Espanha dá adeus a Carlos Saura, amigo de Buñuel, genro de Chaplin e amante do flamenco

Por Maria do Rosário Caetano

A Espanha assistiria, na noite desse sábado, 11 de fevereiro, à entrega de um Goya de Honor a Carlos Saura, realizador que forma com Luis Buñuel e Pedro Almodóvar a trinca máxima do cinema castelhano. Mas, por capricho do destino, o cineasta morreu nessa sexta-feira, 10 de fevereiro, um dia antes de receber a homenagem da Academia de Artes Cinematográficas da Espanha. A cerimônia, que acontecerá na cidade de Sevilha, entregará aos vencedores de sua trigésima-sétima edição, o Prêmio Goya, popularmente conhecido como “o cabeçudo” (por imprimir em metal a volumosa cabeça do gênio da pintura e da gravura, Francisco de Goya).

A homenagem ao diretor de “Cria Cuervos”, “Ana e os Lobos” e “Bodas de Sangue” será, pois, póstuma. Toda a Espanha festejará a memória de seu filho ilustre, nascido há 91 anos, em Huelva, e radicado em Madri desde a juventude.

Carlos Saura desfrutou de companhias notáveis, ao longo de sua vida, que durou nove décadas, mais de sete delas muito produtivas. O primeiro, entre estes notáveis companheiros de estrada, foi Luis Buñuel (1900-1983), de quem, além de amigo, foi colaborador. Juntos fizeram, inclusive, o filme “Llanto por un Bandido” (1959), no qual o diretor de “Los Olvidados” integrou o elenco. Sim, o “ator” Buñuel contracenou com o conterrâneo Francisco Rabal, com a italiana Lea Massari e o francês Lino Ventura.

A partir de 1967, ao casar-se com a atriz Geraldine Chaplin, hoje com 78 anos, Saura tornou-se genro de Charles Chaplin (1889 – 1977) e pai dos netos do gênio inglês, Shane Saura Chaplin, nascido em 1974. Conviveu com o sogro até que ele morresse, na Suíça, aos 88 anos, num dia de Natal.

O relacionamento conjugal e artístico, este dos mais profícuos, com a filha de “Carlitos” durou quase 12 anos. A amizade prosseguiria pelas décadas seguintes. E deixou patrimônio fílmico dos mais notáveis: sete longas-metragens, alguns deles – em especial “Cria Cuervos” – colocados como pontos altos na carreira do prolífico diretor espanhol.

Saura e Geraldine

Geraldine tinha 22 anos quando fez o primeiro filme com Saura: “Peppermint Frappé”, premiado com um Urso de Prata no Festival de Berlim. Ele tinha 35 anos e consolidava-se como um dos nomes mais importantes da história do cinema espanhol. A atriz lutava para conquistar espaço próprio e não ser vista apenas como  “filha de Chaplin”. Ela, que estreara, criança, em “Luzes da Cidade”(1952), e depois apareceria em “A Condessa de Hong-Kong” (1967), seria notada mundialmente ao interpretar um dos vértices do triângulo amoroso de “Dr Jivago” (os outros eram o egípcio Omar Sharif e a inglesa Julie Christie), épico melodramático de David Lean.

Sua luz, porém, brilharia com mais intensidade quando unisse sua vida à de Saura. Os dois somaram esforços artísticos por mais de uma década, sempre em solo espanhol (Geraldine tem nacionalidade britânica, norte-americana, suíça e espanhola). Foi um período de muitas realizações, descobertas e militância política.

Numa de suas visitas ao Brasil, para participar do BIFF (Festival Internacional de Filmes de Brasília), ao entrevistá-la, pedi que comentasse os anos de vida artística dividida com o cineasta espanhol.

Brincalhona e espevitada, Geraldine Chaplin, em perfeito espanhol, relembrou: “Foi uma fase maravilhosa de nossas vidas. Acreditávamos que podíamos mudar o mundo. Por isto, enfrentamos, de dentro, o Franquismo (a ditadura Franco durou de 1939 até 1976). Não saímos da Espanha. Não éramos como Arrabal (o dramaturgo Fernando Arrabal) que combatia o Franquismo de fora (de Paris). Havia uma guerra (admitiu, com doce ironia) entre os que combatiam dentro da Espanha e os que combatiam de fora”. Para completar: “Tive a sorte de fazer filmes maravilhosos com Saura, como ‘Ana e os Lobos’, ‘Cria Cuervos’, que, creio, é o melhor de todos e não envelheceu, “Mamãe Faz Cem Anos”…

E, sem que eu pedisse, com seu humor brincalhão, ela acrescentou: “O melhor de tudo era que, à noite, eu levava o cineasta para a cama deixando as outras atrizes enciumadas. Na cama eu dizia: ‘e então, amor, que sequência rodaremos primeiro, amanhã?” (soltando gargalhada satisfeita, sob o olhar compreensivo do marido chileno, o diretor de fotografia Patricio Castilla, pai de sua outra filha, Ooana Castilla Chaplin).

