Representação brasileira em Cannes inclui documentários sobre Nelson Pereira dos Santos e cinemas de rua do Recife

Foto: “Nelson Pereira dos Santos – Uma Vida de Cinema”, de Aída Marques e Ivelise Ferreira

Por Maria do Rosário Caetano

A representação brasileira na septuagésima-sexta edição do Festival de Cannes (16 a 27 de maio) é das mais estimulantes. Foram selecionados quatro longas-metragens — “Levante”, de Lillah Halla, na Semana da Crítica, “A Flor do Buriti”, de Renée Nader Messora e João Salaviza, na mostra Un Certain Régard, e dois documentários fora de concurso – “Nelson Pereira dos Santos – Uma Vida de Cinema”, de Aída Marques e Ivelise Ferreira, e “Retratos Fantasmas”, de Kleber Mendonça.

Na verdade, até os filmes sobre Nelson e os “fantasmas cinematográficos” do Recife (este realizado pelo codiretor de “Bacurau”, filme laureado em Cannes) estão, no frigir dos ovos, disputando um prêmio – o Olho de Ouro, atribuído há quase uma década ao melhor documentário apresentado nas muitas mostras oficiais que compõem o festival francês. Um júri especial é escalado para acompanhar todos os longas documentais, estejam eles na competição pela Palma de Ouro (este ano são dois), no Un Certain Régard, Semana da Crítica, Quinzena ou Cannes Classics.

Um brasileiro já ganhou o Olho de Ouro – Eryk Rocha, com “Cinema Novo”, ensaio de grande beleza plástica, construído com imagens produzidas pelo pai, o cineasta Glauber Rocha, pelo próprio Nelson Pereira e por realizadores como Joaquim Pedro de Andrade, Ruy Guerra e o francês Pierre Kast (e seu “Les Carnets Brésiliens”).

Nelson (1928-2018) chega, agora, a Cannes com sua história, singular e detalhada, impressa num longa documental. A tarefa de realizar “Une Vie de Cinéma” coube à viúva do cineasta, Ivelise Ferreira, e à documentarista Aída Marques.

O diretor paulista, considerado o pai (ou irmão mais velho) do Cinema Novo, iniciou sua trajetória no cinema em 1955, com o seminal “Rio 40 Graus”. Chegaria a Cannes nove anos depois. Em maio de 1964, “Vidas Secas” e “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, este de Glauber Rocha, disputariam a Palma de Ouro. E causariam forte impressão na Crítica. Mas o vencedor da palma dourada foi “Os Guardas-Chuvas do Amor”, de Jacques Demy.

Nelson regressaria ao Brasil com o Prêmio da Juventude, atribuído por federações de Cineclubes, e com o Troféu OCIC, do Ofício Católico Internacional de Cinema (hoje Signis). E teria mais dois filmes selecionados para a competição principal – “Azyllo Muito Louco (The Allienist”), e “O Amuleto de Ogum”. Três outros de seus longas seriam selecionados para a Quinzena do Realizadores – “Quem é Beta?”, “Como Era Gostoso o meu Francês” e sua terceira adaptação de Graciliano Ramos, “Memórias do Cárcere”. Com as memórias do escritor alagoano feito prisioneiro da ditadura Vargas, conquistaria o Prêmio Fipresci (da Federação da Crítica Internacional).

Se vivo fosse, Nelson Pereira faria 95 anos em outubro próximo. Cinco a menos que Maria Ribeiro, a protagonista de “Vidas Secas”, filme seminal que o revelou em Cannes. Ela era funcionária dos Laboratórios Líder, quando o cineasta decidiu transformá-la em Sinhá Vitória, retirante que foge da seca em busca de melhores condições de vida ao lado do marido, o vaqueiro Fabiano, do filho maior e do menor, da cachorra Baleia e de um papagaio. Maria Ramos da Silva, como registra a revista Piauí número 200 (maio de 2023), completou 100 anos no último dia 25 de março.

A atriz baiana, que atuou em vários filmes, entre eles “A Hora e Vez de Augusto Matraga” (Roberto Santos, 1965), “O Amuleto de Ogum”, (1975) e “A Terceira Margem do Rio” (1994), ambos de Nelson, vive em Genebra, na Suíça. Se vivesse em sua Bahia natal, não poderia ser festejada em sua cidade natal (Boqueirão, distrito de Sento Sé), pois o município foi inundado pelas águas da Represa de Sobradinho, na década de 1970.

