Gonzaga De Luca, o intelectual da exibição, diz que Bollywood e Nollywood não servem de modelo para o Brasil

Foto: Gonzaga De Luca © Luiz Joaquim/Recife

Por Maria do Rosário Caetano

Luiz Gonzaga De Luca, o comandante da rede Cinépolis no Brasil, é o que podemos chamar de “intelectual da exibição”. Ele sabe tudo de cinema. Em termos teóricos e práticos. É doutor em cinema pela USP e graduado em Administração Pública pela FGV, a poderosa Fundação Getúlio Vargas.

Administrador do braço brasileiro da influente rede exibidora mexicana, nascido em Barretos há 68 anos, já passou pelo cineclubismo, pela Embrafilme, pelo grupo Severiano Ribeiro e já queimou muitos neurônios em noites de estudo. Sim, Gonzaga é realmente um intelectual. Já publicou muitos livros e artigos.

Sua tese de doutorado refletiu, no calor da hora, sobre “Mudanças e Transformações para um Novo Cinema”. Seus livros – “Cinema Digital, um Novo Cinema” e “A Hora e a Vez do Cinema Digital – Globalização e Democratização do Audiovisual” – também refletiram sobre as profundas mudanças trazidas pelas novas tecnologias.

Por isso, a Revista de CINEMA resolveu entrevistar esse interiorano, que chegou à capital paulistana aos 18 anos, para sequenciar seus estudos e aqui viveu uma grande aventura. Que, em determinada fase, estendeu-se até o Rio de Janeiro.

Nossa conversa colocou em pauta, além do tema principal – o circuito exibidor brasileiro e a crise que ele atravessa –, a Índia e sua poderosa e dançante Bollywood, a Coreia do Sul e seus filmes e séries da hora, chegando até a Nigéria e sua Nollywood. Afinal, estes países (Índia e Coreia), com suas indústrias tão prósperas, podem nos servir de espelho?

E a Nigéria? Este país do Terceiro Mundo tem algo a nos ensinar?

E o circuito Cinépolis, dotado com salas Macro XE, de excelente qualidade, geralmente reservadas para blockbusters estrangeiros? Quando filmes de arte brasileiros terão acesso a espaços de tamanha exuberância técnica?

Aproveitamos, também, para recordar a passagem de Gonzaga De Luca, descendente de italianos da Calábria, pela Embrafilme dos anos em que a empresa tinha presença significativa no market share, chegando (com nossos filmes) a 30% do mercado exibidor.

Nas décadas pós-Embrafilme (desmontada pelo Governo Collor, em março de 1990), o máximo a que chegamos foi 22%, em 2003. Depois, os números caíram para 17, 15, 11% (queda brutal na era Bolsonaro). Com a pandemia, se aproximaram do 1%. Fazê-los crescer é desafio de grandes proporções. E tema essencial dessa longa conversa com o jovem que, de 1977 a 1984, integrou o time dos “meninos de ouro” da Embrafilme.

Claro que o streaming entrou na pauta. Afinal, ele está na ordem do dia. Gonzaga De Luca vai pontuar, numa de suas respostas, que “num ambiente altamente competitivo como é o audiovisual, com empresas multisetoriais, não se terá, hoje, um cinema forte sem concepções atuais e flexíveis”. A discussão se “dará com grandes conglomerados que têm múltiplos interesses como telefonia, streaming, franchise, licenciamento e exploração de satélites”.

Um lembrete: a mexicana Cinépolis administra, no Brasil, 57 cinemas, que agrupam 429 salas, sendo a segunda maior operadora cinematográfica do país, com cerca de 13% da frequência e 15% do Box Office”.

Revista de CINEMA – Gonzaga, como o cinema entrou na vida de um menino nascido num município interiorano, terra de rodeios?

De Luca – Eu nasci em Barretos, em 1954, portanto numa década em que se ia muito, mas muito mesmo, ao cinema. Havia três salas no município, com grande diversidade de filmes oriundos das mais diversas cinematografias. Cada cinema exibia quatro filmes por semana. E a gente via tudo que podia. Aos 18 anos fui estudar Administração na FGV, em São Paulo, o que foi muito importante para minha formação profissional. Não apenas pelo aprendizado inerente ao currículo, como pelas oportunidades que surgiram. Havia um grande auditório, com equipamentos de projeção 35mm. Procurei a Cinemateca Brasileira para discutir o que poderíamos fazer. Lá encontrei um grupo de cineclubistas e estudantes de cinema. Entre eles estava o Felipe Macedo que liderava o movimento cineclubista em São Paulo. A partir deste contato, iniciamos o Cineclube CAAE, o Centro Acadêmico da escola, que promovia muitos eventos, shows do Circuito Universitário, palestras, peças de teatro, tudo no mesmo auditório. O Cineclube foi um grande sucesso, chegando a ter seis sessões semanais com três diferentes filmes. Passei a participar do movimento cineclubista aproximando-me do presidente do CNC (Conselho Nacional de Cineclubes), que era o Marco Aurélio Marcondes. Reativamos a Federação Paulista de Cineclubes e fundamos a distribuidora Dinafilmes. A FGV foi fundamental na minha formação profissional de forma bem ampla. Primeiro, pelo próprio programa curricular, mas, principalmente, por tocar o cineclube em seu cotidiano e, também, por ser monitor de ensino do Centro Audiovisual da Escola, que era coordenado pelo Prof. Isidoro Blikstein. Neste centro técnico tive a possibilidade de aprender a fotografar, trabalhar em laboratório fotográfico, a filmar, fazer gravações etc., propiciando a formação para o meu futuro primeiro emprego, na implantação do Centro Audiovisual da Fundap (Fundação do Desenvolvimento Administrativo). Quando Gustavo Dahl assumiu a Sucom (Superintendência de Comercialização da Embrafilme), ele contratou profissionais de mercado. Marco Aurélio Marcondes foi chamado para atuar como consultor. Caberia a ele implantar um dos sistemas de controle da Distribuidora, que seria coordenada pelo Alberto Flaksman, tendo como estagiário o Rodrigo Saturnino Braga.

Revista de CINEMA – Um time novo que chegava cheio de energia, disposto a tudo para promover o cinema brasileiro…

De Luca – Exatamente. Corria o ano de 1977 e a Embrafilme, junto com o MEC, iria promover a Mostra Nosso Cinema 80 anos. Marco Aurélio ficou responsável por montá-la no Rio, BH e alguns estados do Nordeste. Eu fui contratado para montá-la em São Paulo, Campinas, Santos, Curitiba e Porto Alegre. A mostra foi uma grande experiência, pois fazia com que tivéssemos que fazer a logística de cópias, o faturamento, a promoção e publicidade, o transporte e a hospedagem da orquestra (que tocava com o filme “Ganga Bruta”, do Humberto Mauro, tendo como regente o fantástico flautista Copinha), fazer a divulgação nas cidades e negociar com os exibidores a programação e publicidade.

