Duas diretoras, Eliza Capai e Jialing Zhang, conquistam os principais prêmios do É Tudo Verdade

Por Maria do Rosário Caetano

O júri brasileiro da vigésima-oitava edição do Festival É Tudo Verdade, formado com os cineastas Ana Petta e Paulo Fontenelle e com o crítico José Geraldo Couto, escolheu “Incompatível com a Vida” (foto), dirigido pela paulista Eliza Capai, como o melhor longa nacional. E atribuiu menção honrosa, ao épico político “Morcego Negro”, do veterano Chaim Litewsky e de Cleisson Vidal.

Já o júri internacional (composto com a dinamarquesa Camilla Nielsson, o polonês Pawel Lozinski e argentina Virna Molina) escolheu “Confiança Total”, produção germano-holandesa, ambientada na China Continental e dirigida pela jovem Jialing Zhang. A menção honrosa ficou com o polonês “Pianoforte”, de Jacub Piatek.

Na categoria curta-metragem, os vencedores foram “Mãri Hi – A Árvore dos Sonhos”, de Morzaniel Iramari, realização brasileira ligada ao universo Yanomami, e “Ptitsa”, de Alina Maksimenko, produção que uniu Ucrânia e Polônia. Os quatro vencedores nas categorias principais – longas e curtas brasileiros e internacionais — estão pré-habilitados a disputar vaga no Oscar de melhor documentário.

Ao contrário dos dois últimos anos, quando a derrota de filmes como “Segredos do Putumayo”, de Aurélio Michiles (2021), e “Sinfonia de um Homem Comum”, de José Joffily (2022), causaram polêmica, a premiação desse ano, não deve despertar grandes paixões. As duas competições – a brasileira e a estrangeira – contaram com bons e ótimos filmes, mas nenhum arrebatador.

Depois de assistir aos sete brasileiros e aos doze internacionais, pressenti que os dois filmes femininos (o que venceu, de Eliza Capai, e o de Susanna Lira, “Nada sobre meu Pai”) levavam vantagem. O cinema de matriz essencialmente política, caso de “Morcego Negro”, não anda em alta. Mesmo assim, o filme da dupla Litewski e Cleisson levou o segundo prêmio.

Já na categoria internacional, me afeiçoei ao sérvio “Não-Alinhados: Cenas dos Rolos de Labudovic”, de Mila Turajlic, realizadora de 43 anos. Embora pareça apenas o retrato de um velho cinegrafista de Tito, presidente que uniu por décadas a hoje esfacelada Iugoslávia, o filme é muito mais que isso. É uma declaração de amor ao poder do cinema, aos missionários das imagens, àqueles que correram mundos documentando povos e culturas. Como Joris Ivens e Santiago Alvarez. E ficaria nisso se Mila não partisse para o poderoso recurso  (tão brechtiano) da reflexividade. Ela põe o próprio cinema em questão, ao mostrar como imagens e sons podem se prestar às mais diversas utilizações e manipulações. Pena que o filme tenha passado batido.

Outro documentário sobre o cinema e seus artífices —  no caso Jean-Luc Godard — também me encantou: “Godard Seul le Cinéma”, de Cyrill Leuthy. Mas este incluí na lista dos “sem chance”, pois nada que se refira a JLG satisfaz aos seus exigentes admiradores. Estudiosos, cinéfilos, palpiteiros, todos sem exceção, estão sempre insatisfeitos. Pois eu saí da sessão competitiva tão feliz quanto saíra de sessão do segmento informativo. Aquele que exibiu em tela grande a formidável série “História(s) do Cinema”. Em especial do programa que encerrou-se com o “episódio” dedicado pelo franco-suíço a Gianni Amico e James Agge – “A Moeda do Absoluto”. Ao evocar o milagre do Neo-Realismo italiano, um dos mais cerebrais cineastas do mundo banhou seu olhar em pura emoção.

No campo do cinema urgente, sôfrego, com um quê de paranóia, não se pode esquecer “Rezando pelo Armaggedom”, da norueguesa Tonje Hessen Schei. Curioso que uma mulher tenha se metido num mundo dominado por tantos homens, a maioria malucos – pastores inclusive – armados até os dentes em nome da fé.

Os filmes “hollywoodianos” da competição também foram encantadores. Caso das cinebiografias do malucaço Little Richard e do simpatia-pura Michael J. Fox, o baixinho canadense.

Vamos combinar que muitos cineastas estão sem saber quando terminar seu filmes. Finais redundantes vão e voltam. Repisam, reafirmam, dizem o já dito. O caso mais grave é o do filme do astro homoafetivo do rock. Mesmo assim, como resistir a figura tão apaixonante quanto Little Richard? E o sexagenário Michael J. Fox? Que aula de humor, de simpatia, mesmo estando ele tomado por doença (o Parkinson), que o acomete desde os 29 anos. O ator leva quedas e mais quedas, se submete aos mais difíceis tratamentos, mas nunca pede piedade a ninguém. Em maio próximo, o filme chegará ao streaming (Apple TV).