A centenária Maria não dispõe mais de um torrão natal. Cannes poderá rever desterrada atriz  em trechos de “Nelson Pereira dos Santos, Uma Vida de Cinema”, encarnada nas personagens às quais deu vida sob a batuta do diretor e amigo desde os tempos em que se conheceram nos laboratórios Líder.

“Retratos Fantasmas”, de Kleber Mendonça

“Retratos Fantasmas”, o quinto longa-metragem de Kleber Mendonça e seu segundo documentário (o primeiro foi “Crítico”, de 2008), tem o centro histórico do Recife e seus grandes cinemas, imponentes na paisagem do século XX, como território de memórias. E de tristeza, pois muitas e imensas salas da região desapareceram dando lugar a lojas ou igrejas. Portanto, a outras funções, que não a exibição cinematográfica.

O documentário pernambucano soma imagens de arquivo (filmes e fotos), que constituem 60% de sua narrativa de 91 minutos, e imagens em movimento produzidas pelo cineasta e sua pequena equipe. O título, que evoca “retratos fantasmas”, nos induz a imaginar o quão profundas foram as mudanças de hábitos da população, que fazia do Recife antigo seu ‘point’ de lazer. E hoje lhe virou as costas.

“Levante”, de Lillah Halla, selecionado pela Semana da Crítica, é uma obra ficcional, fruto de parceria entre produtores brasileiros e uruguaios. A realizadora estreante narra o dilema de Sofia, jovem jogadora de vôlei, que descobre estar grávida. E isto acontece num país, o Brasil, claro!, onde o aborto é ilegal. No elenco estão Glaucia Vandelveld, Grace Passô, Susy Lopes, Rômulo Braga e Rejane Faria.

Curioso notar que dos sete diretores brasileiros selecionados por Cannes (o sétimo é Karim Aïnouz, que disputa a Palma de Ouro no comando de produção britânica), quatro são mulheres. Portanto, maioria. Além de Lillah, Ivelise e Aída, há ainda Renée Nader Messora, de “A Flor do Buriti” (codireção de João Salaviza).

“A Flor do Buriti”, de Renée Nader Messora e João Salaviza

A dupla Renée, paulistana de origem, e Salaviza, português radicado no Brasil, participará da mostra Un Certain Régard, com mais um filme (“A Flor do Buriti”) de nome poético, como o longa anterior deles (“Chuva é Cantoria na Aldeia dos Mortos”, de 2018, prêmio especial do júri na mostra Un Certain Regard). Mais uma vez a dupla trabalha com a nação Krahô, no norte de Tocantins, mostrando seus integrantes em luta pela posse de suas terras e, para tal, recorrendo às mais diferentes formas de resistência.

Há 80 anos, os Krahô foram vítimas de brutal massacre, perpetrado por dois fazendeiros da região, que deixaram dezenas de vítimas indígenas. O filme constrói-se como uma ficção em diálogo com o cinema documental. O roteiro contou com a colaboração de Patpro, Hyjnõ e Ihjâc, todos Krahô.

O cearense-argelino Karim Aïnouz chega à competição principal de Cannes (Palma de Ouro) com longa ficcional produzido no Reino Unido – “Firebrand”. Depois de ser premiado em Cannes, na mostra Un Certain Regard, com “A Vida Invisível”, Aïnouz, que se divide entre o Brasil e a Europa (sua base é Berlim), foi convidado a dirigir drama histórico protagonizado por Alicia Vikander e Jude Law. No centro da narrativa, mais um casamento do Rei Henrique VIII com sua sexta noiva, Catherine Parr. Pelo pouco que já adiantou à imprensa, Karim Aïnouz realizou um filme centrado “na força de uma personagem feminina”.