Revista de CINEMA – Essas mostras que homenageavam a memória do cinema brasileiro foram muito importantes nas décadas de 1970 e 1980. E a Embrafilme acabou formando grandes quadros para a exibição, que, depois, acabaram sendo cooptados pelas “majors”…

De Luca – Um comentário de Luiz Carlos Barreto sobre esse assunto virá daqui a pouco… Antes quero lembrar o que se passou no final da década de 1970. Com a sucessão de Roberto Farias, ao término do Governo Geisel (1974-1979), Gustavo Dahl deixou a Sucom. Seu substituto foi o Marco Aurélio (Marcondes). A presidência da Embrafilme foi, então, ocupada pelo diplomata Celso Amorim, que não eliminou a filosofia e o planejamento deixados por Dahl na distribuidora. Fui chamado para trabalhar na matriz da empresa, no Rio de Janeiro. A nova diretoria da Embrafilme era composta por Celso Amorim, Samuel Pinheiro Guimarães e Carlos Augusto Calil. Na Sucom, tivemos, sem dúvida alguma, a melhor equipe que conheci na distribuição cinematográfica – Marco Aurélio na direção, Jorge Corrêa na Gerência Nacional de Vendas, Sebastião Martinez na Supervisão Sul, Rodrigo Saturnino Braga na Controle e Administração e eu na Promoção e Propaganda. Dois experientes profissionais transferindo conhecimentos para três garotos esfomeados para conhecer e inovar. E chegamos ao comentário de Luiz Carlos Barreto: um dia ele me disse que perder esta equipe foi o maior erro cometido durante a desmontagem da Embrafilme. Em países desenvolvidos, estes profissionais formados na empresa estatal valeriam uma fortuna, tanto é assim que, em pouco mais de dez anos, eles (estes profissionais) foram convidados para dirigir a Warner, a Colúmbia, a Fox, o Consórcio Severiano Ribeiro-Marcondes e a FJLucas-Empresa Sul Paulista de Cinemas (embora todos tivessem um olhar formado no cinema brasileiro). No final de 1981, Marco Aurélio transferiu-se para uma nova área de atuação institucional da Embrafilme. Celso Amorim me promoveu para a Superintendência de Comercialização. Dirigi a distribuidora até abril de 1984, quando saí da empresa, devido às divergências com a nova administração, que tinha como presidente, Roberto Parreira. Neste período, a Sucom já vinha perdendo quadros para o mercado, que reconhecia o talento da equipe. Fui trabalhar no marketing e produção de filmes de Mauricio de Sousa (em referência a este período, há uma dissertação de mestrado de Fábio Gonçalves Mendes (UFF) – “Black & White & Color (1975-1993) – Outras Histórias de um Estúdio de Animação Brasileiro”). Fiquei na Black até o final de 1987.

De Luca, no canto inferior esquerdo, na inauguração do Kinoplex Campinas, em 2002, com ex-funcionários da Embrafilme e Carlos Diegues (o 3º da esquerda para direita, em pé)

Revista de CINEMA – E do trabalho com o Mauricio de Sousa você partiu para grupos de exibição privados, até chegar à poderosa Cinépolis.

De Luca – Foi um longo percurso. Meu próximo passo foi atuar na FJLucas, uma das pioneiras na distribuição de homevideo, que era uma das donas do Circuito Sul Paulista de Cinemas, que tinha como proprietários Chiquinho Lucas e Paulo Sá Pinto. A Sul-Paulista era dona, também, de 50% da Art Films. Foi lá que construí e equipei os meus primeiros cinemas. Importante foi a experiência na implementação dos primeiros projetores digitais (Barco 8.100, tecnologia LCD) nos cinemas pornográficos Windsor, Dom José e Largo Treze. Técnicos da matriz da Barco me disseram que foram os primeiros testes com este tipo de tecnologia em cinemas operando “full-time” no mundo. A Sul Paulista foi vendida em 1995 para a Playarte.

Revista de CINEMA – Em que momento você sentiu vontade de retomar sua carreira acadêmica?

De Luca – Foi em meados dos anos 1990. Com os conhecimentos obtidos na instalação de cinemas, decidi voltar a estudar, ingressando no mestrado da Escola de Comunicações e Artes (ECA-USP). Propus pesquisa na área de construções e tecnologias (“A Sala de Cinema: Critérios para uma Sala de Exibição Moderna”, sob orientação do Prof. Mario Arturo Guidi, defendida em 2000). Tal pesquisa foi continuada no doutorado na mesma Escola, com a tese “Cinema Digital: Mudanças e Transformações para um Novo Cinema”.

Em 1997, fui contratado pelo Grupo Severiano Ribeiro para compor a diretoria da empresa. Participei da associação com a UCI, na qual compartilhei conhecimentos da construção de multiplexes e megaplexes europeus e, também, das primeiras experiências efetivas do cinema digital já com a tecnologia DLP Cinema, que seria adotada mais tarde para todos os cinemas. 50 cinemas no mundo instalaram esta tecnologia para a exibição de “Fantasia 2000”. Em 2001, a Severiano Ribeiro teria instalada esta tecnologia em três cinemas do circuito (Itaim-São Paulo, São Luís-Rio de Janeiro e Kinoplex-Campinas). Permaneci no GSR até 2010, sendo que no último ano fui promovido a Diretor-Superintendente, chefiando a empresa em sua reestruturação. Em 2010, após sair do Kinoplex, fui consultor da Riofilmes na implementação do Cinema Brasília, no Complexo do Alemão. Em 2011, fui contratado pela Cinépolis, para dar suporte à implementação, contratação de cinemas e construção de suas salas cinematográficas. Em abril de 2015, fui promovido a presidente da Cinépolis Brasil. A empresa possui, hoje, 57 cinemas com 429 salas, sendo a segunda operadora de cinemas do país com cerca de 13% da frequência e 15% do Box Office do Mercado. Durante esta trajetória, participei de diversas comissões de seleção de filmes (BNDES, TV Cultura, Petrobras, Ancine, BRDE), fui membro do Comitê Gestor do FSA e do Conselho Superior de Cinema, vice-presidente da Feneec – órgão federado de exibidores e da Abraplex, associação dos exibidores. Ministrei em cursos de pós-graduação na FGV (São Paulo, Rio e Curitiba), na UFRJ (regulação do audiovisual) e na ESPM. Coordenei a primeira turma do curso de pós-graduação Gestão do Entretenimento na FGV-Rio.

Revista de CINEMA – Formado pela FGV, com mestrado e doutorado pela USP, livros publicados. É comum um profissional com tais características no meio exibidor brasileiro? Ou você é mesmo uma ‘avis rara’ no setor?

