O que faz rir e o que faz chorar em “Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo”

Filme recordista de indicações ao Oscar é um besteirol misturado com drama, uma dramédia em que o sofrimento dos personagens, que faz o espectador chorar no final, está na base narrativa de toda a comédia que faz rir

Por Hermes Leal

Mais uma vez um filme causa espanto com tantas indicações às estatuetas do Oscar. O filme indicado em 11 categorias “Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo”, produção independente da dupla de diretores americanos Daniel Kwan e Daniel Schienert, espanta por se tratar de uma comédia, um besteirol completo, em uma paródia de “Matrix”, como as que existiam no início dos anos 90, a exemplo de “Top Gang”, uma linha de filmes que nunca chegou perto de uma indicação ao prêmio máximo da academia. Espanto para quem só vê no filme esse besteirol com estética 100% de videoclipe, pois os dois jovens diretores vêm dessa escola pop. Outros veem o drama das personagens dentro da comédia, e sentem o sofrimento dessas personagens, especialmente o da garota lésbica. Esse é o poder da dramédia.

Porque a sinopse do filme é simples: trata-se de uma família de chineses vivendo nos Estados Unidos, donos de uma lavanderia e que precisam enfrentar a chefe de cobrança dos impostos, uma vilã que o cidadão americano costuma encarar, e que prepara a festa de ano novo chinês, quando o patriarca da família vem da China especialmente para o evento.

Essa sinopse é baseada no arquétipo simples dos personagens, com uma mulher durona, um marido mole e uma filha chorona. Até que eles descobrem que existem outros deles, avatares em outras dimensões, com um guaxinim no lugar do rato de “Ratatouille” no outro universo, e que sofrem com seus mesmos dramas na vida real, mas agem de maneira diferente, comicamente, como se trocassem de papéis em “Se Eu Fosse Você”.

A dramédia funciona com duas histórias interligadas, a das personagens, o marido Waymond (Ke Huy Quan), pedindo divórcio, e a filha Joy (Stephanie Hsu) pedindo que seja olhada e aceitada como ela é pela mãe Evelyn (Michelle Yeoh), e a história da comédia, que é a exploração do “multiverso”, em que esses personagens exercem diversos papéis diferentes, ganhando poderes que não têm na vida real em outra dimensão. A história individual dos personagens, cada um com um tipo de sofrimento, está subordinada à história das ações e da intriga, mas é essa história sensível que vai gerar os motivos e as necessidades das ações.

No plano sensível, o núcleo da intriga do filme, que se passa em apenas um dia, no mundo real, é de um marido pedindo divórcio, porque sua mulher não o vê, e uma filha cobrando a mesma coisa, que ela a veja e aceite sua namorada, que não tenha preconceito por ela ser lésbica, nerd e chorona, que precisa da aprovação da mãe, e isso está demonstrado no início do filme, quando os arcos são iniciados, e a mãe não consegue apresentar a namorada da filha ao seu pai, um velho e conservador chinês. A crise está aberta. Sua filha bate o pé, mostra seu sofrimento com toda carga de melodrama explícito, e aí o drama é transportado para o metaverso tupiniquim, em forma de comédia, no momento em que precisam pagar os impostos da lavanderia.

É aí, nessa mudança de “verso”, em que o núcleo familiar é transportado para outra dimensão, que o drama se mistura com a comédia. Porque a intriga no metaverso é outra, com o avatar da mãe sendo uma mulher heroína dos filmes de ação americanos, que não tem noção de seu papel em salvar o mundo de um perigoso mal, de nome Jobu, que vem ser a sua própria filha Joy. Mas, para a mãe, sua filha não seria uma pessoa má, e está possuída por um outro tipo de mal. Uma metáfora do homossexualismo da filha que a mãe não aceita, transportado para a outra dimensão. E o final do arco principal do filme será essa mãe aceitar a filha como ela é, não só como lésbica, mas também aceitar sua impotência, assim como deverá reconhecer o valor do marido, mesmo sendo um banana completo.

No multiverso, na troca de papéis, Joy quer matar a mãe, que sempre morre em todas suas milhares de vidas possíveis no multiverso, de cantora e atriz a uma chef famosa. Jobu é uma mulher assassina e não descansará enquanto não destruir a própria mãe, algo que não acontece na vida real, onde as duas têm brigas eternas. Porque lhe falta potência para lutar contra seu destinador, como um crente que não consegue se livrar da potência de um Deus.

A função do Destinador na construção de um personagem

Agora podemos explicar teoricamente como é construído essa forma de drama baseada nessa relação contratual entre personagens. Na teoria da narrativa usada pelos autores do filme, esse núcleo da intriga é formado por uma base em que cada personagem tem uma “função”, em uma relação contratual entre um sujeito, um objeto e um destinador. Essas três funções formarão o núcleo de qualquer intriga.

Todo personagem está preso a um objeto de desejo, no qual o personagem deseja o “valor” que esse objeto possui, seja sexo, amor ou dinheiro, e preso também a um destinador, que lhe doa “poder” e “potência”, mas que o puxa para si, que cobra essa doação. Por isso todo personagem com a função de estar sujeito a um destinador, como no caso da filha Joy que tem a mãe Evelyn como destinadora transcendente, tem a característica de rebeldia, de lutar contra essa potência do seu destinador. Essa lógica do sentido está em toda boa obra.

