“O Menino e a Garça” mostra o mestre Miyazaki no esplendor de sua criatividade

Por Maria do Rosário Caetano

“O Menino e a Garça”, concorrente ao Oscar de melhor longa de animação, deve render mais uma estatueta dourada ao mestre Hayao Miyazaki, de 83 anos. O filme, que tem pré-estreias abertas ao público em diversas cidades brasileiras, estreia nos cinemas dia 22 de fevereiro. Portanto, duas semanas antes da cerimônia da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood.

O realizador tokiota, hoje um dos mais respeitados animadores do mundo, anunciou sua aposentadoria em 2016. Mas, para sorte de seus admiradores, acabou trabalhando, com paciência de monge budista, nesse filme que pode, sim, ser o último de sua carreira.

O artista dedicou mais de sete anos de trabalho à história do menino Mahito, que perde a mãe durante a Segunda Guerra Mundial. E o fez com garra de um samurai kurosawiano. O resultado é notável.

Ao longo de 2h04′, acompanhamos narrativa que nasce de recriação livre de obra literária – o romance infanto-juvenil “Como Você Vive?”, de Genzaburo Yoshino. Publicado em 1937, o livro tornar-se-ia forte e estimada referência para o infante Miyasaki.

Na trama de “O Menino e a Garça, muitas dificuldades vão perturbar a vida de Mahito. Perder a mãe, aos 12 anos, é mesmo algo aterrador. Ainda mais num mundo em guerra. O pai, projetista de aviões de combate, toma a cunhada, irmã mais nova de sua falecida companheira, como esposa. A família transfere-se para uma grande propriedade rural. Mais uma mudança significativa na vida do menino. Mesmo que na ampla casa de campo ele encontre o carinho doméstico de “vovós”, zelosas cuidadoras, que o cercam de atenções.

A orfandade e a mudança do espaço urbano para uma casa rural, porém, deixarão Mahito desnorteado. A ponto dele ferir-se com uma pedra, sinal de que realmente encontra-se tomado pela dor e sem lugar no mundo. Até que aparece uma garça falante, antropomórfica (uma ave pernalta, que traz dentro de si um homem).

A garça garante ao menino que a mãe dele está viva. Com este estratagema, atrairá Mahito para um mundo fantástico. E surge uma nova complicação – a jovem esposa de seu pai (a tia que agora ocupa o lugar de madrasta) desaparece. Essa segunda orfandade abala ainda mais o menino. Levado pela ave até uma torre, Mahito passará por um portal que o conduzirá a experiências mágicas. Embora o filme comece como um drama realista, ele se constituirá como uma grande fantasia.

Ao logo da narrativa, o garoto enfrentará terríveis desafios. O maior deles será representado por um exército de periquitos gigantes, que protagoniza alucinantes peripécias (uma metáfora para o militarismo japonês, que levou o país a brutais combates no Pacífico (como aliado dos nazistas?). Por que não?

Ao fim da jornada, o público estará fascinado pelo que viu. Os desenhos são de imensa beleza, a trama é complexa e as falas elaboradas (nunca resvalam o banal). O filme (recomendado a maiores de doze anos) destina-se, claro, ao público adolescente, mas também a plateias adultas. Afinal, discute temas como as consequências da guerra, a orfandade, a solidão, a busca de relações que possam amenizar perdas dilacerantes.

Ninguém pense que irá se deparar com um menino que alia-se a uma garça para enfrentar “forças do mal”. Comparado aos hiperativos filmes de animação do cinema industrial, com suas vozes esganiçadas e barulhos excessivos, o longa-metragem de Miyazake parece um bálsamo. Sua percepção reflexiva é ressaltada pelo projeto do artista, que segue apegado ao desenho artesanal. Miyazaki costuma lançar mão de recursos digitais só excepcionalmente e com muita parcimônia.

No domingo, 18 de fevereiro, “O Menino e Garça” poderá empalmar o Bafta de melhor animação. Desde que derrote a prata-da-casa (“A Fuga das Galinhas: A Ameaça dos Nuggets”) e duas produções norte-americanas (“Elementos” e “Homem Aranha: Através do Aranhaverso 2”). Se Miyazaki ganhar, o que é bem provável, seu troféu britânico fará companhia ao Globo de Ouro, conquistado em janeiro último. E encontrará outras láureas guardadas na estante – o Urso de Ouro, ganho em Berlim de 2002, e o Oscar de 2003, ambos por “A Viagem de Chihiro”.

Na disputa pelo Oscar 2024, “O Menino e a Garça” enfrentará forte concorrente – o espanhol “Robot Dreams”, de Pablo Berger, baseado em graphic novel estadunidense ambientada em Nova York. Este filme, sem diálogos, traz canções que encantaram os EUA na década de 1980, seu tempo histórico. E locações da “cidade que nunca dorme” conhecidas no mundo inteiro, como a Estátua da Liberdade, Long Island, os arranhas-céus de Manhattan e as desaparecidas Torres Gêmeas.

A favor de “Robot Dreams” há, também, uma trupe de agentes dos mais descolados e vencedores. A mesma equipe que cuidou das vitoriosas campanhas de “Parasita”, de Bong Joon-ho (o maior triunfo de um filme internacional na história da Academia), e “Triângulo da Tristeza”, de Ruben Ostlünd, melhor filme estrangeiro. Os outros três concorrentes – o queer “Nimona”, de Troy Quane e Nick Bruno, “Elementos”, de Peter Sohn, e “Homem Aranha: Através do Aranhaverso 2”, de Thompson, Dos Santos e Powers — têm chances reduzidas. O triunfo de “O Menino e a Graça”, se vier, será mais que merecido.

 

O Menino e a Garça
Japão, 2023, 124 minutos
Direção e roteiro: Hayao Miyazaki
Fotografia: Atsushi Okui
Trilha sonora: Joe Hisaish
Produção: Estúdios Ghibli
Distribuição: Sato Filmes
Censura: 12 anos

 

FILMOGRAFIA
Hayao Miyazaki/Estúdios Ghibli (Tóquio-Japão, 5 de janeiro de 1941)

Principais filmes:

2023 – “O Menino e a Garça”
2013 – “Vidas ao Vento”
2011 – “Da Colina Kokuriko”
2010 – “O Mundo dos Pequeninos”
2008 – “Ponyo: Uma Amizade que Veio do Mar”
2006 – “Contos de Terramar”
2004 – “O Castelo Animado”
2002 – “O Reino dos Gatos”
2001 – “A Viagem de Chihiro”
1997 – “Princesa Mononoke”
1994 – “Pompoko – A Grande Batalha”
1991 – “Memórias de Ontem”
1989 – “O Servico de Entrega”
1988 – Meu Amigo Totoro”
1986 – “O Castelo no Céu”
1979 – “O Castelo de Cagliostro”

Documentários sobre a trajetória do animador:

2016 – “Never-Ending Man: Hayao Miyazaki”, de Kaku Arakawa (duração: 70 minutos)
2013 – “Estúdios Ghibli: Reino de Sonhos e Loucura”, de Mami Sunada (duração: 120 minutos)

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