“Subject” e subjetividade de Silvia Escorel dão a largada em edição godardiano-mauriana do “É Tudo Verdade”

Por Maria do Rosário Caetano

Nessa quarta-feira, 12 de abril, convidados paulistanos assistirão, na Cinemateca Brasileira, à sessão inaugural da vigésima-oitava edição do É Tudo Verdade – Festival Internacional de Documentários, que acontece presencialmente em São Paulo e Rio. O filme escolhido é “Subject”, das norte-americanas Jennifer Tiexiera (sic) e Camilla Hall. Já os cariocas, desfrutarão, nesta quinta-feira, 13, no Estação Net Botafogo, de sessão especial de “1968 — Um Ano na Vida”, de Eduardo Escorel. Acreditem, se quiserem, pela primeira vez em sua longa e produtiva carreira, o cineasta (ficcionista e documentarista), montador, roteirista, crítico de cinema e professor universitário realizou um filme intimista (embora, também, épico).

O estadunidense “Subject” é um filme metalinguístico. Um documentário sobre documentários. Suas duas realizadoras refletem sobre o ato da feitura de filmes não-ficcionais. Um documentarista deve pagar cachê a seus personagens? Deve dividir a renda auferida por seus filmes com aqueles que estiveram frente às câmaras? Os diretores e produtores de “Basquete Blues” fizeram bem em distribuir os imensos lucros do filme com os jovens atletas que o protagonizaram?

Logo no início da narrativa de Tiexiera e Hall somos lembrados que, de umas duas ou três décadas para cá, o cinema documentário vive era de êxitos. Deixou de ser o primo-pobre da arte-indústria cinematográfica para brilhar em grandes festivais e nas bilheterias. “A Marcha dos Pinguins”, produzido pelo ator Jacques Perrin e parceiros, rendeu, com sua fofura animal, U$20 milhões e correu mundos. “Tiros em Columbine”, de Michel Moore”, com sua temática explosiva e dura, rendeu US$5 milhões. Se não houvesse tanta pressa na narrativa cumulativa de “Subject”, suas autoras poderiam acrescentar que Moore tornou-se cineasta conhecido no mundo inteiro e triunfou em Cannes (ganhando a Palma de Ouro, com “Fahrenheit 11 de Setembro”), derrotando quase duas dezenas de obras ficcionais. Hoje, plataformas de streaming disputam documentários originários de todos os cantos do planeta.

Depois do prólogo, as duas cineastas vão ao tema (subject) propriamente dito de seu longa documental: saber como vivem protagonistas de filmes não-ficcionais que marcaram época (a maioria nos EUA) – “Basquete Blues”, claro, “Na Captura dos Friedmans”, “Os Irmãos Lobo” e “A Escada” – e “A Praça Tahir”, de Jehane Noujaim, do Egito.

Alguns se deram bem, outros nem tanto. A vida, afinal, é cheia de altos e baixos. O realizador egípcio (nesse caso, não se trata nem do personagem, mas do artífice), por exemplo, em busca de liberdade, que tanto procurou na Praça Tahir, frustrou-se. Pelo menos materialmente. Mudou-se para a Turquia, cortou seus imensos cabelos crespos e, para sobreviver, teve que vender seu instrumento de trabalho – a câmara responsável pelas imagens que resultaram em “Praça Tahir”. Filme que o Sundance Festival, a meca norte-americana do cinema não ficcional, consagrou. A vida é dura e a fama efêmera.

Já o filme do experiente e reservado Eduardo Escorel, de 78 anos, diretor de 16 longas – se incluirmos “Contos Eróticos”, que realizou com Joaquim Pedro e os Robertos (Santos e Palmari) – traz uma novidade. Sai da grande História, para a intimidade familiar. Não que revele a intimidade do cineasta, mas sim de sua irmã, a escritora e artista visual Silvia Escorel, um ano e meio mais velha que ele.

“1968 – Um Ano na Vida” dialoga intencionalmente com “No Intenso Agora”, de João Moreira Salles. Eduardo Escorel e Laís Lifschitz editaram e participaram ativamente do processo de realização do filme do criador de “Santiago” e estiveram em permanente troca de ideias com João. O filme de Escorel baseia-se nos diários de Silvia, reunidos no livro “Lost”.