No estudo da semiótica narrativa de Greimas já foram detectados ao menos quatro tipos de destinadores. O transcendente, que são os pais para os filhos, e vice-versa, e que formam um tipo de “contrato” que não se rompe, como o que um crente tem com seu deus, um destinador que lhe doa potência apenas através de um signo mental de poder. Temos o destinador persuasivo, que faz o outro fazer o que ele quer, o autodestinador, que gera sua própria potência e poder sem precisar de ninguém, e o destinador social, para quem os heróis lutam para serem reconhecidos por este destinador como recompensa, como o Batman, Super-Homem, Homem Aranha, entre outros. Existe nestes heróis o mesmo tipo de contrato entre pais e filhos.

Por causa dessa relação conflituosa entre um sujeito e seu destinador, há uma lógica no enredo de “Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo”, que vem do reconhecimento dessa relação no dia a dia de todo mundo, e não somente na mitologia grega, e que por isso afeta o espectador. A cultura grega já doou essa lógica para a nossa dramaturgia, o que nos dá um reconhecimento cognitivo de que existe na vida de “verdade” esse tipo de conflito, essa luta da filha contra a mãe, que é diferente da empatia que todos acham que temos e usamos em nosso parecer, para mostrar que temos algum tipo de perfeição que os outros não têm. Na vida real não, as relações entre pessoas são de manipulação e persuasão.

Em “Star Wars”, o drama principal é de um filho atrás do pai para matá-lo, destruí-lo, como a filha de Evelyn, não na vida real, mas na metáfora do multiverso. Ela quer destruir a mãe para se livrar de sua potência, não para ficar com seu pai, assim como o personagem Christopher Smith (John Cena), de “Pacificador”, que precisa matar o pai, e realmente o mata no final da série. Ele destrói o pai para se livrar de sua potência, pois nem existe a figura da mãe nessas outras duas intrigas.

A ausência do destinador em Disney

Uma das fórmulas de sucesso das histórias dos estúdios Disney está relacionada com a ausência de um destinador transcendente para tornar a história menos densa, por isso os personagens não têm pais, só tios e primos. Sem a existência desses destinadores, os personagens da Disney podem ser livres para uma intriga sem a densidade real do sofrimento humano, como se eles nem existissem. Os contratos com outros personagens não são mais transcendentes, muitos são exercidos pela “paixão da amizade”, que é uma paixão de uma necessidade técnica (que vem ser a estrutura fundamental dos personagens principais do filme “A Sociedade do Anel”), de confiança no outro, porque a falha de um amigo será menos sofrida que a falha dos pais, que não são perfeitos, e nunca são como queremos que fossem.

Por isso o fechamento do arco de “Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo” é dos personagens e não dá história, sem nada para revelar, e da ausência do poder do destinador que some como mágica, e termina como as histórias da Disney. A mãe aceitando a filha como realmente ela é e, finalmente, dizendo para o velho e conservador pai que sua neta tem uma namorada, e assumindo, ainda, o marido, transformando todo o sofrimento em comédia, em uma concessão da verdade. Os personagens agem com uma falsa perfeição da alma, porque somos sempre imperfeitos, sempre.

Nesta lógica do sentido da vida em seus valores, só Deus é perfeito, porque não tem alma. Porque não sofre. Cristo só não é um deus, porque sofreu, teve alma. Mas sofrimento também é julgamento e valor. Todos querem ter valor para encobrir a imperfeição. É um querer. Então, toda nossa busca por uma perfeição, até mesmo uma família perfeita como no caso do filme, é uma concessão de nossa vida imperfeita. Os grandes filmes mostram essa imperfeição que a Disney tenta esconder. As grandes obras fílmicas não fecham seus arcos com uma concessão, mas com uma verdade. O “final feliz” é uma concessão que o Oscar adora premiar. Dominar essas técnicas é uma ciência nova. Mas já podemos saber como fazer o que eles fazem para dar certo. Que não seja somente o tema.

No início de fevereiro ministro um curso pelo ICAB, para escritores e roteiristas, onde mostrarei como esses autores fazem esse tipo de história dar certo, com a teoria da Semiótica Narrativa e da Semiótica das Paixões. Como essa teoria é usada nesse filme e em outras dramédias, como “Ted Lasso”, “Fleabag” e “Parasita”, resgatando essa lógica existencialista do personagem nas peripécias da comédia.

 

Hermes Leal é jornalista, escritor, roteirista e documentarista. É mestre em Cinema, com especialização em roteiro, pela ECA/USP, e doutor em Linguística e Semiótica, pela FFLCH/USP, com a tese “As Paixões na Narrativa” (2017), na Coleção Estudos da Editora Perspectiva.

One thought on “O que faz rir e o que faz chorar em “Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo”

  • 28 de janeiro de 2023 em 03:44
    Permalink

    Nada a ver análise, achei ela super confusa, cabeçuda, insensível e descolada das ações dramáticas, buscando projetar uma teoria pessoal na cabeça dos criadores, o que nunca se pode afirmar sem conhecer o processo criativo de quem realizou. Esse filme sim consegue fazer uma semiótica das paixões, materializando uma multiplicidade dos sentimentos na metáfora do multiverso. a única teoria necessária pra ler essa obra é um coração aberto e um pouco de psicologia junguina.

    Resposta

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado.