Cinebiografia de Bob Marley vai da guerra civil na Jamaica à glória planetária do rei do reggae

Por Maria do Rosário Caetano

Na década de 1970, o jamaicano Bob Marley tornou-se um dos mais admirados astros da música planetária. No Brasil, não seria diferente. Seus discos – em especial “Exodus” e “Kaya” – atraíram multidões. Suas performances e estilo de vida catequizaram milhares de seguidores. Em 1979, Gilberto Gil transformaria sua transcriação de “No Woman No Cry” (“Não Chore Mais”) em sucesso avassalador.

O artista jamaicano, que transformou o reggae em força seminal da música popular contemporânea, não apresentou concertos no Brasil. Aliás, só visitaria o país em março de 1980, para participar de festa da gravadora Ariola e jogar futebol com Paulo César Caju, Chico Buarque e a turma do Politheama. Já estava mais magro do que sempre fôra e com o câncer, que encurtaria sua brilhante trajetória, em estágio avançado. Morreria em maio de 1981, aos 36 anos. Catorze meses depois de sua breve visita ao Rio de Janeiro.

O astro afro-jamaicano deixaria por todo país – e em especial no Maranhão, espécie de “Jamaica brasileira” – uma legião de admiradores. Dos 70 milhões de discos que vendeu desde seu estouro em Londres (a partir da gravação de “Exodus”, 1977), parcela nada desprezível viria de lojas edificadas em solo brasileiro.

Nessa quinta-feira, 15 de fevereiro, “Bob Marley: One Love”, quarto longa-metragem do afro-novaiorquino (do Bronx) Reinaldo Marcus Green, faz sua estreia em nossos cinemas, depois de concorridas sessões de pré-estreias.

O Brasil ganhará, no filme, uma única (mas nobre) citação. O jamaicano, apaixonado por futebol, evocará o maior craque de todos os tempos, Pelé, de quem era fã juramentado. Afinal, aos 25 anos, assistira à Copa de 1970, aquela que a seleção canarinho venceria com seu futebol-arte, conquistando fãs por todos os quadrantes. Por que seria diferente na pobre e conturbada ilha caribenha?

A versão ficcional da trajetória de Bob Marley deve agradar aos seus fãs mais devotados. Afinal, ouve-se o melhor de sua produção, seus maiores e inesquecíveis hits. Dos mais politizados e rebeldes, aos mais espiritualizados, passando pelos mais líricos. E foram muitos, pois o artista registrou nove álbuns em sua curta carreira de reggaeman.

Os espectadores mais exigentes, porém, ficarão insatisfeitos com o projeto de Marcus Green, produzido pela família do jamaicano (em parceria com Brad Pitt). Nem o recorte temporal centrado apenas em dois anos (1977-78), os de maior glória de Bob Marley, dá densidade ao roteiro. Que acaba, aliás, excedendo-se no uso de lembranças do passado. Quantas vezes veremos o menino Robert Nesta – nome civil do filho de mãe preta e pai branco, que não o assumiu – atormentado pelas labaredas que consomem uma plantação?

A parte inicial de “One Love” chega com promessa de contextualização histórico-política. Bob tenta, com sua banda The Wailers (“os lamentadores”), firmar-se no mercado musical jamaicano. Mas o país está em pé de guerra civil. Gangues rivais se confrontam. Libertada do jugo colonial britânico em agosto de 1962, a grande ilha (então com menos de 2 milhões de habitantes) não encontra a paz. Dois grupos partidários – como era comum no tempo da Guerra Fria – lutam pelo poder. O Partido Nacional Popular, de esquerda, teria apoio da URSS e de Cuba. Já o Partido Trabalhista da Jamaica, de centro-direita, teria os EUA (“e a CIA!”) como mentores. E fornecedores de armamento.

Bob Marley tentava unir os dois grupos e, para tanto, contava com a força de sua música. Queria realizar um grande show pela Paz. Mas ele e familiares acabariam vítimas de atentado (muitos tiros foram endereçados à sua residência). Dali em diante, o artista mandaria a esposa (Rita Marley, integrante de trio de vocalistas de seus shows) para os EUA e ele e os Wailers tomariam o rumo da Inglaterra, a ainda influente pátria do rock e de suas derivações. A rebelião punk tomava conta das ruas londrinas.

O filme de Marcus Green não perderá um minuto sequer para desvendar (ou refletir sobre) o intrincado panorama político da Jamaica pós-Independência. E também não perderá muito tempo com os princípios norteadores da crença espiritual de Bob Marley – o rastafarianismo. O nome deriva de pseudônimo do imperador etíope Hailé Selassié (1892-1975): Rás Tafari. No filme, de forma enigmática e simbólica, veremos fugazes imagens do pai branco de Marley, que o rejeitou, substituídas pela figura do imperador Selassié, vestido com seu impecável uniforme militar.

Como o monarca morreria em agosto de 1975, portanto, nos momentos em que a Jamaica era sacudida pela polarização entre socialistas e capitalistas, nada mais natural que Bob Marley se apegasse religiosamente à imagem de seu grande guia espiritual.

Por ser um praticante rastafari, Marley se dava ao direito de consumir marijuana nas quantidades que desejasse. Afinal, a planta é sagrada para a espiritualidade que abraçou. O filme o mostra com seus roliços baseados, sem nenhum proselitismo. Um elemento que fazia (faz) parte (orgânica) do cotidiano dos afro-jamaicanos.