De Luca – No Brasil isto era uma raridade. A ausência de profissionais voltados à administração e gestão empresarial ainda é uma grande lacuna na indústria cinematográfica brasileira, fazendo com que os profissionais do audiovisual sejam obrigados a buscar as ferramentas necessárias para as atividades intrínsecas ao setor. A Embrafilme foi um celeiro de profissionais através de plano de contratação de estagiários e trainées, chegando a ter mais de 15 recém-formados pela EBAP – Escola Brasileira de Administração Pública da FGV do Rio de Janeiro. Outros profissionais que saíram da FGV-SP foram André Sturm (que reabriu o Cineclube da GV e hoje comanda a Pandora e o Belas Artes) e Patrícia Kamitsuji (executiva que dirigiu a Fox e a Universal no Brasil). A experiência na equipe da Embrafilme foi muito importante. Falávamos a mesma linguagem e, mesmo com diferentes concepções do que deveria ser a distribuidora, tocávamos a mesma música em um movimento harmônico de orquestra. Na Cinépolis, constatei que, no exterior, é bem diferente. A contratação e desenvolvimento de profissionais para administrar a empresa são itens valorizados, propiciando bolsas de estudo e contratando profissionais das melhores universidades. O ambiente diverso é favorável à discussão. Tomando como exemplo, numa palestra interna da Cinépolis, assisti à apresentação de Anita Elberse, autora do livro “Blockbusters”, que me fez entender mudanças impactantes na produção de filmes na indústria norte-americana. Nos cursos que ministrei no Film & Television Business na FGV, senti a diferença de linguagem entre os diversos segmentos profissionais. Lembro que havia um grupo de alunos que trabalhavam em bancos comerciais e que queriam conhecer as técnicas de cálculo de taxa de retorno de investimentos e apuração de lucratividade (TIR e Ebitda), quando a maior parte da classe não tinha sequer conhecimento contábil básico. Isto tem refletido nos projetos que analisei em comitês de seleção que não tinham pé nem cabeça quando tocavam nestes aspectos.

 

A contratação e desenvolvimento de profissionais para administrar a empresa [Cinépolis] são itens valorizados, propiciando bolsas de estudo e contratando profissionais das melhores universidades. O ambiente diverso é favorável à discussão

 

Revista de CINEMA – Você foi cineclubista, participou da pequena Dinafilmes, da FJLucas, da Sul e, depois, integrou o “time de ouro” da Sucom-Embrafilme, que levou o cinema brasileiro a ocupar 30% de seu mercado interno. Hoje nosso market share caiu para menos de 2%. Como você vê o papel desempenhado por esta equipe reunida na Sucom em torno de Gustavo Dahl? É possível, frente às imensas dificuldades trazidas pela pandemia e pelo crescimento dos serviços de streaming, sonhar com taxas de 20 a 25% para a produção nacional em seu mercado interno (que é o único de que ela dispõe)?

De Luca – Houve diferentes momentos na Sucom. Eu vivi a etapa com o Gustavo Dahl dirigindo e, depois, com a melhor equipe que vi na indústria cinematográfica brasileira (Marco Aurélio, Rodrigo Saturnino, Jorge Corrêa, Sebastião Martinez e eu). Cada um desempenhava uma parte da atividade e, talvez o mais importante, vivendo um laboratório de experimentações que, infelizmente, foi levado para as outras empresas, principalmente para as majors. O Luiz Carlos Barreto tentou articular a semiprivatização da distribuidora nos mesmos moldes da Petrobras-BR para não perder este grupo para outras empresas. Tanto a administração do Marco Aurélio, como a minha e, ainda, a que Marco Aurélio e Rodrigo Saturnino fizeram, quando voltaram à empresa na gestão de Carlos Augusto Calil, seguiam a concepção original do Gustavo. Muito me orgulha ter sido um “Gustavo-boy”. Em meu período de Sucom, quando as coisas ficavam confusas ou difíceis, pegava o telefone e me aconselhava com diversas pessoas, obrigatoriamente com ele. Não tenho a mínima dúvida que Marco Aurélio e Rodrigo tenham feito o mesmo. Até para sair da Embrafilme, tive rodadas de conversas com o Gustavo. Acho que o Gustavo foi uma extensão do Paulo Emílio – um braço operacional dele. A mais feliz conjugação entre teoria e prática.

As cinematografias que vão bem, no período de recuperação pós-pandemia são aquelas que têm um cinema nacional forte: Coreia, Japão, China, Índia, Indonésia, Alemanha, Austrália… Sem o filme nacional há um teto que é impossível ultrapassar. É o limite do filme internacional (para não dizer norte-americano). O Rodrigo tem a teoria que o cinema nacional é que faz a diferença na frequência dos cinemas. A elasticidade do mercado se passa pelo filme nacional. Porém, os modelos que estão por aí, dificilmente propiciarão fortes avanços. Tem que se ter uma política linear, planejada, sem mudanças radicais a cada instante ou gestão. O projeto desenvolvido pelo Geicine (1962), tinha muitos problemas, mas era coerente e lógico. Com o tempo, poderia ser ajustado. Foi implantado pelo INC, foi dinamitado pela Embrafilme. As boas experiências do Instituto foram jogadas no lixo. O mesmo aconteceu com a Embrafilme. Se houve avanço técnico e operacional, foi na distribuidora. Esta experiência foi jogada no lixo, junto com os profissionais mais habilitados no mercado (posso falar assim sem querer me autoavaliar, porque eu já não estava na Embrafilme, há muito tempo).

 

As cinematografias que vão bem, no período de recuperação pós-pandemia são aquelas que têm um cinema nacional forte: Coreia, Japão, China, Índia, Indonésia, Alemanha, Austrália… Sem o filme nacional há um teto que é impossível ultrapassar. É o limite do filme internacional (para não dizer norte-americano)

 

Revista de CINEMA – Houve um bom momento no começo dos anos 2000. Chegamos a 22% do mercado interno em 2003…

De Luca – Sim. Com a terra arrasada, Gustavo Dahl desenvolveu um novo plano estratégico no Gedic, um esboço constitutivo para a Retomada. Após ter 2002, 2003 e 2004 maravilhosos, tanto no aspecto comercial, quanto no artístico, vamos assistir ao desmonte deste projeto que já tinha sido dilapidado pela retirada do setor televisivo na edição da Medida Provisória 2228-1. Logo mais, o plano do Gedic não existia mais, como se não valesse nada a dedicação, o esforço e a experiência em sua concepção por alguns dos melhores profissionais da indústria cinematográfica. A centralização das atividades na Ancine, praticamente destruindo a Secretaria Audiovisual é um exemplo disto. Só se perdeu com a confusão de funções e a não-especialização das atividades. A separação das atividades é clara na MP 2228-1. Num ambiente altamente competitivo como é o audiovisual, com empresas multissetoriais como são os estúdios, hoje, não se terá um cinema forte sem concepções atuais e flexíveis. A discussão será com grandes conglomerados que têm múltiplos interesses como de telefonia, do streaming, do franchise, do licenciamento, da exploração de satélites etc. É dito que, em dez anos, será a maior indústria do mundo, superando a automobilística. Ter uma distribuidora forte como foi a Sucom da Embrafilme não será representativa como foi na década de 1970-1980. A Paris/Downtown já tem um market share muito maior que a Embrafilme teve. Na Embrafilme, nunca superamos 40% de participação entre as distribuidoras de filmes brasileiros. A Paris/Downtown tem mais de 90%. Um modelo atual passaria apenas pela distribuição de filmes. Esta será apenas mais um elo do sistema.

