“Nada sobre meu Pai” e “Incompatível com a Vida” dão vigor à safra brasileira do Festival É Tudo Verdade

Foto: Cena de “Nada sobre meu Pai”, de Susanna Lira

Por Maria do Rosário Caetano

O júri brasileiro da vigésima-oitava edição do É Tudo Verdade – Festival Internacional de Documentários, formado com os cineastas Ana Petta e Paulo Fontenelle e com o crítico José Geraldo Couto, tem ingrata missão pela frente. Afinal, terá que escolher apenas um entre os sete ótimos concorrentes do mais importante festival de documentários da América do Sul. O evento, que prossegue até domingo, 23 de abril, com exibições gratuitas em São Paulo e Rio, qualificará o vencedor a disputar vaga entre os semifinalistas ao Oscar da Academia de Artes e Indústria Cinematográfica de Hollywood.

Este ano, não há títulos como “Segredos do Putumayo”, de Aurélio Michiles, e “Sinfonia de um Homem Comum”, de José Joffily, produções talhadas – pelo tom épico e alcance de suas narrativas – a dialogar com plateias internacionais. O primeiro discutia o extermínio de populações indígenas destinado à abertura de novas fronteiras para o capitalismo colonialista. O segundo, a guerra dos EUA e (poucos) aliados em nome do combate ao terror, mas em verdade uma absurda invasão do Iraque, problemático país do Oriente Médio.

A safra de longas brasileiros desse ano não traz grandes temas universais. É, porém, composta com documentários que enchem os olhos por suas qualidades formais e por suas temáticas relevantes. Se um deles, o escolhido, não for compreendido pelos jurados da Academia de Hollywood, paciência.

Dois dos sete concorrentes são dirigidos por mulheres – “Nada sobre meu Pai”, da carioca Susanna Lira, de 48 anos, e “Incompatível com a Vida”, da paulista Eliza Capai, de 41. Dois fortíssimos candidatos ao prêmio do ETV 28.

A experiente Susanna Lira, diretora de uma dezena de longas documentais (incluindo o festejado “Torre das Donzelas”) e de séries importantes como “Adriano Imperador”, “Casão, num Jogo sem Regras” e “Jessie & Colombo”, faz de “Nada sobre meu Pai” seu filme mais pessoal. Ela sai do Rio de Janeiro, rumo à Quito, no Equador, em busca do pai, que não conheceu. Na juventude, sua mãe, de 24 anos, conheceu um jovem latino-americano, de 19 anos, que dizia chamar-se Helio Francisco de Castro. Viveram breve história de amor, ela engravidou e ele partiu. Sem deixar pistas. Isto se deu no início dos anos 1970. Portanto, no momento em que o Brasil vivia sob a ditadura Médici. Susanna cresceu, tornou-se cineasta reconhecida e apaixonada pela América Latina. Do pai, tinha pistas mínimas. Um apelido (“Quito”), um país de origem (o Equador), um nome, que poderia ser falso, e, quem sabe, uma causa a uni-lo a muitos jovens latino-americanos, que naquelas décadas enfrentavam ditaduras militares.

Quando “Nada sobre meu Pai” começa, nos deparamos com um típico “filme de busca”, cujo recorrente paradigma brasileiro é o fascinante “Diário de uma Busca” (Flávia Castro, 2011). Ouvimos, então, voz que canta belos versos. Versos que nos conduzem à América Hispânica, com seus tocantes boleros. Mas o que veremos, em ritmo de road movie, nada terá de sentimental. Num dos primeiros encontros da realizadora (e sua equipe) com a Polícia equatoriana, responsável pela busca de desaparecidos, uma autoridade dirá a ela, com desconcertante franqueza — “a pessoa procurada pode ter sido um militante político de esquerda” ou “um agente da CIA infiltrado no Brasil”.

Dali em diante, Susanna Lira usará a mídia equatoriana como aliada. Dará entrevista a jornais, revistas e programas de rádio e TV contando sua história. A busca do pai biológico revela a precariedade dos dados disponíveis e a transforma em celebridade momentânea. Muitos militantes políticos que passaram pelo Brasil no começo dos anos 1970 se dispõem a recebê-la, a escutar sua história e a narrar a deles. Há depoimentos fascinantes.

O filme passará, então, a desenhar envolvente retrato retrospectivo de Nuestra América setentista, marcada por grupos guerrilheiros que empreendiam sequestros de aviões (quatro aconteceram no período, no Equador, três bem-sucedidos e um frustrado). Marcados por utopias transformadoras, enfim.

Como cineasta, Susanna, sempre que pode, pede ajuda a amigos que exercem o mesmo ofício. Junto a documentaristas (como Pocho Álvarez), ela refletirá sobre o fazer cinematográfico. Haverá espaço para férteis digressões sobre as lacunas do cinema documental do pequeno Equador, país em busca da própria imagem. Ou de sua própria memória visual.