No campo da saúde, nos deparamos com incômodo preceito ligado à religião dos que consideravam Hailé Selassié seu deus reencarnado — não se deve amputar nenhum órgão do corpo de um ser humano. Tal preceito, por mais ilógico que pareça, não merece nenhum questionamento no roteiro do filme. Bob Marley está com uma grave ferida no dedo. Rita e os amigos recomendam que ele vá ao médico. O artista não se incomoda com a pressa dos que o cercam. Acredita, com sua calma costumeira, tratar-se de machucado advindo de alguma topada no futebol, que pratica com imensa alegria. Mas a ferida não se cicatriza.

Finalmente, depois de muita insistência, Bob Marley vai ao médico. Que avisa tratar-se de câncer (melanoma). E recomenda que o artista ampute o dedo, para evitar a metástase. Como a religião rastafari proíbe qualquer tipo de amputação, Bob Marley não tomaria os cuidados necessários e preventivos. Morreria três ou quatro anos depois.

A gravação de “Exodus”, em Londres, seria um divisor de águas na vida do artista e de sua trupe jamaicana. E colocaria o reggae, esse ritmo doce e balançante, no mapa musical planetário. Ditado popular diz que há males que vêm para o bem. A tumultuada saída do músico jamaicano de sua Kingston natal – e da favela de Trenchtown – rumo à meca do rock seria das mais produtivas e estratégicas. Afinal, a ilha de Sua Majestade tinha suficiente peso musical, político e geográfico para transformar Marley num astro. E isto o filme mostra com imensas praças e estádios abarrotados, nos principais mercados da rica Europa.

As melhores sequências do filme trazem os ensaios e a discussão da despojada capa de “Exodus” (que causou desespero no representante da gravadora, que preferia a imagem de Marley em destaque gráfico). E, também, na parte final, vibramos com o retorno da trupe a Kingston (com recepção apoteótica) e a realização de megashow que o compositor-cantor de voz aliciante, finalmente, realizaria em sua terra natal. Consagrado como um deus jamaicano que cativara o mundo, Marley leva ao palco o presidente do país (socialista) e o líder da oposição (pró-EUA). Pelo menos ali, naquele momento, os dois lados faziam questão de estar ao lado do astro.

Para estar de acordo com a sensibilidade de nosso tempo, o roteiro de “Bob Marley: One Love” teria que apresentar personagem feminina forte. Ela será Alpharita Anderson, ou Rita Marley, cubana naturalizada jamaicana, hoje com 77 anos. Mãe de seis dos 12 filhos de Marley (incluindo o cantor Ziggy), ela terá bons momentos no filme. Interpretada por Lashana Lynch (de “A Mulher Rei”), Rita manterá intensa DR com Bob Marley (lindíssimo, na pele do ator britânico Kingsley Ben-Adir). Dirá ao marido e parceiro de lides musicais duras verdades.

O cantor, sempre disponível para muitos amores e filhos fora do casamento, ouvirá Rita dizer que cuida sozinha dos filhos deles e também dos que Marley teve com outras mulheres. Essas outras companheiras do artista não serão vistas em cena. Como a família coproduziu o filme (Rita e Ziggy Marley, em especial), o melhor era mesmo não criar muita firula amorosa, nem política, nem religiosa.

O trabalho de Kingsley Ben-Adir, mesmo sendo ele bonito demais para corporificar o cantor, resulta de bom tamanho. A difícil missão não inibiu o intérprete. Ele estudou o patuá (a mistura de inglês com a força vocabular afro-jamaicana) e treinou gestos e movimentos característicos de Bob Marley. No palco, principalmente, Ben-Adir a todos convence. Com seus dreads, sinal de louvação ao Senhor (primeiro na altura do ombro, depois um pouco maiores) a beleza do ator se fará ainda mais evidente.

Com a inserção de cenas documentais, que arrematam o filme, nos deparamos – 42 anos depois da morte do astro do reggae – com a discreta figura do verdadeiro Bob Marley. Discreta, pois na vida civil ele tinha perfil baixo. Já no palco, era capaz de magnetizar imensas multidões. Pena que tenha morrido tão cedo. E que Reinaldo Marcus Green não tenha conseguido realizar um filme à altura de seu personagem.

 

Bob Marley: One Love
EUA-Inglaterra, 2024, drama biográfico de 104 minutos
Direção: Reinaldo Marcus Green
Elenco: Kingsley Ben-Adir (Bob Marley), Lashana Lynch (Rita), Michael Gandolfini, James Norton, Anthony Welsh, Tosin Cole, Michael Ward, Jesse Cilio, Sheldon Sheperd e Aston Barret Jr.
Fotografia: Robert Eliswit
Coprodução: Brad Pitt
Distribuição: Paramount
Canções presentes no filme: “No Woman no Cry”, “War”, “Exodus”, “Natural Mystic”, “Jamming”, “Redemption Song”, “Three Little Birds”, “Guiltiness”, “Concrete Jungle”, “Lively up Yourself”, “I Shot the Sherif”, “No More Trouble”, “Rastaman Chant”, entre outras

 

FILMOGRAFIA
Reinaldo Marcus Green (Nova York-EUA, 16 de dezembro de 1981)

2024 – “Bob Marley: One Love”
2022 – “A Cidade é Nossa”
2021 – “King Richard: Criando Campeãs” (indicado ao Oscar de melhor filme e premiado pelo desempenho de Will Smith)
2018 – “Monstros e Homens”

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