Prêmio Goya consagra “A Sociedade da Neve” e “Robot Dreams”, os representantes espanhóis no Oscar

Foto: “A Sociedade da Neve”, de Juan Antonio Bayona

Por Maria do Rosário Caetano

A Academia de Cinema da Espanha passou recado explícito à sua congênere hollywoodiana em badalada e concorrida Noite dos Goya: “A Sociedade da Neve”, de Juan Antonio Bayona, sobre tragédia aérea na Cordilheira dos Andes que envolveu prática de canibalismo, e “Meu Amigo Robô” (“Robot Dreams”), de Pablo Berger, ambos candidatos ao Oscar, são os melhores filmes da pátria de Buñuel, Saura e Almodóvar.

A vitória de “A Sociedade da Neve” foi acachapante. Dos 13 prêmios “Goya” disputados pelo épico de Bayoma, 12 foram conquistados (melhor filme, melhor diretor e uma penca de prêmios técnicos. Inclusive o de “maquiagem e cabelos”, categoria em que foi lembrado também pela Academia do Oscar).

O endosso a “Robot Dreams” foi, igualmente, dos mais significativos. Com quatro indicações, venceu em duas – melhor animação (só que, para conquistar o Oscar, terá que derrotar o favorito, “O Menino e Garça”, do japonês Miyazaki), e melhor roteiro adaptado (de graphic novel da norte-americana Sandra Varon).

O longa espanhol que mais indicações recebeu (duas a mais que “A Sociedade da Neve”) – “20.000 Espécies de Abelhas”, da estreante basca Estíbaliz Urresola Solaguren – só triunfou em três categorias, mas todas significativas – melhor diretora de primeiro filme, melhor roteiro original (também de Estíbaliz Urresola) e melhor atriz coadjuvante para a notável Ane Gabarian. Atriz, registre-se, muito conhecida por interpretar (na série “Pátria”), a dilacerada mãe de militantes encarcerados do ETA (Exército Revolucionário do País Basco).

O mestre Victor Erice, de “O Espírito da Colmeia” e “O Sol no Marmeleiro”, chegou à cerimônia do Goya com 11 indicações para “Cerrar los Ojos”. Ganhou apenas uma: melhor ator coadjuvante (José Sacristán). Merecia muito mais. Mas os acadêmicos resolveram abraçar o pragmatismo e apostar todas as fichas nos filmes expostos na vitrine do Oscar.

Por sorte, investiram também na força jovem de Estíbaliz Urresola. Sua estreia no longa-metragem já havia causado excelente impressão no Festival de Berlim 2023, no qual conquistou o Urso de Prata de melhor atriz (para a menina Sofia Otero).

Dois documentários, um deles na disputa pelo Oscar de Hollywood, elaboraram o mesmo tema: o Mal de Alzheimer. “A Memória Infinita”, da chilena Maite Alberdi, foi eleito o melhor filme ibero-americano. Para tanto, derrotou quatro obras ficcionais. Este filme, com grandes chances de triunfar na Noite do Oscar (10 de março), registra o avanço da perda de memória do jornalista e escritor chileno Augusto Góngora, sob o olhar sofrido de sua companheira, a atriz e ex-ministra da Cultura do Chile Paulina Urrutia.

O melhor documentário espanhol – “Mientras Seas Tú, El Aquí y Ahora de Carme Elias”, de Claudia Pinto Emperador, acompanha, ao longo de cinco anos, o processo de perda de memória da atriz catalã Carme Elias. Ela mesma intérprete premiada com o Goya por seu trabalho no filme “Camino” (2009).

O longa francês “Anatomia de uma Queda”, de Justine Triet, que concorre ao Oscar em cinco categorias (incluindo a principal), ganhou o Goya de melhor realização europeia (a Academia Espanhola divide a categoria melhor filme estrangeiro em dois recortes: o ibero-americano e o da Comunidade Econômica Europeia).

“Robot Dreams”, de Pablo Berger

No campo dos atores e atrizes protagonistas, os três concorrentes mais laureados da noite não participaram da disputa: “A Sociedade da Neve”, por ser um filme coral, “20.000 Espécies de Abelhas”, por ter sua protagonista infante (mesmo premiada em Berlim) ignorada, e “Robot Dreams”, por ser uma animação. Triunfaram como melhor atriz Malena Alterio, por “Que Nadie Durma”, de Antonio Méndez Esparza, e como melhor ator, David Verdaguer, arrebatador em “Saben Aquell”, de David Trueba.

Verdaguer interpreta o humorista barcelonês Eugeni Jofra (1941-2001), que lotou teatros por largos anos, com ‘stand up’ corrosivo. Ele era tão obstinado pelo trabalho, que foi apresentar show agendado para o trágico dia da morte (por câncer) de sua mulher e incentivadora, a cantora Conchita Alcaide. Companheira amada e mãe de seus filhos, Conchita morreu, prematuramente, em 1980. Naquele dia de pesado luto, depois de enterrar a esposa, Verdaguer dirigiu o próprio automóvel até cidade interiorana da Espanha, cujo público o esperava, mesmo duvidando que ele aparecesse.

Aos espectadores perplexos, pois sabedores do momento delicado que enfrentava, o iconoclata Eugeni, de chofre, indagou: “Les veo muy sérios. Se les há muerto alguién?”. A turma de Fabio Porchat e tantos praticantes da stand up comedy vão, decerto, fruir esse filme espanhol com imenso interesse.