Além de Buñuel, Chaplin e Geraldine, Carlos Saura conviveu com o mundo da música erudita e ópera, trabalhando com regentes como Zubin Metha e Daniel Barenboim, com astros da música popular e da dança (Antonio Gades, Camarón de la Isla, Paco de Lucia, Estrella Llorente, Laura del Sol) e atores de primeira grandeza (Carmen Maura, Isabelle Adjani, Hanna Schygula, Francisco Rabal, Fernando Rey, Omero Antonutti, Antonio Banderas, Lambert Wilson e Eusebio Poncela). Mas, registre-se, Saura nunca correu atrás de atores famosos para rechear seus elencos. Entre os 50 longas e curtas-metragens que realizou, muitos eram (são) documentários. E, mesmo em suas ficções, apostou diversas vezes em rostos desconhecidos do grande público.

Carlos Saura continuou trabalhando incansavelmente até seus últimos dias. Sua filha Anna cuidava da pré-produção de longa documental que seria dirigido pelo pai, sobre Rosalía, a voz que vem hibridizando e renovando o flamenco. Aos 30 anos, a cantora, depois de fazer carreira na Espanha, radicou-se nos EUA. Não houve, porém, tempo para materializar o projeto.

Com significativa frequência, Saura recebia convites para realizar documentários que somassem música e dança, pois sua Trilogia Espanhola (“Bodas de Sangue”, “Carmen” e “Amor Brujo”) foi exibida, com sucesso, nos cinco continentes. Na própria Espanha, ele realizaria “Flamenco”, “Sevilhanas” e, mais uma vez, voltaria ao ritmo e dança que conformam a alma espanhola (“Flamenco, Flamenco”, 2020).

Produtores argentinos correram atrás dele e da parceria nasceu “Tango” e “Zonda, Folclore Argentino” (este sobre ritmo pouco conhecido fora das fronteiras do país de Maradona). Portugal também atraiu Saura para dirigir “Fado” (2007). Até o “Samba” brasileiro tentou seduzir o espanhol. Mas o projeto não chegou a bom termo.

Há que registrar-se que, nestes e em outros projetos, figura um gênio da fotografia que foi parceiro constante de Saura: o italiano Vittorio Storaro (Woody Allen, que amava trabalhar com Carlo Di Palma, também, buscou as valiosas luzes de Storaro). Como o cineasta espanhol fôra fotógrafo, ele sabia da importância da imagem. Com Storaro, parceiro privilegiado de Bertolucci, o diretor de “Goya em Burdeos” construiu parceria histórica e fertilizadora. A dupla experimentou tudo que pudesse experimentar.

Em seus últimos anos, já quase nonagenário, Carlos Saura dirigiu um longa institucional (encomenda do Banco Santander), sobre o arquiteto Renzo Piano, “O Arquiteto da Luz”. Quem quiser assistir ao filme, basta acessar o acervo da Reserva Imovision (streaming). Embora seja obra de encomenda, o documentário soma valores e é recomendado a estudantes de Arquitetura. Em seu último ano de vida, Saura dirigiu o curta-metragem “Rosa Rosae – Uma Elegia à Guerra Civil Espanhola”.

Além de filmes, responsáveis por sua fama na Espanha e além fronteiras, Saura deixa seu nome impresso em óperas, peças teatrais, espetáculos musicais e em livros, inclusive de fotografia.

 

FILMOGRAFIA (principais títulos)
Carlos Saura Atarés (Huesca, 04/01/1932 – Madri, 10/02/2023)

Fase realista:

1958 – “Cuenca” (documentário)
1959 – “Los Golfos”
1959 – “Llanto por un Bandido”
1965 – “La Caza”

Com Geraldine Chaplin:

1965 – “Peppermint Frappé”
1968 – “Stress, Es Tres Tres
1969 – “La Madruguera”
1970 – “Ana e os Lobos”
1975 – “Cria Cuervos” (com Ana Torrent)
1978 – “Olhos Vendados”
1977 – “Elisa Vida Minha”
1979 – “Mamãe Faz 100 Anos”

Trilogia Espanhola:

1981 – “Bodas de Sangue”
1983 – “Carmen”
1986 – “Amor Brujo”

Filmusicais:

1992 – “Sevilhanas”
1995 – “Flamenco”
2007 – “Fado”
1998 – “Tango”
2020 – “Flamenco, Flamenco”
2015 – “Zonda, Folclore Argentino”

Filmes históricos:

1987 – “Eldorado”
1990 – “Ay, Carmela!” (com Carmen Maura)
1999 – “Goya en Burdeo”
2001 – “Buñuel e a Mesa do Rei Salomão”

Filmes premiados em Berlim, Cannes e com o Goya:

1965 – “La Caza” (A Caça) – Urso de Prata de melhor diretor (Berlim)
1965 – “Peppermint Frappé” – Urso de Prata em Berlim
1973 – “A Prima Angélica” – Prêmio Especial do Júri em Cannes
1975 – “Cria Cuervos” – Prêmio Especial do Júri em Cannes
1977 – “Elisa, Vida Minha” – Melhor ator em Cannes (Fernando Rey)
1980 – “Deprisa, Deprisa” – Urso de Ouro em Berlim
1983 – “Carmen” – Prêmio do Júri em Cannes
1990 – “Ay Carmela!” (13 troféus Goya)
1999 – “Goya em Burdeos” (5 troféus Goya)

One thought on “Espanha dá adeus a Carlos Saura, amigo de Buñuel, genro de Chaplin e amante do flamenco

  • 11 de fevereiro de 2023 em 18:55
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    Saura nació en Huesca (Aragón), no en Huelva (Andalucía)

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