A competição pela Palma de Ouro:

. “Les Filles d’Olfa”, de Kaouther Ben Hania (documentário, Tunísia)
. “Jeunesse”, de Wang Bing Youth (documentário, China)
. “Les Herbes Seches”, de Nuri Bilge Ceylan (ficção, Turquia)
. “Rapito” (Sequestrado), de Marco Bellocchio (ficção, Itália)
. “Folhas Caídas”, de Aki Kaurismaki (ficção, Finlândia)
. “The Old Oak”, de Ken Loach (ficção, Grã-Bretanha)
. “Rumo a um Futuro Brilhante”, de Nanni Moretti (ficção, Itália)
. “Firebrand”, de Karim Aïnouz (Grã-Bretanha)
. “ A Paixão de Dodin Bouffant”, do vietanamita Tran Anh Hung (ficção, França)
. “Monstro”, de Hirokazu Kore-Eda (ficção, Jaoão)
. “La Chimère”, de Alice Rohrwacher (ficção, Itália)
. “Perfect Days”, de Wim Wenders (Alemanha, Japão)
. “May December”, de Todd Haynes (ficção, EUA)
. “Banel & Adama”, de Ramata-Toulaye Sy (ficção, Senegal)
. “L’Été Dernier”, de Catherine Breillat (ficção, França)
. “Anatomia de uma Queda”, de Justine Triet (ficção, França)
. “Cidade dos Asteroides”, de Wes Anderson (ficção, EUA)
. “Black Flies”, de Jean-Stéphane Sauvaire (ficção, EUA)
. “Clube Zero”, de Jessica Hausner (ficção, EUA)
. “Zona de Interesse”, de Jonathan Glazer (EUA-Inglaterra – Polônia)

Mostra Un Certain Regard:

. “A Flor do Buriti”, de Renée Nader Messora & João Salaviza
. “Los Delincuentes”, de Rodrigo Moreno
. “Los Colonos”, de Felipe Gálvez
. “Le Règne Animal”, Thomas Cailley
. “The New Boy”, de Warwick Thornton
. “Terrestrial Verses”, de Alireza Khatami e Ali Asgari
. “How to Have Sex”, de Molly Manning Walker
. “Goodbye Julia”, de Mohamed Kordofani
. “Kadib Abyad”, de Asmae El Moundir
. “Simple Comme Sylvain”, de Monia Chokr
. “Augure”, de Baloji Tshiani
. “The Breaking Ice”, de Anthony Chen
. “Rosalie”, de Stéphanie Di Gisuto
. “”If Only I Could Hibernate”, de Zoljargal Purevdash
. “Hopelles”, de Kim Chang-hoon
. “Rien à Perdre”, de Delphine Deloget
. “Les Meutes”, de Kamal Lazraq

Mostra Semana da Crítica:

. “Levante”, de Lillah Halla
. “Il Pleut dans la Maison”, de Paloma Sermon-Daï
. “Inshallah Walad”, de Amjad Al Rasheed
. “Jam”, de Jason Yu
. “Le Ravissemenet”, de Iris Kaltenback
. “Lost Country”, de Vladimir Peisic
. “Tiger Stripes”, de Amanda Nell

Cannes Classics (alguns destaques):

. “Nelson Pereira dos Santos – Uma Vida no Cinema”, de Aída Marques e Ivelise Ferreira
. “Godard por Godard”, de Florence Platers
. “Viva Varda!”, de Pierre-Henri Gibert
. “Liv Ullmann – A Road Less Travelled”, de Dheeraj Akolkar
. “Anita”, de Svetlana Zill e Alexis Bloom
. “Michael Douglas, o Filho Pródigo”, de Amine Mestari
. “100 Anos de Warner Bros”, de Leslie Iwerks

Sessões Especiais:

. “Jeanne Du Barry”, de Maïween (filme de abertura)
. “Cerrar los Ojos”, de Victor Érice (retorno do realizador espanhol ao cinema, depois de hiato de décadas)
. “Killers of the Flower Moon”, de Martin Scorsese
. “Retratos Fantasmas”, de Kleber Mendonça
. “Eureka”, de Lisandro Alonso” (Argentina)
. “Kuvi”, de Takeshi Kitano
. “Anselm”, de Wim Wenders
. “Bonnard, Pierre et Marthe”, de Martin Provost
. “Occupied City”, de Steve McQueen
. “Les Temps d’Aimer”, de Katell Quillévéré
. “Main in Black”, de Wang Bing
. “Omar la Fraise”, de Elias Belkeddar
. “Kennedy”, de Anurag Kashyap
. “Indiana Jones e o Chamado do Destino”, de James Mangold

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