Saíram sem nenhum troféu da festa do “cabeçudo” (apelido dado pelos espanhóis ao troféu representado por imensa cabeça do pintor Francisco de Goya y Lucientes) os longas-metragens “Un Amor”, de Isabel Coixet, de grande beleza e força narrativa, e o corajoso e inventivo “Atiraram no Pianista”, animação documental de  Trueba e Mariscal. Um filme que mergulha fundo no assassinato do brasileiro Tenório Jr., ocorrido de maneira obscura numa Buenos Aires setentista, que vivia a ante-véspera do triunfo de feroz ditadura militar.

Num dos momentos mais emocionantes da cerimônia dos “Goya”, parte do elenco de “Tudo sobre minha Mãe”, que cercava o cineasta Pedro Almodóvar, repetiu diálogos do filme, lançado há exatos 25 anos. A desbocada personagem Agrado (Antonia San Juan) conversa (no telão) com Huma Rojo (Marisa Paredes).

— “La de pollas que me habré comido yo em lugares publicos sin que el interessado se diera conta” (referindo-se, claro, ao órgão sexual masculino e não à ave doméstica, o frango).

E Huma (Marisa Paredes), já no teatro de Valladolid, sede da gala (tendo ao lado as atrizes Cecilia Roth, Penélope Cruz e Antonia Santa Cruz, além de Almodóvar) repetia seu diálogo:

—“El tiempo que hace que no me como yo una polla”.

Coube à trupe almodovariana entregar o Goya de melhor filme à equipe de “A Sociedade da Neve”.

O diretor de “Carne Trêmula” não se calou no palco, pois sua categoria profissional fôra atacada por Juan García-Gallardo, líder regional do Vox, partido de extrema-direita. Vice-governador de Castela e Leon, García-Gallardo qualificara parte dos que constituem a força da indústria cinematográfica espanhola de “senhoritos” (aproveitadores de verbas públicas e gays).

Direto ao parceiro do direitista PP (Partido Popular), que governa a região, Almodóvar mandou seu recado: “O dinheiro que nós, cineastas, recebemos por antecipação, o devolvemos com acréscimos ao Estado”.

Em nome da Academia, sua vice-presidente, a atriz Suzi Sanchez, posicionou-se contra a violência e o assédio às mulheres: “que a igualdade seja a norma, não a exceção”.

Ao receber seu Goya, Estabalíz Urresola também protestou contra a violência e assédio às mulheres e, em defesa do povo palestino, pediu aos governantes que intervenham na guerra movida por Israel.

A Academia Espanhola entregou dois Goya de Honor, um à atriz Sigourney Weaver e outro ao espanhol Juan Mariné, de 103 anos. E prestou tributo à atriz Concha Velasco, nascida em Valladolid, que partiu, ano passado, aos 84 anos.

O temor de manifestação dos agricultores, que, como os colegas franceses, comandam protestos e mais protestos por todo país, não se concretizou. A “Festa dos Cabeçudos” foi das mais alegres e exitosas. Também, com Almodóvar e suas ‘chicas’ em peso no teatro, como uma cerimônia pode dar errado?

A Academia conhece o poder midiático do manchego. Tanto que atribuiu a ele e às suas estrelas a missão de entregar o Goya de melhor filme à equipe de “A Sociedade da Neve” (disponível na Netflix). Isto, depois de festejar os 25 anos do belíssimo “Tudo sobre minha Mãe”, que, entre outros feitos, encapou a revista Cahiers du Cinéma.

Confira os vencedores:

. “A Sociedade da Neve”, de José Antonio Bayona – melhor filme, direção, ator revelação (Matías Recalt), fotografia (Pedro Luque), montagem (Andrés Gil e Jaume Martins), música original (Michael Giacchino), direção de arte (Alain Bainée), figurino (Julio Suárez), som (Adrados, Tarra e Orts), direção de produção (Margarita Huguet), efeitos especiais (Ana e Belém López-Puigcerver e Montsé Ribé), maquiagem e cabelos (Ana e Belém López-Puigcerver e Montsé Ribé).

. “Meu Amigo Robô” (“Robots Dreams”), de Pablo Berger – melhor filme de animação, melhor roteiro adaptado (Pablo Berger)

. “20.000 Espécies de Abelhas”, de Estíbaliz Urresola Solaguren – melhor diretora estreante, atriz coadjuvante (Ane Gabarian), roteiro original (Estíbaliz Urresola Solaguren)

. “Mientras Seas Tú, El Aquí y Ahora de Carme Elias”, de Claudia Pinto Emperador – melhor documentário

. “A Memória Infinita”, de Maite Alberdi (Chile) – melhor filme ibero-americano

. “Anatomia de uma Queda”, de Justine Triet (França) – melhor filme europeu

. “Que Nadie Durma”, de Antonio Méndez Esparza – melhor atriz (Malena Alterio)

. “Saben Aquell”, de David Trueba – melhor ator (David Verdaguer)

. “Cerrar los Ojos”, de Victor Erice – melhor ator coadjuvante (José Coronado)

. “O Corno” – atriz revelação (Janet Novás)

. “Te Estoy Amando Locamente” – melhor canção original para “Yo Quiero un Amor”, de Rigoberta Baldini.

Goya de Honor

. Para Sigourney Weaver (EUA)

. Para Juan Mariné, diretor de fotografia e restaurador (Espanha)

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