No meu livro publicado “A Hora do Cinema Digital – Democratização e Globalização do Audiovisual” (2009), eu já apontava que as discussões sobre o mercado cinematográfico estavam tomando um rumo bastante complicado. Apresentava, inclusive, um gráfico sobre a presença da NBC-Universal dentro da GE, então o maior conglomerado industrial e financeiro do mundo. Para minha surpresa, o caminho da globalização que apontava estava certo, porém, as dimensões econômicas que acreditava são muito maiores que expus. Neste mesmo livro, citava que o Brasil não estava preparado para um momento da “convergência” que se avizinhava. Sequer tinha entrado na economia eletrônica do homevideo, que é o avô do streaming.

 

Num ambiente altamente competitivo como é o audiovisual, com empresas multissetoriais como são os estúdios, hoje, não se terá um cinema forte sem concepções atuais e flexíveis. A discussão será com grandes conglomerados que têm múltiplos interesses como de telefonia, do streaming, do franchise, do licenciamento, da exploração de satélites etc. É dito que, em dez anos, será a maior indústria do mundo, superando a automobilística

 

Revista de CINEMA – Em dezembro passado, no Festival Aruanda (na Paraíba), cineastas e produtores brasileiros ficaram encantados ao ver seus filmes projetados na maior e melhor sala do Cinépolis Manaíra: a Macro XE. Há poucas salas desse tipo no Brasil. Trata-se de um similar azteca das salas Imax de outros circuitos? Este tipo de sala “top” é o futuro da exibição no Brasil? As salas de ruas estão mesmo condenadas? O futuro do cinema estará reduzido às salas de ingressos caríssimos?

De Luca – Gosto muito do Festival Aruanda. Somos parceiros há muitos anos. Temos dezenas de salas Macro XE no Brasil. Praticamente todos os cinemas da Cinépolis têm uma sala desta. São salas com, no mínimo, 300 assentos com telas maiores que 16,5 metros. Elas correspondem às salas XD da Cinemark, à KinoEvolution, do Kinoplex (Severiano Ribeiro), UCI XPlus, à Cinépic, da Cinesystem. Todas as empresas possuem salas com telas Large Format, isto é, com mais de 15 metros. A Cinemark não tem salas Imax, fez um trabalho de marketing exaustivo com o XD por mais de cinco anos, configurando que o XD equivale à Imax. Não é uma realidade. As salas com telas Large Format nada mais são que salas com projetores mais potentes, proporcionais ao tamanho das telas. O Imax é um sistema que exibe filmes rodados ou convertidos no formato que tem uma proporção de tela diferente (mais alta do que as demais, indo do chão ao teto), com dois projetores especiais e um sistema de som diferenciado, baseado no antigo e famoso Surround (aquele do filme “Terremoto”, exibido no saudoso Cine Comodoro Cinerama). No Brasil, os operadores de Imax são a UCI, Kinoplex, Espaço Itaú e a Cinépolis. O formato 3D que está sendo retomado com “Avatar”, com projeção em HFR (High Frame Rate), em 48 quadros por segundo, tende a levar os filmes para as salas com maiores telas. Há poucos países em que o 3D estivesse funcionando antes deste lançamento. O Brasil é o principal deles. Mais de 60% do público assistiu este filme em 3D nas duas primeiras semanas de lançamento. Não é uma tendência mundial. Temos que esperar o futuro para ver se o HFR significa uma retomada do 3D.

Sala Macro XE da Cinépolis

Com a diminuição da janela de exibição (prazo de lançamento entre o cinema e o streaming), a tendência será de lançar filmes em um maior número de salas. Os cinemas de rua estão condenados a morrer. Um filme que foi lançado em única sala e teve resultados muito ruins representará um prejuízo de 100%. Se for em uma multiplex, as demais salas podem compensar o prejuízo. Um prejuízo impossível de ser reposto. Há um ditado no setor de exibição que cinema é como avião – aquele lugar que não foi vendido, não tem como ser reposto. Se o risco de um cinema com poucas telas é muito maior, temos outros aspectos que pioram a subsistência de um cinema de rua – por exemplo, as despesas de ar-condicionado de uma única sala, como o antigo Marabá, são equivalentes às despesas das cinco atuais salas. O número de funcionários em um cinema de uma única sala crescerá apenas duas vezes para um cinema de duas salas. Da mesma forma, tem-se o comportamento das outras despesas. O cinema de rua não tem chances de sobreviver sem patrocínios, como ocorre com o Belas Artes ou ocorreu com o Odeon. Quanto ao ingresso ser caro, é uma tendência mundial. Os cinemas antigos não se modernizavam por 40 ou 50 anos. Quando instalamos o Dolby Surround no Marabá (1992), usamos o mesmo projetor da inauguração do cinema (1944). Hoje, sabemos que um projetor digital custa U$ 60 mil, tem uma vida útil de menos de 10 anos, manutenção cara e necessita de monitoramento. Tudo isto custa muito dinheiro. Em 1992, o Marabá não tinha ar-condicionado. Hoje, a energia e a manutenção de ar-condicionado custam entre 6 e 10% das bilheterias de um cinema. No Nordeste e na região Norte, não há como funcionar um cinema sem o uso total de refrigeração, mesmo que nos períodos mais frios. Trabalhando desta forma, dificilmente o equipamento superará um prazo de 10 anos de vida. Outros custos como a limpeza de uma sala pesam muito – nos cinemas de rua havia uma única pessoa limpando o espaço no período da manhã. Atualmente, a “limpeza profunda” se inicia na madrugada e se continua fazendo limpezas parciais no intervalo entre todas as sessões. É só calcular as diferenças de custos. Os custos da limpeza de um cinema de uma sala com 1.000 lugares são os mesmos de um multiplex com muitas salas se for feita a limpeza em cada sessão. Cinema só será barato se houver uma política de subsídios e patrocínios à compra de ingressos. É mais um aspecto que necessita ser revisto, a começar com uma discussão séria sobre a meia-entrada, um conceito introduzido em 1945, que permanece, fazendo a festa demagógica de um monte de gente. Há municípios que cedem a meia-entrada para doadores de sangue (a OMS – Organização Mundial de Saúde desaprova qualquer benefício a doadores, porque camufla a venda de sangue) e, por incrível que pareça, há municípios que dão meia-entrada até para datiloscopista, o técnico que retira as impressões digitais para fazer documentos de identificação. Em alguns municípios brasileiros, há gratuidade para idosos, como se fosse uma concessão pública como transporte ou saúde. Nestes casos de serviços essenciais, os proprietários de ônibus ou hospitais são ressarcidos pelo governo. O cinema, que é atividade comercial, não tem ressarcimento.

