. O filme tem tudo para fazer sucesso nos cinemas.
O Festival Aruanda encerra sua décima-sétima edição nessa quarta-feira, 7 de dezembro, quando serão entregues os troféus Aruanda aos vencedores de suas competições de curtas e de longas-metragens (regionais e nacionais). Há fortes concorrentes em diversas categorias.
A mais disputada será a de melhor atriz, mesmo que a competição nacional conte com apenas três ficções (complementadas com três documentários). A protagonista de “Bia”, longa pernambucano de Taciano Valério, está no páreo. O papel da paraibana Verônica Cavalcanti, que brilhou em “O Grão” (Petrus Cariry, 2007) é notável. Ela volta a brilhar, dessa vez na pele da pós-graduando Bia, que prepara tese de doutorado sobre o MST (Movimento dos Trabalhadores Sem Terra). Depois de interromper relacionamento conjugal, ela volta a viver com os pais, interpretados por Zezita Matos e Fernando Teixeira. A mãe, já idosa, tem problemas de locomoção. O pai, octogenário, anda já com o juízo frouxo. Deseja (ou pode) realizar apenas e ludicamente suas maluquices.
No páreo do troféu de melhor atriz está, claro, Drica de Moraes, maravilhosa na pele (e no maiô dourado) de “Pérola”. E, também, Malu Galli, de “Propriedade“, do pernambucano Daniel Bandeira.
Os três documentários exibidos pelo festival — “Andanças – Os Encontros e as Memórias de Beth Carvalho”, do carioca Pedro Bronz, “Fausto Fawcett na Cabeça”, do moçambicano-brasileiro Victor Lopes, e “Lupicínio Rodrigues – Confissões de um Sofredor”, do paulista Alfredo Manevy — devem disputar prêmios especiais ou técnicos.
No debate do longa dedicado a Beth Carvalho, o diretor-montador Pedro Bronz contou ter crescido sentindo-se “parte da família da cantora”. Afinal, sua mãe, que fôra colega de escola da botafoguense Beth, manteve-se, pela vida inteira, ao lado da amiga. A ponto de ter sido escolhida para madrinha de batismo de Luana, única filha da intérprete de “Coisinha do Pai” e “Vou Festejar”.
“Eu a chamava de tia, nossas famílias se frequentavam com assiduidade” — confessou. E para diversão de quem assistia ao debate presencialmente (ou pela internet), narrou história saborosa: “meu pai era muito reacionário. E Beth Carvalho uma mulher de esquerda, brizolista (depois lulista) até a medula. Ela era, porém, a única pessoa que transformava meu pai, que era gráfico e macho-alfa, em um cordeirinho. Ela entrava lá em casa e já ia esculhambando com ele, elogiando o Brizola e dizendo que meu pai era um ‘reaça’. Ele ficava quietinho, gostava demais dela e foi autor de muitos dos registros feitos com a câmara VHS da cantora”.
Bronz defendeu a principal opção de seu filme — trabalhar apenas com gravações domésticas (algumas precaríssimas) realizadas pela cantora e seus colaboradores. “Nunca podemos esquecer “ — lembrou — que “Beth, que casou-se com o samba, foi uma obstinada pesquisadora do mundo do samba e do pagode”. “Eu quis fazer com ‘Andanças’ um trabalho etnográfico. Primeiro restauramos o material, gravado em maior parte em VHS, e depois editei o que me pareceu mais significativo daquelas imagens registradas em mais de 800 fitas. Tudo era suporte de suas pesquisas de novos compositores, de novas músicas”.
O longa documental, que dura quase duas horas, pagará por esta opção radical. O público sonhará com registros de imagens e sons de primeira qualidade, por estar acostumado aos padrões hollywoodianos e netflixianos. Mesmo assim, Pedro Bronz não mostra abertura (e disposição) para enxugar a duração de seu documentário e, assim, potencializar seus momentos mais luminosos. Em especial o encontro com Nelson Cavaquinho, que fez “totalmente sóbrio”, longa temporada com Beth Carvalho no Projeto Pixinguinha, e aquele no qual, com franqueza desconcertante, Cartola diz a Beth que “As Rosas Não Falam” ficaria bem na voz dela. Já “O Mundo e o Moinho” não! Se gravasse tal composição — diria ele à intérprete —, ela iria “queimar a música”.
O debate em torno de “Fausto Fawcett na Cabeça”, que contou com a participação do compositor-escritor-e-
Victor Lopes, que define seu filme como uma “ópera pop de ‘fricção’ científica”, e seu personagem não aceitaram o rótulo. Fawcett lamentou o “universo burrificante” que estamos vivendo. Argumentou que estamos imersos em “momento de imensa mediocridade, de terríveis limitações à ousadia e transgressão criativas”.
Na mostra Sob o Céu Nordestino foram exibidos, até agora — além do encantador “Cordelina” —, mais dois filmes. A ficção pernambucana “Fim de Semana no Paraíso Selvagem”, de Severino, e o infanto-juvenil “Pequenos Guerreiros”, da cearense Bárbara Cariry. Faltam dois longas pernambucanos — o documentário “Manguebit”, de Jura Capela, e a ficção “Paterno”, de Marcelo Lordelo, que será representada por seu protagonista, Marco Ricca, notável na pele de um arquiteto, filho de um dos tubarões da especulação imobiliária recifense.
“Fim de Semana no Paraíso Selvagem” é um drama social e político de muitas qualidades. Seu diretor, que adotou novo e sintético nome (Severino) — depois de dirigir vários curtas e o longa “Todas as Cores da Noite” como Pedro Severian — tem seu foco em questão vital de nossas grandes metrópoles, a especulação imobiliária.
O “Paraíso Selvagem” de Severino recebe a jovem médica legista Rejane (Ana Flávia Cavalcanti) em ensolarado litoral nordestino. Ela resolve investigar a morte do irmão Rodrigo (Pedro Wagner), mergulhador e reparador de cascos de navios. Encontra a moradora da região, Maristela (Joana de Medeiros), também médica e casada com proprietário de imóveis no local (Wilson Rabelo). O casal está envolvido em projeto que pretende transformar aquele trecho litorâneo num novo, descolado e gentrificado paraíso imobiliário.
Com imagens poderosas de Beto Martins, elenco afiado e doses de suspense, Severino (ou Pedro Severien, assinatura de origem francesa) constrói narrativa lacunar, sensorial e de atmosfera densa. Ligado ao movimento Nova Estelita, de combate à gentrificação, ele sabe o que faz. Houve quem visse no segundo longa de Severino, proximidade com “O Som ao Redor” e, mais ainda, com “Aquarius”. Há, sim, traços estilísticos e temáticos a unir tais filmes. O que é normal e saudável. Afinal, os três títulos refletem sobre os problemas de uma das grandes metrópoles brasileiras, o Recife, e dialogam com o cinema de gênero.
Severino não atingiu o resultado final dos dois primeiros (e melhores) longas ficcionais de Kleber Mendonça. Mas suas inquietações e ousadias artísticas mostram que ele está e trilha o bom caminho.