Embora seja a personagem principal do filme, Susanna faz questão de manter-se discreta, de ter sua imagem velada, de nunca bancar a “aparícia”. Fala só o necessário e ouve muito. É curiosa, quer aprender, conhecer, trocar experiências. E tem humor. Quando satisfaz a vontade de repórteres que a filmam numa avenida movimentada (eles a querem “perdida” na capital equatoriana caminhando rumo à câmara), ela, diretora que é, pede que a enquadrem de forma a favorecê-la, “sem papada”. Ao que o repórter sorri e comenta: “vanidosa!” (vaidosa). E a brasileira segue sua troca com os conterrâneos de seu pai, de quem sabe tão pouco. Quando chora (e o faz raramente), não busca o sentimentalismo.

Os “candidatos” a pai da cineasta ficam tristes ao desapontá-la. Um parece dar – pelo menos ao espectador – alguns indícios de que pode ser “Quito”, o genitor desaparecido.

A narrativa vai além do “filme de busca”, ao ultrapassar, com grande eficiência e beleza, o íntimo e atingir o épico, passando pelo mítico e mostrando que feridas podem ser curadas com amizades, viagens e novas narrativas. Deixemos, pois, a solução da trama para os que forem ao cinema ver o mais pessoal dos filmes da incansável documentarista brasileira (ver filmografia).

Cena de “Incompatível com a Vida”, de Eliza Capai

Eliza Capai, diretora de “Espero tua (Re)Volta” e da série “Elize Matsunaga – Era uma Vez um Crime”, chega ao É Tudo Verdade com um filme sobre gravidez e morte – “Incompatível com a Vida”. Um documentário de originalidade desconsertante. Nenhuma mulher (homem, então, nem se fala) poderá dizer que um dia assistiu a abordagem tão corajosa do tema da maternidade interrompida. Tão corajosa, necessária e ousada.

Quando os 92 minutos de “Incompatível com a Vida” chegam a termo, estamos tomados pelas personagens, por suas histórias e capacidade de narrar tão complexas e terríveis experiências. E por relembrar o que vivemos — as jovens mães minimizadas por Eliza em especial — num país atrasado como o Brasil. E que experimentou, por quatro anos, de 2019 a 2022, obscurantismo estarrecedor. Obscurantismo que obrigou uma pré-adolescente de dez anos, estuprada, a ser retirada do Espírito Santo, e levada a hospital no Recife, para que sua gravidez indesejada fosse interrompida (direito garantido pela Lei brasileira, mas questionado por fanáticos religiosos liderados por ministra bolsonarista).

Tudo no filme de Eliza Capai é mostrado com sutileza, sem nenhum panfletarismo, sem proselitismo. As imagens são delicadas e envolventes. “Incompatível com a Vida” só não é um filme definitivo, porque a cineasta perde a mão quando entra em cena. O que ela teve de comedida no uso da imagem das outras “personagens”, teve de excessiva em seu próprio caso. Expõe-se demais, chora demais e, não vamos detalhar aqui, mas muitos dos espectadores deverão incomodar-se, com recurso por ela utilizado que resulta desnecessário. Já estava tudo dito. Alguns cortes restituirão ao filme a potência que lhe é matricial.

Três vencedores do É Tudo Verdade estão no páreo (pelo prêmio principal) com filmes de imensas qualidades. Caso do mineiro Cao Guimarães, que triunfou com “A Alma do Osso” (2004), que agora volta com “Santino”. De  Chaim Litewski, do laureado “Cidadão Boilesen” (premiado em 2009), e de Rodrigo Siqueira (“171”).

Litewski regressa, dessa vez, em parceria com Cleisson Vidal, para compor tenebroso retrato de P.C. Farias, em “Morcego Negro”. E Rodrigo Siqueira (vencedor com “Terra Deu, Terra Come”, em 2010), chega com seu terceiro longa, o polêmico “171”, que dialoga com a ficção e com a comédia. O filme encontrou defensores entusiasmados e desafetos ardentes.

Quando “Santino” começa, num pequeno cemitério nas roseanas veredas das Minas Gerais, somos tomados por estranha sensação: lá vem Cao Guimarães, mais uma vez, com seus estranhos personagens.

A conversa entre Santino (que nome!) e diretor toma rumo, digamos, surrealista. O cineasta pergunta a verediano se ele pretende ser enterrado naquele pequeno cemitério. O interlocutor começa a falar coisas estranhas, muito estranhas, a evocar fadas e outros seres etéreos. Muita maluquice.