Há de tudo: municípios, estados e a União, qualquer uma das competências federativas podem criar direitos de 50% de desconto no preço do ingresso. Por que 50%? Por que não 70% ou 30%? De onde se tirou esta fórmula mágica? Nenhum outro país tem leis que cedem descontos obrigatórios. Os exibidores oferecem vantagens, como o passe anual na França, para fidelizar seus clientes. Competem entre si para oferecer as melhores vantagens ao cliente. No meu entendimento, o incentivo e subsídio ao ingresso do cinema são os “pulos do gato” na relação entre o cinema brasileiro e o crescimento da participação do filme brasileiro nos cinemas. Há diversas formas e experiências que mostram que este é um caminho a ser trilhado com objetividade, com alto grau de acerto. No audiovisual de hoje, considerar que o conjunto de filmes brasileiros chegará às telas por conta da obrigatoriedade de exibição ou através do marketing de lançamento é um engano. São formulações antiquadas que, se aplicadas apenas sob o grau de imposição ou promoção, não terão sucesso. A sala de cinema deve ser uma parceira. A obrigatoriedade sem compensações coloca o empresário contra o filme brasileiro.

 

Com a diminuição da janela de exibição (prazo de lançamento entre o cinema e o streaming), a tendência será de lançar filmes em um maior número de salas. Os cinemas de rua estão condenados a morrer. Um filme que foi lançado em única sala e teve resultados muito ruins representará um prejuízo de 100%. Se for em uma multiplex, as demais salas podem compensar o prejuízo. Um prejuízo impossível de ser reposto

 

Revista de CINEMA – Por que o Brasil, um país tão grande e com 215 milhões de habitantes, não consegue se aproximar do desempenho de países como França e Coreia do Sul? Na sua opinião, o que tem permitido este boom do audiovisual coreano?

De Luca – A Coreia é um caso muito específico. Gostaria de conhecer mais, porém, as informações que tenho são aquelas que li na coletânea da Alessandra Meleiro (“Cinema no Mundo”) e no resumo da tese de doutorado da Luana Rufino, diretora da Ancine. Conheci muitos aspectos deste país através de discussões internas na Cinépolis. Como a empresa não está neste mercado, não consigo ter referências operacionais como tenho da Índia e da Indonésia, onde a Cinépolis atua. Pelo que depreendo destas leituras, temos um modelo introduzido nos anos 1970, muito parecido com o do INC – Instituto Nacional de Cinema, que foi se adaptando com o tempo, trazendo investidores e se ligando aos grandes grupos. Na exibição, por exemplo, há um grande exibidor (CGV, que está na Coreia do Sul, Vietnã, Indonésia e EUA) que faz parte de um conglomerado industrial. Foi fundada pela Samsung, que saiu da sociedade no final dos anos 1990. O funcionamento do produto nacional na Coreia, que se estendeu do cinema para a TV por assinatura e, posteriormente, para o streaming, é a prova que planos como os desenvolvidos pelo Geicine ou pelo Gedic, devem ser seguidos, fazendo os acertos conforme a realidade e os resultados, o que nunca aconteceu no Brasil.

Este é um exemplo do que ocorre na Coreia, grandes empresas se formaram a partir da produção de filmes nacionais e outras grandes empresas investiram nas atividades cinematográficas, muitas vezes, atuando em todos os setores do audiovisual. O desenvolvimento da indústria voltada a grandes plateias cria situações que favorecem a produção de produtos menores. É difícil ter um sistema que se sustenta em uma perna só, a não ser em países como a Indonésia, onde um único exibidor tem uma participação de quase 75% do mercado. Ele propicia que haja uma produção nacional forte (supera 40% do mercado), porém suas regras são leis. Princípios básicos como a exibição semanal inexistem neste mercado (o filme pode ser retirado no primeiro dia ruim de rendas). Alguns produtores têm grandes arrecadações ao se associar com este exibidor ou, mesmo, de programar seus filmes com os outros dois operadores. Porém, é um sistema único moldado naturalmente conforme as necessidades deste mercado.

Revista de CINEMA – O que você acha que o Brasil tem a aprender, por exemplo, com a Índia, a mais produtiva e poderosa indústria cinematográfica da parte oriental do mundo?

De Luca – Neste mercado tenho referências mais específicas que em outros, visto que a Cinépolis atua lá. Creio que tenhamos muito pouco ou quase nada a aprender, pois é um mercado específico, formulado diante da cultura e das necessidades indianas. Tem-se mais de uma dezena de línguas e religiões majoritárias, o que não permite a formação plena de um sistema de comunicação de cobertura nacional, especialmente a televisão. Exploram-se nichos para uma população imensa (1,2 bilhão de pessoas). Para se ter uma ideia, a Cinépolis tem um cinema com quatro salas que faz mais de 1 milhão de ingressos por ano. As sessões começam de manhã e vão até a madrugada.

Há ausência de outras formas de lazer e cada região é como se fosse outro país. Bollywood é a base dos grandes cinemas com uma produção vibrante, direcionada ao gosto do público das grandes cidades, em geral com mais elevado grau cultural. Fala-se que o público não vai aos grandes cinemas para assistir a um filme, mas sim, para dançar e cantar. É uma outra composição cinematográfica. Algo que lembra happenings. Nos subúrbios e nas cidades menores, os filmes são exibidos em formatos mais precários, mesmo com simples DVDs, atendendo a um público específico. São fatores diversos que têm que ser observados sob um prisma específico, porque até mesmo a composição das castas interfere na programação de filmes e na operação dos cinemas. É importante lembrar que, diferentemente do Brasil, a Índia não fechou os cinemas de rua. As salas modernas instaladas em multiplexes não chegam a ser 20% das salas existentes, sendo que o consórcio PVR e INOX (com a participação da australiana Village Roadshow) tem metade do mercado de multiplexes. Outros oito importantes circuitos, entre eles a Cinépólis, exploram este mercado mais sofisticado. Há mais de 9.000 salas que operam em condições mais simples, principalmente nas cidades menores e subúrbios de metrópoles com equipamentos e instalações baratos, que atendem aos segmentos de mais baixa renda e, principalmente, aos nichos linguísticos ou religiosos. Este mercado já existiu no Brasil e foi extinto pelos altos custos de instalação e de operação de um cinema. O filme “Cine Holliúdy”, do Halder Gomes, mostra este mercado, no qual produtores como Roberto Mauro, José Mojica Marins, Francisco Cavalcanti, Tony Vieira, entre tantos outros, dominavam.

Filmes de Bollywood são direcionados ao público das grandes cidades, em geral com mais elevado grau cultural

A padronização pelo sistema de exibição com equipamentos DCI tirou todas as possibilidades de ter continuidade a este perfil de público das cidades menores. Os esforços dos órgãos do governo brasileiro se voltaram ao segmento dos multiplexes em shoppings. O mercado indiano, na atual conjuntura do setor de exibição brasileiro, pouco pode se refletir ao Brasil, onde os cinemas de rua cerraram suas portas, sendo ocupados por outros estabelecimentos comerciais. Cinemas de shopping têm a mesma vocação dos cinemas multiplexes da Índia, direcionados às cidades maiores (que têm potencial de ter um shopping center na cidade), com restrições sobre o perfil de programação, preços e acesso destinados a outras faixas de mercado, onde a programação de filmes norte-americanos disputam as telas com os filmes de Bollywood.

