Zezé Motta canta “O Poder da Criação” no palco do Festival Aruanda

Por Maria do Rosário Caetano, de João Pessoa

A atriz e cantora — “cantriz”, como ela gosta de dizer — Zezé Motta brilhou na noite de abertura da décima-sétima edição do Festival Aruanda do Audiovisual Brasileiro na maior sala do Complexo Cinépolis Manaíra, em João Pessoa, capital da Paraíba.

Depois de receber o Troféu Aruanda por sua longa trajetória artística das mãos da atriz baiano-paraibana Norma Góes, ela abriu sorriso largo e afirmou que, sendo atriz e cantora, não agradeceria com fala discursiva, mas sim com palavras cantadas. E desfilou, à capela, os belos versos de “O Poder da Criação”, de João Nogueira e Paulo César Pinheiro. Foi aplaudida de pé.

Mesmo cansada, depois de viagem exaustiva e com muitos atrasos (o que houve com os aeroportos brasileiros na última quinta-feira, primeiro de dezembro??), Zezé Motta, de 78 anos, permaneceu no cinema para assistir com o público paraibano ao filme “Xica da Silva”, de Cacá Diegues. Para ela, este longa-metragem, de 1976, é “um verdadeiro divisor de águas em sua carreira”.

Quando a sessão terminou, por volta da meia-noite, Zezé ainda encontrou energias para tirar fotos com dezenas de fãs, que iam de casais sexagenários a jovens de vinte e poucos anos. Foi uma enorme sessão de selfies que ela interrompeu com sorriso largo de quem pede cumplicidade: “vocês me perdoem, mas eu estou realmente muito cansada, a viagem foi longa e exaustiva”.

Por compromissos profissionais no Rio, a atriz não pôde permanecer em João Pessoa para debater sua trajetória no cinema, teatro, TV e palcos musicais (sem esquecer seu trabalho como ativista da causa negra, já que ela criou e comanda o CIDAN – Centro de Informação e Documentação do Artista Negro). Não pôde, portanto, acompanhar a sessão do filme pernambucano “Fim de Semana no Paraíso Selvagem”, de Severino, que a tem no elenco e compete a prêmios na mostra Sob o Céu Nordestino.

Zezé Motta está, também, no elenco de “Na Rédea Curta”, de Glenda Nicácio e Ary Rosa, longa que não participa das competições do Festival Aruanda, mas está em cartaz no mesmo complexo da Rede Cinépolis, palco aruandeiro. Neste filme, ela interpreta Voinha, a avó de Júnior (Thiago Almasy), que protagoniza a comédia baiana junto com Mainha (Sulivã Bispo).

Alem de Zezé Motta, festejada também com uma sintética cinebiografia assinada pelo Canal Brasil, a noite inaugural do Festival Aruanda contou com mais duas homenagens. Ambas póstumas. A primeira ao dramaturgo e cineasta Eliézer Rolim (1960-2022), a segunda ao poeta, jornalista e documentarista Jurandy Moura (1940-1980).

Eliezer morreu no começo desse ano, vítima de Covid, aos 61 anos. A morte inesperada o impediu de lançar, nos cinemas, “Beiço de Estrada”, versão cinematográfica de sua peça mais conhecida. Aquela que revelou a atriz Marcélia Cartaxo, integrante do Grupo Terra. A companhia teatral paraibana excursionou pelo sudeste brasileiro, dentro do Projeto Mambembão. Ao vê-la no palco, a cineasta Suzana Amaral a escolheu para interpretar a lispectoriana Macabeia em “A Hora da Estrela” (1985). Resultado: a jovem atriz ganhou o Urso de Prata no Festival de Berlim.

Antes de entregar um Troféu Aruanda à viúva Rosângela Miná e à filha de Eliézer, Minna Miná, o festival paraibano exibiu trecho do documentário “Meu Pai, Eliézer Rolim”. A versão integral, com 26 minutos de duração, será exibida na próxima terça-feira, à tarde, no Cinépolis Manaíra.