Por sorte, o que virá depois é apaixonante. O próprio Santino se revelará um homem profundamente ligado à natureza, defensor e conservador de belo e nem tão grande sertão e sua vereda. E o que é melhor, ele é companheiro de uma mulher “brechtiana”. Sua esposa rouba a cena quando diz que nele, Santino, convivem dois seres, um concreto, que diz coisa com coisa, e outro, tomado por estranhas vozes, que experimenta raízes que nem sempre devem ser consumidas etc., etc.

Ao término de 88 minutos de convivência com o veredeiro, um Dom Quixote em luta contra os predadores das veredas de Minas, estaremos totalmente envolvidos por ele e por sua causa. E felizes por saber que Santino conta, em sua retaguarda, com três mulheres notáveis, sua esposa, tão franca e obstinada, e suas filhas. Cao Guimarães realizou um filme muito simples na aparência, mas que traz a beleza misteriosa dos contos de João Guimarães Rosa.

A potência de “Cidadão Boilesen” colocou tão alto o sarrafo, que sempre que assistimos a um novo filme de Chaim Litevski (este é o terceiro, pois realizou apenas “Golpe de Ouro”, 2021), nossa expectativa se mostra exagerada.

“Morcego Negro”, sua nova parceria com Cleisson Vidal, demora a engrenar. No começo, tudo parece televisivo demais. Há muitas “cabeças falantes”, as identificações são precárias (e olha que assistimos ao filme na tela grande de um cinema!). Ok, o “Morcego Negro” era o avião de Paulo César Siqueira Cavalcante Farias, o futuro “vilão” PC Farias, que iniciara sua vida como professor de Latim e Francês. Depois tornara-se advogado, depois assessor de Fernando Collor no governo das Alagoas, depois o homem forte do primeiro-presidente eleito após 21 anos de ditadura militar…

E imagens iam (vão) se somando a depoimentos e mais depoimentos. Os jornalistas Lucas Figueiredo, Mario Sergio Conti, Xico Sá, Sebastião Nery, trechos de telenovela chinfrim (“O Marajá”, da TV Manchete em fase falimentar), mãe e pai de santo, familiares de PC (a cunhada Élia Bezerra, o irmão Augusto Farias), familiares e assessores de Collor (a cunhada Thereza Collor, Cláudio Vieira), parlamentares (Benito Gama, Renan Calheiros), o piloto Jorge Bandeira, médicos legistas (Badan Palhares, George Sanguinetti) e nomes obscuros (Najum Turner, Jorge la Salvia, Nabor Bulhões, José Ramon Irribarra, Franz Liechter). E mafiosos italianos, com conexões colombianas e brasileiras. Pois não é que, passados, 135 minutos, Chaim e Cleisson conseguiram amalgamar eletrizante narrativa capaz de desenhar espantoso retrato do Brasil da Era Collor e do que veríamos, pelas décadas seguintes, no submundo da política?

Nas eleições de 1989, o empresariado brasileiro (empreiteiras e banqueiros à frente, apoiados pela mídia, incluindo a poderosa Rede Globo) investiram U$170 milhões na campanha de Fernando Collor para derrotar o esquerdista Lula. Teriam sobrado, conjecturam fontes do filme, U$120 milhões. Essa dinheirama regou as futuras atividades comandadas por PC Farias, o tesoureiro da campanha. Para complicar, dois irmãos — o presidente Collor e o empresário Pedro, responsável pelo grupo de comunicação da família — entraram em rota de colisão. Pedro, marido da bela Thereza Collor, viu o ambicioso tesoureiro interessado em implantar (com as fartas sobras de campanha) um jornal que fosse concorrente do empreendimento familiar em Maceió. Além de ser “o homem mais poderoso do país” – relembra Thereza – “Fernando queria destruir o irmão”.

Caim e Abel, história bíblica. Dali em diante, uma das narrativas mais nebulosas da política brasileira, que já envolvia confisco de Poupança e atitudes impetuosas e pouco planejadas, acabou em impeachment. E, mais tarde, em crime. Antes, PC Farias seria condenado à prisão, fugiria para o exterior, seria perseguido por policiais e repórteres. Acabaria morto, aos 50 anos (embora aparentasse mais), ao lado da namorada Susana Marcolino, uma jovem “ex-garota de programa”. Primeiro veredito: crime passional seguido de suicídio. O filme levanta outras suspeitas (até de crime cometido por mafiosos internacionais). A Polícia de Alagoas concluiria, mais tarde, de forma nebulosa, que um policial da própria segurança de PC (já morto ao ser condenado pelo crime) seria o assassino. Tudo no filme registra fatos ardilosos, controversos, desmedidos, obscuros.

E, na parte final da narrativa, o documentário transforma-se em verdadeiro thriller, pois entra em cena o grupo Os Caruana, união de forças da Máfia da Calábria italiana, de Cali, na Colômbia, e suas ramificações no Brasil. Grupo cuja “lavanderia financeira” funcionaria na Suíça.