Como “No Intenso Agora” revisitava lembranças da mãe de João Moreira Salles, que visitara e documentara a China de Mao Tse-Tung com câmara Super-8, Silvia e Eduardo revisitam fatos de suas vidas, mais a dela, que tinha de 23 para 24 anos no agitadíssimo 1968. De alguns dos acontecimentos, os mais íntimos e pessoais, ela se lembra, até porque estavam anotados ou desenhados em seu diários. Ou montados em colagens pop, que ela adorava fazer, com figuras tiradas das revistas e enfeitadas com desenhos psicodélicos.

Dos fatos sociais e políticos lembrava-se menos. A rememoração de alguns deles é estimulada por Eduardo. Silvia é o lado descontraído da dupla, maluquete, emaconhada, viajandona, disposta a viver intensamente aquele ano louco. Pouco predisposta aos estudos, à caretice do mundo, das instituições, do trabalho regrado. Para desespero do pai, o embaixador Lauro Escorel Rodrigues Morais (1917-2002), homem de imensa cultura, professor de Literatura, profundo conhecedor de Maquiavel, da poesia de João Cabral de Mello Neto, ocupante de cargos diplomáticos nos EUA, Europa, América Latina e África.

Pois a jovem se casara (na igreja, de véu e grinalda) com um jovem aspirante a cineasta e diretor de fotografia, Luiz Carlos Saldanha, que vivia de bicos em curtas do Festival JB e como ator em filmes prafrentex tipo “Copacabana me Engana” (Fontoura, 1968). E que assinaria a fotografia do mais radical dos filmes de Glauber Rocha, “Câncer” (1968). Um hippie, enfim. Como ela. Os pais queriam que a jovem estudasse e arrumasse emprego fixo. Mas Silvia preferia a turma da esquadrilha da fumaça, da contracultura, dos vestidos coloridos. Ela parou de alisar os cabelos e assumiu os cachos. Até tentou reconciliar-se com o marido, mas a tentativa foi vã. Avisou aos pais, desesperados, que ia desquitar-se.

O documentário que, com certeza, fará a noite inaugural do É Tudo Verdade no Rio de Janeiro desmanchar-se em prazeres dá uma no cravo (da alegria de Silvia) e uma na ferradura (da reflexão de Eduardo). Ou seja, é metade intimista, privado, familiar. E metade político, histórico, épico. Fala do Vietnã, da repressão política no Brasil, da morte do estudante Edson Luís no restaurante Calabouço, cujo enterro Eduardo Escorel filmou. E fala muito do Cinema Novo. O jovem Eduardo registrou também as filmagens do coloridíssimo “Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro”, em Milagres, na Bahia, só que em preto e branco. E Silvinha foi contratada como script girl de “Macunaína”, de Joaquim Pedro de Andrade, apaixonou-se pelo fotógrafo italiano (Guido Cosulich), viveu uma história de amor com ele, mas foi demitida pelo coprodutor K.M. Eckstein, que a achou muito distraída.

Enfim, a irmã de Escorel narra o filme com graça e muito humor, sempre prestativa e auto-irônica, sempre arrumando um jeito de buscar no fundo da memória algum resquício de lembrança que permita compor um rico painel de 1968, aquele ano que parece inesgotável. Afinal, as imagens guardadas por Eduardo Escorel e escavadas por Antônio Venancio, dessa vez promovido a produtor, são arrebatadoras. Assim como o filme. Para se ver e rever muitas vezes.

 

FILMOGRAFIA
Eduardo Escorel (São Paulo/SP, 02/02/1945)

1974 – “Isto É Pelé” – (doc. Com Luiz Carlos Barreto)
1975 – “Lição de Amor” (ficção)
1977 – “Contos Eróticos” (ficção, episódio “O Arremate”)
1980 – “Ato de Violência” (ficção)
1984 – “O Cavalinho Azul” (ficção)
1990 – “1930 – Tempo de Revolução” (doc)
1993 – “32 – A Guerra Civil” (doc)
1993 – “Ulisses, Cidadão” (doc)
2002 – “35 – O Assalto ao Poder” (doc)
2005 – “Vocação do Poder” (doc. com José Joffily)
2007 – “Deixa que Eu Falo (Leon Hiszman)” (doc)
2008 – “O Tempo e o Lugar” (doc)
2013 – “Paulo Moura, Alma Brasileira” (doc)
2016 – “1937-1945- Imagens do Estado Novo” (doc)
2021 – “SARS CoV2 – O Tempo da Pandemia” (com Lauro Escorel)
2023 – “1968 – Um Ano na Vida” (doc)

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