A apropriação brasileira de um modelo semelhante aos cinemas que não estão em shoppings na Índia exige uma reflexão maior sobre o que se deseja, especialmente para produtos mais sofisticados em termos de linguagem, como é a grande maioria dos filmes brasileiros. É só comparar os filmes brasileiros com os filmes produzidos na Boca nos anos 1970 e 1980, pelos produtores que citei. Trata-se de uma discussão que avança o próprio aspecto das salas de cinema indo em direção de questões do gosto popular e dos canais de circulação do produto cultural.

Um aspecto a se destacar encontra-se na penetração do cinema indiano em outros países da Ásia. Com a imigração de mão-de-obra para os países petroleiros, importa-se filmes para atender este segmento. Mesmo nos EUA, Inglaterra e Austrália, a exibição destes filmes é muito frequente.

 

Há de tudo: municípios, estados e a União, qualquer uma das competências federativas podem criar direitos de 50% de desconto no preço do ingresso. Por que 50%? Por que não 70% ou 30%? De onde se tirou esta fórmula mágica? Nenhum outro país tem leis que cedem descontos obrigatórios. São formulações antiquadas que, se aplicadas apenas sob o grau de imposição ou promoção, não terão sucesso. A sala de cinema deve ser uma parceira. A obrigatoriedade sem compensações coloca o empresário contra o filme brasileiro

 

Revista de CINEMA – Os EUA e seus satélites (Inglaterra, Austrália, Canadá de língua inglesa, Nova Zelândia) continuarão como força hegemônica do cinema mundial por longas décadas? Ou a China vai crescer? Está crescendo ao menos no Oriente?

De Luca – A indústria norte-americana é a base econômica da exibição no Ocidente, tendo grande participação no mercado dos países europeus e das Américas. Tem, também, forte participação nos países asiáticos, porém, com menor intensidade. Na China, há uma maior participação do filme nacional devido às limitações impostas para a importação de seus títulos e pelo “fechamento” da grande maioria da população aos signos ocidentais; na Coreia e na Indonésia há forte penetração do filme nacional. No Japão, o cinema local também tem boas performances. Na França, Alemanha, Suécia e Austrália há significativa participação do filme nacional.

A globalização promoveu grandes mudanças no mercado internacional. Basta ver a penetração dos animes no Ocidente, assim como de conteúdos coreanos junto aos jovens. Ao mesmo tempo, diretores e produtores bem-sucedidos em seus países realizam seus filmes debaixo do guarda-chuva dos grandes estúdios. Basta ver o número de diretores mexicanos ou indianos que trabalham atualmente em Hollywood.

A concepção da indústria nacional de conteúdos não tem o mesmo formato das décadas anteriores. Os anos de ouro da indústria cinematográfica se deram entre os anos 2000 e 2010, com o avanço da comercialização de vídeos, neste caso, com a introdução do DVD. Em termos práticos, entre 1983 (ano da introdução do selo de identificação do Concine) e 2010 (declínio do homevideo), um período de quase 40 anos, não se estabeleceu nenhuma política, seja incentivo, seja regulação que favorecesse o filme brasileiro, que não fosse a cota de tela nas salas de cinema. Nos dez anos subsequentes, felizmente, houve a regulação da televisão por assinatura, que beneficiou os produtores e que tem permitido a produção para a plataforma e para o streaming. Por outro lado, não houve a consolidação de um sistema industrial de produção, chegando a uma situação em que ocorre a falta de estúdios para filmar, faltem câmaras, equipamentos de finalização, iluminação e, pior, técnicos para atender as demandas que estão surgindo. A maioria dos que seriam prováveis estúdios de produção atua como se fossem subcontratados das plataformas, produzindo sob encomenda, desenvolvendo para a produção determinada pelo contrato e não como estúdios com capacidade para atender todas as demandas do audiovisual.

Revista de CINEMA – Por que a Coreia do Sul, um país asiático de idioma “intransponível”, cultura bem diferente da Ocidental, consegue diálogo com o mundo, ganha um Oscar (“Parasita”) e coloca séries bombadas no streaming? Já a China, país também de língua e cultura bem diferentes da Ocidental, não consegue colocar seus filmes nos cinemas da Europa e das Américas? Por ser um país que pratica espécie pragmática de socialismo-capitalista?

De Luca – Não creio que seja um problema da estrutura política dos países. Acho que está mais associado ao “modismo” que as plataformas digitais promovem, que estão diretamente vinculadas ao uso da internet. Os produtores de filmes chineses estão voltados ao mercado chinês. As limitações de uso de internet na China reduzem sua difusão. Não sou nenhum expert em cinema chinês, mas entendo que a produção chinesa é destinada principalmente à ocupação de seu mercado interno, que é o maior do mundo em termos não só de frequência como de faturamento, atingindo em 2019, quase 10 bilhões de dólares contra 8,5 bilhões dos EUA. O mercado de exibição cinematográfica na China está em expansão e o norte-americano em contenção, tendo as duas maiores empresas exibidoras em delicadas situações financeiras.

Os filmes chineses são realizados conforme os padrões locais, buscando a atender seu público, sem grandes esforços de exportação. Basta ver que, embora seja a cinematografia mais assistida no país, não há um único representante comercial dos estúdios chineses no Brasil. Nunca fui procurado por diplomatas ou comercializadores destes filmes. Lembro-me que a antiga URSS tinha uma representante comercial (a saudosa CIDEF do Sr. Borghetti), que lançou entre os anos 1950 e 1970, os títulos mais importantes do país. Em São Paulo, existiram dois cinemas que exibiam apenas filmes soviéticos, o Eden e, posteriormente, o Flamingo, na Rua Aurora. A cinematografia mexicana teve forte atuação no Brasil, com sua distribuidora para exportação, a Pelmex, que não só distribuía sucessos como os filmes de Cantinflas, María Félix e Miguel Acejas Mejia, como teve um circuito de porte no Rio de Janeiro. Porém, a importância do mercado chinês é tamanha atualmente, que os filmes norte-americanos são cada vez mais desenhados para atender ao mercado chinês. Se o filme é selecionado para ser exibido na China, o seu faturamento internacional pode ser maior do que o do mercado de língua inglesa.

Revista de CINEMA – Em recente debate promovido pela Apaci, você descartou o modelo Nollywood (da Nigéria). Desqualificou-o como modelo para qualquer país que sonhe com uma indústria audiovisual digna de tal definição. Afirmou que não existe indústria audiovisual na Nigéria, país que deve ultrapassar o Brasil, em população, em breve. Por que a Nigéria não é modelo para ninguém? 

De Luca – A Nigéria gera produtos baratos e destinados ao homevideo. Não existem salas de cinema no país. A exibição pública se dá com equipamentos domésticos em ambientes abertos e sem instalações fixas (bancos de madeira, cadeiras de plástico etc.). São sistemas de exibição, com os quais cheguei a trabalhar nos anos 1970 e que já se encontravam em declínio no Brasil. Eram os cinemas itinerantes ou de associações que projetavam películas 16mm. Nunca se soube quantos existiam no país. Os legalmente registrados no INC e, depois, na Embrafilme eram cerca de 400 empreendimentos. Somando os que operavam como clubes, associações, vilas industriais, canteiros de obras, igrejas etc., num chute sem grande base, deviam superar facilmente a casa do milhar. Em minha cidade natal, havia o Cinema do Frigorífico, instalado junto ao complexo industrial do Frigorífico Anglo, que tinha uma grande “vila de trabalhadores da empresa”. Tinha sessões de sexta ao domingo. Só fui uma vez neste cinema, que ficava retirado da cidade. Já descrevi em um livro a sensação que tive ao ver um cinema com piso de cimento chapiscado, cadeiras de madeira e um platô no centro da sala, onde havia confortáveis poltronas que eram ocupadas pela diretoria do Frigorífico. Todos ingleses. Esta formulação não existe mais no Brasil. A TV aberta e o videocassete substituíram este tipo de cinema. É uma grande pena, porque ele buscava o segmento de público mais popular que sustentava a produção nacional, como a dos filmes da Boca do Lixo, os do cangaço e de fenômenos regionais, como Teixeirinha e Mazzaropi. Um fato que certa vez me chamou a atenção foi que os filmes de Mazzaropi eram fracassos absolutos na cidade do Rio de Janeiro, mas faziam sucesso na Baixada Fluminense. Os filmes mexicanos eram tão bem-sucedidos nos subúrbios do Rio e na Baixada, que a Pelmex teve o mais importante circuito desta região. Nesta questão da replicação do cinema nigeriano por aqui, leva-nos a uma outra questão que foi a digitalização no Brasil, financiada pelo FSA apenas no padrão DCI, não privilegiando a formação de cinemas voltados ao público regional. Por que um exibidor que tem o projetor DCI vai exibir um filme produzido em sua região se pode lançar simultaneamente o mesmo blockbuster que está sendo lançado com o maior estardalhaço nas principais salas do país?

O modelo exibidor vigente no Brasil, em cinemas instalados nos mais de 1.000 shoppings centers do país (conforme classificação da Alshopp), busca o público das grandes capitais e cidades médias de maior poder aquisitivo. Um produto com a qualificação do filme nigeriano não seria competitivo com os filmes produzidos pelos estúdios norte-americanos e, mesmo, com os filmes brasileiros produzidos com elenco das grandes redes de TV e das plataformas digitais.

Produção audiovisual de Nollywood é focada no mercado de homevideo

Revista de CINEMA – Como você vê as políticas públicas implantadas pela Ancine nos governos Lula e Dilma? Que projetos deles deram certo e quais deram errado?

De Luca – Há projetos que devem ser destacados, principalmente durante a gestão de Lula. Porém, desviou-se da proposição do Gedic, impondo um modelo mal desenhado. Como já ponderei, a desvalorização da Secretaria do Audiovisual e a centralização de todas as atividades do Audiovisual na Ancine foi um grande erro. Não considero uma boa ideia misturar o evento, o produto cultural com o produto industrial como se fossem uma coisa só. Esta parece ser a briga eterna no cinema brasileiro que nunca vai ter um termo comum. Já li dezenas de textos, alguns incríveis, como “Cinema, Estado e Lutas Culturais”, de José Mário Ortiz Ramos (1983), e “O Pensamento Industrial Cinematográfico Brasileiro”, de Arthur Autran (2013). O antagonismo das atividades irmãs parece-me que não é mais uma discussão sustentável. O estudo do Gedic e a MP 2228-1 já encaminhavam uma solução para este dilema. Mais do que nunca o filme é um produto industrial, replicável, seja através de mídias como ocorre com o DVD e, mais ainda, através da transmissão de sinais (streaming). É uma questão que debato há mais de 25 anos e parece que há uma resistência sobre isto no meio acadêmico. Numa banca de doutorado da qual participei, em 2008, foi questionada esta minha colocação. Isto ocorreu no auge da exploração do homevideo. Um dos membros da banca não reconhecia que o filme é um produto industrial, embora naquele momento a principal difusão do filme se dava através da locação e venda por DVD, mídia elaborada em linha de montagem de fábrica. Diversos filmes tiveram mais de 1 milhão de cópias replicadas, o que em termos genéricos quer dizer, fabricados.

Creio que há uma outra discussão necessária – a separação entre arte e entretenimento. Para mim é difícil entender que o Estado deva incentivar a exibição de um filme de super-heróis. Pode-se argumentar um monte de premissas que podem a chegar até a me acusar de preconceito, principalmente de se oferecer o acesso dos mesmos produtos às camadas mais pobres da população. Acho isto populismo. Continuo achando que estes filmes são entretenimento por mais repletos que sejam de criações artísticas. Se quiser, vamos encontrar arte até mesmo na embalagem de cigarros. Não creio que não deva se apoiar e incentivar a produção de filmes de entretenimento. Porém, as condições deste financiamento devem ser diferentes do filme mais restrito, mais voltado aos nichos de mercado.

Durante o regime militar, a Sunab (Superintendência Nacional de Abastecimento) controlava os preços dos cinemas e dos estádios de futebol, sob o lema de que cinema e futebol eram os principais meios de lazer da população, portanto, deveriam ser tabelados. O resultado foi a falta de investimento na atividade de exibição e o fechamento de milhares de cinemas que passaram a ser mais rentáveis como locações comerciais. Assistir a um filme brasileiro nas telas do cinema era um sacrifício. Não se conseguia entender absolutamente nada do que estava sendo exibido. Conheci o sistema de som do Gazetinha, que tinha uma única caixa de som central, isto é, se assim pudéssemos chamar, porque era um único alto-falante dentro de uma lata de óleo de 20 L.

Vejo nestas confusões, grande parte dos equívocos que ocorrem nas políticas públicas, inclusive no período de existência da Ancine. Não consigo entender o projeto do Cinema Perto de Você que pelo Plano de Diretrizes e Metas deveria, por exemplo, estimular a existência de 10 exibidores nacionais com mais de 100 salas. Ficou-se muito longe do número desejado. Se apenas neste item se previa a existência de 1.000 novas salas (o projeto atingiu cerca de 250 salas apenas), expandiram-se circuitos que não trouxeram nenhuma vantagem para o sistema produtivo e para a distribuição como um todo e, ainda, para o acesso ao cinema pela população. O aumento da frequência foi marginal e criou um endividamento para alguns exibidores tradicionais, que, até hoje, brigam por uma solução.

Outro projeto que me incomoda: a digitalização das salas no Brasil. Fomos pioneiros no cenário mundial. Havia um momento em que as experiências da Casablanca com o Kinoplex e a UCI e o sistema RAIN atendiam mais de 100 salas distribuídas pelo país. No meu entendimento, a digitalização deveria ser híbrida com os dois sistemas. Neste ponto, voltamos às lições que os cinemas na China, Índia e Nigéria podem nos transmitir. Existe o “cinema do multiplex” e existe o “cinema popular barato”, com este último estimulando a experiência regional, local, do “arredor”. O melhor exemplo encontra-se no Ponto Cine com sua experiência que envolve diretamente sua comunidade (infelizmente, o Ponto Cine não está aberto).

Eu discutia muito estes aspectos com o Leopoldo Nunes, quando ele estava na Secretaria do Audiovisual do MinC. Seu plano de “espaços culturais” estava diretamente ligado ao segundo modelo de digitalização.