Jurandy Moura, que morreu em acidente de carro, 42 anos atrás, foi lembrado pelo documentário “A Vida Simples de Jurandy Moura”, de Marcus Vilar e Lúcio Vilar (sem nenhum parentesco). O filme conta com depoimentos substantivos (ou leitura de poemas) de Zezita Mattos, Vladimir Carvalho, Fernando Teixeira, Silvio Osias, Sergio de Castro Pinto, além da viúva Carminha Cândido Moura, da filha psicanalista Clarissa e do filho Eduardo).

Jurandy foi editor do suplemento cultural Correio das Artes, do jornal A União, poeta e cineasta. Seu primeiro filme, o documentário “Padre Zé Estende a Mão” (1974), foi exibido nos festivais de Londres, Oberhausen, na Alemanha, e em Cracóvia, na Polônia. Ele realizou, ainda, pequenos documentários sobre a Festa de Iemanjá, Teatro de Bonecos, e Encontro Folclórico na paraibana Pombal. E foi assistente de direção de Linduarte Noronha em seu único longa ficcional, “O Salário da Morte”, realizado no começo dos anos 1970.

A pesquisadora e professora Kristal Robin Bivona, diretora-associada do Behner Stiefel Center of Brazilian Studies, da Universidade Estadual de San Diego, na Califórnia, abriu as atividades reflexivas do Festival Aruanda. Ela, que integra o júri da mostra competitiva de longas brasileiros ao lado da atriz Marcélia Cartaxo e do cineasta Joel Zito Araújo, proferiu ótima palestra, na Usina Cultural Energisa, sobre o tema “O Cinema Brasileiro no Exterior: Representatividade e o Imaginário Global”.

Em excelente português e usando imagens de filmes e trecho de entrevista de Kleber Mendonça (“Aquarius”) como ilustração, a professora estadunidense contou que o primeiro longa-metragem brasileiro visto por ela foi “Central do Brasil” (Walter Salles, 1998). Lembrou que,  naquela ocasião, estava iniciando seu curso de português em San Diego, nos EUA. E escolhera a língua de Camões por razão prática. “Eu morava em Tijuana, no México, e as aulas de Português eram as que ofereciam os horários mais convenientes para quem morava tão longe”.

Marcélia Cartaxo e Kristal Robin Bivona © MRC

Ainda colocada nos rudimentos do novo idioma, Kristal não entendeu os diálogos de “Central do Brasil”, mas quando as luzes se acenderam, ela e os colegas estavam emocionados, muitos com lágrimas nos olhos. O filme conseguira se comunicar com todos que o assistiam. Continuou seus estudos e apaixonou-se pelo cinema brasileiro da Retomada. Assistiu ao adrenalinado “Cidade de Deus” e ficou bastante impressionada. “Muito bem-produzido, com orçamento adequado, treinamento primoroso de atores não-profissionais, história envolvente (a partir do livro de Paulo Lins) e indicado a quatro Oscar pela Academia de Hollywood”, destacou. Mesmo que — fez questão de ponderar — ajudasse a fixar imagem única do Brasil — “a de um país perigoso, violento, assustador”.

“O impacto de ‘Cidade de Deus’ foi tão forte” — relembrou — “que, ainda hoje, quando pergunto a meus alunos de 18, 19 anos, recém-chegados à Universidade (de San Diego), que filmes brasileiros vocês conhecem?”, a resposta é sempre (e invariavelmente) “Cidade de Deus”. Mesmo que o filme já conte com 20 anos. Portanto, “estreou quando meus alunos ainda não tinham nascido”.

Preocupada com “a imagem única” de um país tão complexo quanto o Brasil, Kristal começou a buscar novos filmes, ficcionais ou documentais e de outras regiões do país, para apresentar imagens multifacetadas do Brasil aos alunos.

