“Visões de Ramsés” arremessa seu protagonista mediúnico e crianças marroquinas no centro de thriller noir
Por Maria do Rosário Caetano
“Visões de Ramsés”, título brasileiro de “Goutte d’Or”, nome de bairro pobre de Paris, estreia nessa quinta-feira, 25 de maio, no circuito brasileiro. E o faz depois de destacar-se na Semana da Crítica, no Festival de Cannes, ano passado, e de receber consagradoras (e raras) 5 estrelas da Cahiers du Cinéma. Mesma cotação do jornal comunista L’Humanité e do ultra-liberal Le Figaro.
Publicações influentes como Le Monde, Les Inrock e Band à Part o cotaram com 4 estrelas. A crítica francesa, quase unanimemente, o recebeu com imenso – e justo – entusiasmo. Só o cinquentenário Libération, criado por Jean-Paul Sartre, foi econômico (apenas 2 estrelas).
O título brasileiro escolhido pela Imovision, sua distribuidora, é perfeito. O filme tem a ver com videntes que atendem às gentes desesperadas. E Ramsés (o carismático ator Karim Leklou) é seu protagonista absoluto, onipresente. O título para o mercado de língua inglesa optou por “Sons of Ramsés” (Filhos de Ramsés), escolha metafórica, já que o protagonista acabará envolvido com violenta gangue de crianças (pré-adolescentes) de origem marroquina, que barbarizam pelas ruas do Goutte d’Or. E o fazem emitindo impropérios similares aos que ouvimos em filmes de periferia barra-pesada vindos da Colômbia. Nestes, xingar alguém de “gonorreia” é mais que comum. É recorrência infinita.
Os garotos mirrados e de pele morena (árabes de origem) se expressam em “deridja”, espécie de dialeto da gente pobre do Marrocos. O diretor e co-roteirista Clément Cogitore, de 39 anos (ele viveu por largos anos no local), recomendou a seu diretor de casting, Mohamed Behamar, que buscasse nas ruas parisienses (Goutte d’Or), os meninos que atuariam no filme. Os escolhidos não receberam roteiro. A situação que lhes cabia interpretar era explicada e eles mesmos criavam os diálogos. Pauleira pura.
E, afinal, que filme é esse que mereceu 5 estrelas da avarenta Cahiers du Cinéma?
“Visões de Ramsés” é um drama, com pitadas fortes de thriller noir. Tudo começa em casa de alguns cômodos (um modesto consultório), onde Ramsés atende – com ajuda de uma jovem chinesa (Yilin Yang) e poucos outros auxiliares – a pessoas desesperadas. Mulheres e homens, brancos, negros ou morenos, querem que ele diga o que se passa em suas vidas desarranjadas e, se possível, aponte o nome de quem lhes emperra a existência.
Logo, logo – e isso não é spoiler – saberemos que há muita trapaça naquele meio dos videntes de dois bairros pobres (e barra pesadíssima) de Paris (além de Goutte d’Or, o quartier Barbès, que vai até a planície de Saint Denis). Que ninguém espere, pois, imagens e cartões postais da “Cidade Luz”.
Aqueles que se impacientam com misticismo e violência se perguntarão: mas quem quer ver um filme desses, com tanta gente desesperada e tanta violência? Sim, porque o clima é pesadíssimo. Videntes árabes e africanos, radicados nos dois bairros, disputam território e clientela mística de modo similar aos usados por traficantes brasileiros na disputa pelo controle de morros e favelas. E, para piorar, a violência campeia por todo lado.
Que tenhamos, pois, paciência! Que não nos desesperemos. O mundo-cão da primeira parte do filme ganhará força e matizes na melhor parte deste nervoso thriller. Um caso de morte enredará Ramsés em verdadeira teia de aranha. E os moleques desbocados, que xingam em dialeto “deridja”, serão humanizados. Assim como Ramsés, um manipulador, que nos atrai e fascina, com seus olhos profundos, desde sua primeira aparição.
“Visões de Ramsés” tocará nossas mais recônditas emoções, quando o protagonista e o bando de moleques desbocados chegarem à casa do velho Younes (o magnífico ator argelino Ahmed Benaïssa). Ele, homem idoso, receberá o filho Ramsés e aquela tribo de infantes bárbaros como tranquilidade e sabedoria. Há que se prestar muita atenção no trabalho do veterano Benaïssa, pois ele morreria em 20 de maio de 2022, justo no dia em que o filme foi exibido na Semana da Crítica, em Cannes. Tinha 78 anos e 50 filmes no currículo. “Goutte d’Or” foi o último. O personagem Younes aparece em participação breve, mas que resulta notável.
Ao final dos nervosos 98 minutos de “Goutte d’Or”, o espectador terá vivido intensa experiência sensorial. O drama noir ambientado em bairro de nome tão poético (Gota de Ouro) encontrará em gesto delicado dos meninos vindos das ruelas de Tânger mais uma razão para justificar seu título francês.
A “visão”, tão desestabilizadora (e em certa medida redentora), que o “vidente” manipulador teve em canteiro de obra do barulhento e pobre quartier alterará profundamente sua vida. A construção civil, aliás, empresta suas estacas, máquinas e incômodos sons ao degradado locus da narrativa. Haja “comércio da consolação sobrenatural” para mitigar o sofrimento daquela gente marcada por dolorosas perdas.
Com “Visões de Ramsés”, conhecemos uma Paris que se assemelha a um pedaço do Terceiro Mundo. Assim como a Roma periférica de dois filmes de Pasolini, nos quais Cogitore pensou muito na fase de criação de “Goutte d’Or”: “Accatone” e “Mamma Roma”.
O filme do jovem realizador francês, que tem muito de documental, e seu ator-protagonista chegaram para ficar. “Prestem atenção em Karim Leklou”, propôs o cineasta à imprensa internacional, pois “ele encabeça o elenco de vários e novos filmes programados para esse ano”.
Prestaremos, pois, muita atenção em Cogitore & Leklou.
Visões de Ramsés | Goutte d’Or
França, 2022, 98 minutos
Direção: Clément Cogitore
Roteiro: Clément Cogitore em parceria com Thomas Bidegain
Elenco: Karim Lelou, Ahmed Benaïssa, Malik Zidi, Yilin Yang, Jawad Outouia, Elyes Dkissi e crianças de origem marroquina.
Fotografia: Sylvain Verdet
Montagem: Isabelle Manquille
Produção: Jean-Christophe Reymond
FILMOGRAFIA
Clément Cogitore (Colmar, França, 27 de agosto de 1983)
Ator, roteirista e diretor de dez filmes de longa e curta-metragem e uma série de TV
2022 – “Visões de Ramsés” (ficção)
2018 – “The Amours Indies” (documentário)
2017 – “Braguino” (ficção)
2015 – “Ni le Ciel ni la Terre” (filme de guerra)
2015 – “La Sapienza”, de Eugene Green (como ator)
Focou-se em destacar o sucesso do filme em termos de crítica e prêmios, mas não se falou do baixíssimo público que foi assistir. E se o público não foi ver, não tem como ser “perfeito”, como afirma a autora da resenha.