Discutiu-se no governo, por alguns anos, o que se fazer, saindo de uma premissa de que seria possível adotar para os filmes das majors, o padrão RAIN. No final adotou-se o inverso – os cinemas, inclusive as pequenas salas, adotaram o padrão DCI. Perdeu-se toda a experimentação que o Brasil teve anteriormente, destruiu-se o sistema alternativo e se adotou um sistema de financiamento baseado no modelo norte-americano com um integrador intermediário. O resultado é catastrófico. Sendo um dos últimos países a adotar a digitalização, mesmo tendo a mais ampla experimentação, os financiamentos foram centralizados, ficaram difíceis de ser obtidos e em condições muito piores que os exibidores de outros países tiveram. É a digitalização mais cara que houve e os exibidores/integrador estão devendo quase 40% do montante financiado. Pior, os grandes exibidores internacionais já estão fazendo upgrades e substituição dos equipamentos, enquanto os brasileiros buscam postergações e condições para terminar de pagar os equipamentos, devendo ter, ainda, dois ou três anos de dívidas.

A questão de acessibilidade é outro ponto com o qual não concordei desde que participei da Câmara Técnica de Acessibilidade em 2018. Fui voto vencido e se implantou um sistema caro, mais uma vez, baseado nos padrões DCI. Voltou-se à discussão em 2022 e a MPA, embora não represente administrativamente nenhum estúdio e não possa tomar decisões por eles, teve assento na Câmara Técnica.

Parece-me que há processos esquizofrênicos nestas decisões. Tentou-se impor “sistemas de projeção alternativos e de baixo custo” para as “majors” e se acabou impondo caríssimos projetores a todos os cinemas inclusive os “alternativos”. Uma lâmpada para estes projetores custa no mínimo U$ 1,000 e necessitam ser trocadas a cada mil horas de projeção, ou seja, um pequeno cinema terá que comprar quatro lâmpadas por ano, além de pagar a caríssima manutenção deste tipo de projetor.

 

Há projetos que devem ser destacados, principalmente durante a gestão de Lula. Porém, desviou-se da proposição do Gedic, impondo um modelo mal desenhado. A desvalorização da Secretaria do Audiovisual e a centralização de todas as atividades do Audiovisual na Ancine foi um grande erro. Não considero uma boa ideia misturar o evento, o produto cultural com o produto industrial como se fossem uma coisa só. Esta parece ser a briga eterna no cinema brasileiro que nunca vai ter um termo comum

 

Revista de CINEMA – A maior parte dos seus livros (e artigos) tem a ver com a revolução digital, que trouxe profundas mudanças ao mundo do cinema. O mais conhecido deles, “Cinema Digital – Um Novo Cinema?” (2004), atualizou o audiovisual brasileiro com questões prementes. Suas ideias foram ouvidas, levadas em conta na elaboração de políticas públicas?

De Luca – Decidi trabalhar sobre a questão técnica da exibição, porque vinha trabalhando com a construção e reforma de cinemas desde os anos 1980. A Embrafilme assumiu os cinemas da Cooperativa de Cineastas e tivemos que fazer reformas e manutenção em velhos cinemas deteriorados. A partir disto, retomei a construção e recuperação de cinemas na Sul-Paulista e a literatura era parca. Optei por desenvolver uma pesquisa de mestrado sobre o tema, assustando-me, mais uma vez, com o despreparo entre a realidade e as políticas públicas. O CTAV (Centro Técnico Audiovisual), em 1987, redigiu uma norma que foi publicada pela ABNT sobre construções de cinemas baseada nas normas ISO. Num país onde sequer era possível importar equipamentos novos, estabeleciam-se padrões que eram superiores aos que as normas SMPTE, a sociedade de engenheiros de cinema e televisão norte-americana, para os “Cinemas de segunda linha” dos EUA.

Estas normas nunca foram obedecidas e tinham enunciados que só quem nunca construiu ou operou um cinema, pensa que é possível adotar. Por exemplo, o nível de ruído interno do cinema estabelecido na norma não era encontrado sequer na maioria dos estúdios de mixagem de filmes do país. A disposição de poltronas em “tandem” estabelecia uma disposição totalmente desalinhada que quebra a harmonia visual da sala de exibição, além de perder dezenas de poltronas numa sala. Participei diretamente na construção e reforma de quase 700 cinemas instalados no país e, até hoje, surpreendo-me quando vejo esta norma técnica descolada da realidade brasileira.

Já me disseram diversas vezes que o meu livro “Cinema Digital”, de 2005, foi o primeiro livro publicado sobre o tema. Apenas o livro “Understanding Digital Cinema”, uma coletânea de artigos organizada por Charles S. Swartzé, é contemporâneo a ele (2005). Não tive, realmente, referências bibliográficas, pois elas não foram encontradas na época. Entrevistas, manuais, catálogos, artigos foram a base da tese, mesmo numa época em que a internet era lenta e com poucas referências depositadas. Neste livro e, depois, no livro de 2009 (“A Hora e a Vez do Cinema Digital…”), citei diversas experiências, uma delas, as dos “cinemas alternativos” da RAIN, dos pontos de difusão, do Ponto Cine. Tivemos como resultado o aniquilamento das possibilidades da abertura de um maior número de salas disponibilizadas para um público “mais popular”. Por isso mesmo, vejo com dificuldades de se adotar em 2023 as lições que os cinemas coreano, japonês ou indiano poderiam ter nos transmitido há décadas. Temos que ter planos de maior prazo e que sejam adotados e corrigidos conforme evoluem. Não é possível dinamitar o que foi feito no passado, assim como, não é possível querer que os parâmetros sejam imutáveis.

Os trabalhos do Geicine e do Gedic foram dinamitados em pouco mais do que um par de anos. São exemplos a não se seguir. Dar continuidade e evoluir nas políticas públicas voltadas ao audiovisual são mais do que nunca recomendáveis. As cinematografias do Japão, Coreia, Austrália, Alemanha e França são alguns modelos que comprovam que este é o caminho mais indicado.

 

LIVROS E COLETÂNEAS

2005 – “Cinema Digital, um Novo Cinema”
2009 – “A Hora e a Vez do Cinema Digital – Globalização e Democratização do Audiovisual”
“Cinema Digital e 35mm: Técnicas, Equipamentos e Instalação de Salas de Cinema”.

COLETÂNEAS

2011 – “Film & Television Business” (com Rodrigo Saturnino Braga e Iafa Britz)
2000 – “Cinema, Desenvolvimento e Cultura”, de Paulo Sérgio de Almeida e Pedro Butcher (capítulo: “Anotações para o Desenvolvimento de Uma Indústria Cinematográfica Brasileira”)
2008 – “Embrafilme e o Cinema Brasileiro”, organização de André Gatti (capítulo: “A Estatal do Cinema” – As 5 Embrafilmes)
2010 – “Cinema e Mercado” (vol. III , org. por Alessandra Meleiro) – (capítulo: “Do Monopólio ao Pluripólio”)

Articulista do “Jornal do Vídeo”

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