Perto dos protagonistas e coadjuvantes de “Morcego Negro”, os personagens de “171”, o terceiro longa-metragem (“Orestes”, 2015) de Rodrigo Siqueira, são amadores. E são mesmo. Afinal, cometem fraudes de pequena monta, estelionatos, que podem render-lhes de um a cinco anos de cadeia.

O filme, que dialoga abertamente com “Jogo de Cena”, de Eduardo Coutinho, embaralha realidade e ficção. Ou verdade e mentira, ao utilizar como dispositivo a lábia de seus personagens, os estelionatários, os aplicadores de pequenos golpes, os donos do engano fino, aqueles que ludibriam os incautos.

Como o dramaturgo italiano Luigi Pirandello, Rodrigo mobiliza seis personagens, que inspiram-se em famosos golpes de verdadeiros aplicadores do que está prescrito no artigo “171”. Há atores e há aplicadores de golpes reais no filme, mas não se fará distinção entre eles. Nem este é o objetivo do cineasta. Afinal, se na vida concreta o estelionatário usa da “mise-en-scène” para aplicar seus golpes, ele também é um ator, um encenador.

Vicente Ferraz, diretor de “Soy Cuba, o Mamute Siberiano”, e dos ficcionais “O Último Comandante” e “Estrada 47”, ambienta em São Gabriel da Cachoeira, na Amazônia, seu novo filme – “O Contato”. O faz no imenso município amazonense, em cujo perímetro urbano vive a maior população indígena brasileira, oriunda de 23 etnias.

Centrado, especialmente, em figuras femininas, a narrativa de imensa beleza (imagens arrebatadoras de Luis Abramo), nos revela uma Amazônia pouco vista. A câmara registra a vida cotidiana de alguns moradores da região em seus deslocamentos. E nos mostram militares, fortemente armados, que revistam mulheres e homens indígenas, revirando seus modestos pertences, em busca de drogas. Essa é nossa dedução, pois o filme, observacional, mostra sem nada explicitar. Prefere deixar ao espectador a leitura do que trazem as imagens sutis e os diálogos discretos.

Marcos Pimentel, diretor de curta que marcou época (“Sanã”, 2011) e de longas documentais como “Pele” e “Fé e Fúria”, participa pela sexta vez do É Tudo Verdade. Agora com “Amanhã”. Dessa vez, ele tenta promover o reencontro entre três crianças que filmou, num conjunto de favelas, em Belo Horizonte, em 2002. Duas delas, Júlia e Cristian, ali mesmo da Barragem Santa Lúcia, mestiças e faveladas. O garotinho, Tomás, de família de posses, fôra autorizado pelo pai a brincar com as crianças pobres e a ser filmado em seus momentos de lazer.

Já adultos, passados 20 anos, Marcos Pimentel (formado em Cinema pela Escola Internacional de San Antonio de los Baños, nos Arredores de Havana) tentará uni-los em novo encontro, na mesma região pobre, próximo à Barragem belorizontina. Enquanto espera, vai registrando, na medida do possível, o cotidiano de Júlia e de sua mãe. E alguns telefonemas de Cristian.

O Brasil, como sabemos, foi virado pelo avesso nessas duas décadas, principalmente nos anos do impeachment de Dilma Roussef e nos quatro anos de Bolsonaro. Tomaremos conhecimento de vários fatos: Júlia tornou-se mãe de duas crianças. O inquieto Cristian, um verdadeiro azougue na infância, tem passagens pelo sistema penitenciário. Mesmo assim, segue cheio de vida, com dentes perfeitos, prosa articulada e ligação profunda com a irmã. Mas sempre atraído pela marginalidade. De Tomás saberemos menos.

Ao longo de 106 minutos (que poderiam ser sintetizados, principalmente na parte final, que roda em falso), Pimentel desenhará denso retrato de um Brasil partido em dois. E revelará um sonho – por demais cristão? – de fraternidade e crença no poder transformador da arte.

 

FILMOGRAFIA

Susanna Lira (Rio de Janeiro/RJ, 20 de fevereiro de 1975)

Filmes

2023 – “Nada sobre meu Pai”
2021 – “A Mãe de Todas as Lutas”
2020 – “Prazer em Conhecer”
2019 – “Mussum, Um Filme do Cacildis”
2018 – “Meu Corpo é Mais”
2018 – “Torre das Donzelas”
2017 – “Clara Estrela” (com Rodrigo Alzuguir)
2017 – “Legítima Defesa”
2016 – “Mataram nossos Filhos”
2016 – “Intolerância Doc”
2015 – “Damas do Samba”

Séries

2023 – “Jessie & Colombo”
2022 – “Casão, num Jogo sem Regras”
2022 – “Adriano, Imperador”
2018 – “Rotas do Ódio”

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