Conheceu “Café com Canela”, de Glenda Nicácio e Ary Rosa, “primeira ficção brasileira dirigida por uma mulher, 34 anos depois de ‘Amor Maldito’, de Adélia Sampaio”. Satisfeita, pôde estabelecer um primeiro contato com o Brasil do Recôncavo Baiano, com personagens afro-brasileiros, comuns, não imersos na violência.

Kristal conheceria, em seguida, as produções mineiras da Filmes de Plástico, realizadas no município de Contagem, por André Novais Oliveira (“Temporada”), Maurílio Martins e Gabriel Martins, o Gabito (“No Coração do Mundo”), e “Marte Um” (direção solo de Gabito). Viu, entusiasmada, filmes que também falavam de afro-brasileiros comuns, não envolvidos com tráfico e violência e protagonizados por integrantes da própria família dos cineastas.

A pesquisadora estadunidense acompanhou com grande interesse a trajetória internacional de dois filmes — “Aquarius”, de Kleber Mendonça, e “Marighella”, de Wagner Moura. O longa pernambucano, protagonizado por Sonia Braga, ganhou destaque na mídia estrangeira quando Kleber e equipe protestaram contra o impeachment da presidenta Dilma Rousseff, no tapete vermelho do Festival de Cannes. Acabou em represália, sendo preterido por comissão de seleção governamental, mesmo sendo o franco favorito, para representar o Brasil no Oscar internacional.

Como o filme era “crítico ao capitalismo e à gentrificação” — ponderou Kristal — e seu diretor e equipe, contrários aos governantes de direita que haviam assumido o governo, “sofreu boicote de barulhenta facção que, mesmo sem tê-lo assistido, propunha que fosse rejeitado”.

“Marighella” foi outro filme que sofreu boicote. No Festival de Berlim, no qual estreou, houve novo protesto. O diretor (e ator) Wagner Moura levou placa que denunciava o assassinato da vereadora Marielle Franco, junto com o motorista Anderson, dentro de um carro (Carlos Marighella também foi assassinado dentro de um automóvel pela polícia política).

Kristal contou que o filme de Wagner Moura, ator de “Narcos”, série muito conhecida nos EUA, foi exibido em festivais e universidades estadunidenses. E impressionou por seu protagonista negro (interpretado por Seu Jorge), estabelecendo boa comunicação com os jovens, mesmo aqueles que nada sabiam do personagem histórico. E o fez graças “à sua narrativa ligada ao cinema de ação”. Porém, alguns críticos se incomodaram com a “representação vilanizada” dos norte-americanos. “Em seu filme” —ponderou a professora — “Wagner Moura, de forma intencional, posicionou-se por caminho oposto ao de Bruno Barreto que, em ‘O que É Isso, Companheiro?’, fez do embaixador dos EUA (Allan Arkin) um personagem matizado, simpático e sensato”.

Por fim, Kristal lembrou que os serviços de streaming (Netflix, Paramount e Amazon, em especial) têm ajudado a divulgar a produção brasileira (com filmes legendados em inglês), nos EUA. Citou “ Ex-Pajé” e “A Última Floresta”, ambos de Luiz Bolognesi (este último em parceria com David Kopenawa), “Democracia em Vertigem”, de Petra Costa, “Laerte-Se”, sobre a cartunista Laerte, subversiva ao assumir-se trans já sexagenária.

A jovem professora mostrou, por fim, tabela com outros títulos (fora “Cidade de Deus”, “Marighella” e “ Democracia em Vertigem”) que ela pode, agora, recomendar a seus alunos, em serviços de streaming, nos EUA: “Racionais”, de Juliana Vicente, “M8”, de Jeferson De, “Cidade de Deus – Dez Anos Depois”, de Cavi Borges e Luciano Vidigal, entre outros. Até “Kardec”, produção da Conspiração Filmes sobre o fundador da doutrina espírita, está nas redes do poderoso país do norte.

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