Vamos, pois, após essas breves considerações, nos ater às justificativas dos júris oficiais sobre as razões de suas escolhas.

“Incompatível com a Vida”, o filme que discute a interrupção da gravidez em casos permitidos pela lei (mas questionados por fanáticos religiosos), foi escolhido “pela coragem de mergulhar de maneira pessoal e poética em tema delicado e urgente, trazendo à luz a realidade de muitas mulheres e a urgência da discussão sobre direitos reprodutivos no Brasil”.

A menção honrosa a “Morcego Negro” foi motivada “pela consistência do trabalho de pesquisa e articulação de rico material que nos ajuda a compreender a história recente do país”.

“Mãri Hi – A Árvore dos Sonhos” foi eleito o melhor curta “por nos proporcionar olhar imersivo e poético no imaginário do povo yanomami e sua relação com a natureza”. (Atenção: este filme ficará disponível no Itaú Play entre zero hora dessa segunda-feira, 24 de abril,  até 23h59 de 25 de abril).

A menção honrosa a “Ferro’s Bar” foi motivada pelo “resgate de momento decisivo na história do movimento lésbico brasileiro, em especial no atual contexto de recrudescimento da intolerância”.

O júri internacional justificou a premiação do longa-metragem “Confiança Total” sem medir palavras: “através de poderosa narrativa observacional, o filme nos leva a sistema sufocante de controle, no qual tecnologia e ideologia constroem um ‘mundo perfeito’. Mundo no qual segurança e ordem estão acima da vida humana”. E mais: “o filme apresenta cenas de valor documental dramático único, mas sem jamais perder o respeito por seus protagonistas e preservando sua dignidade humana diante da câmera”. Como disse Primo Levi, sobrevivente de Auschwitz, ‘as consciências podem ser seduzidas e obscurecidas novamente, até mesmo as nossas consciências’. E este documentário é um testemunho disso”.

A menção honrosa a “Pianoforte” recebeu justificativa igualmente entusiasmada: “Nos encantamos com sua forma cinematográfica e composição precisa. O talentoso diretor, através de retratos íntimos de vários jovens pianistas, nos permitiu entrar no fechado mundo do esforço musical para contar uma história sobre paixão, esperança e amor pela música. Essa maratona de piano não se arrasta por um momento sequer. Acompanhamos a luta interior dos personagens com emoção, de modo que, ao final, sentimos que às vezes uma derrota pode significar uma verdadeira vitória”.

Para o curta “Ptitsa”, a trinca internacional escreveu: “o premiamos pela sensibilidade cinematográfica na construção da história. Por transformar um retrato da vida mãe-e-filha durante a pandemia em reflexão profunda sobre a existência humana. Por capturar a beleza da simplicidade em sua estreia no cinema”.

Os interessados em assistir a sete dos curtas-metragens da competição brasileira devem sintonizar o streaming do Itaú Cultural Play, dessa segunda-feira, 24, até 30 de abril.

A 29ª edição do Festival É Tudo Verdade já tem data marcada para 2024: de quatro a 14 de abril. Anote em sua agenda.

Confira os vencedores:

LONGA-METRAGEM

. “Incompatível com a Vida”, de Eliza Capai (São Paulo, Brasil) – melhor longa brasileiro, Prêmio EDT (Associação de Profissionais de Edição Audiovisual) – melhor montagem (para Daniel Grinspum)

. “Confiança Total”, de Jialing Zhang (Alemanha, Holanda, filmado na China) – melhor filme internacional

. “Morcego Negro” (São Paulo, Brasil), de Chaim Litewsky e Cleisson Vidal – menção honrosa (filme brasileiro)

. “Pianoforte”, de Jacub Piatek (Polônia) – menção honrosa (filme internacional)

CURTA-METRAGEM

. “Mãri Hi – A Árvore dos Sonhos”, de Morzaniel Iramari – melhor curta brasileiro, Prêmio Mistika (R$ 8.000 em serviços de pós-produção digital).

. “Ptitsa”, de Alina Maksimenko (Ucrânia, Polônia) – melhor curta internacional

. “Ferro’s Bar”, de Aline Assis, Fernanda Elias, Nayla Guerra e Rita Quadros – menção honrosa (curta brasileiro)

. “Vãnh gô tô Laklaño”, de Bárbara Pettres, Flávia Person, Walderes Coctá Priprá – Prêmio Canal Brasil de Curtas (Troféu Canal Brasil, R$15 mil e exibição na emissora)

. “Todavia Sinto”, de Evelyn Santos– Prêmios EDT (Associação de Profissionais de Edição Audiovisual) – melhor montagem (para Evelyn Santos)

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