Festival de Ouro Preto celebra música preta do Brasil, memória e o futuro do cinema

Por Maria do Rosário Caetano

A CineOP – Mostra de Cinema de Ouro Preto realiza sua décima-oitava edição a partir dessa quarta-feira, 21 de junho, no embalo da MPB, ou melhor da MPnoB  (Música Preta no Brasil). Até segunda-feira, dia 26, serão exibidos 125 de filmes, espalhados pelos núcleos de Patrimônio, Memória, História e Educação. E realizados seminários, debates, shows e sessões em espaços fechados, mas também ao ar livre, em imenso cinema montado entre o Museu da Inconfidência e a estátua do mártir José Joaquim da Silva Xavier, o Tiradentes.

O Cine Praça é o lugar mais badalado do festival, mesmo que sejam frias, às vezes geladas, as noites que têm a histórica Praça Tiradentes como território de exibição. Como o Cine Vila Rica, um dos mais antigos do país, encontra-se fechado para restauro, as sessões entre quatro paredes acontecerão no Centro de Artes e Convenções de Ouro Preto (com capacidade para 510 espectadores), espaço moderno e muito acolhedor. Mas quem vai prestigiar o festival da antiga capital mineira prefere curtir as lotadas sessões ao ar livre, cercadas de casarões tricentenários.

O comando da CineOP, liderado pela irmãs Fernanda e Raquel Hallak, cuida de tudo. Até da oportuna instalação de fogareiros à gás, que circundam o Cinema da Praça. Ouro Preto, a mais famosa cidade histórica do circuito do ouro mineiro, atrai imensa multidão de turistas, principalmente durante a Mostra de Cinema dedicada ao patrimônio e à memória. De dia, os visitantes passeiam por suas ruas calçadas de pedra e, à noite, assistem aos filmes mais badalados da CineOP. De preferência bem próximo aos fogareiros.

Esse ano, a Mostra ouro-pretana vai dedicar-se, em especial, às imagens e sons embalados por música black e prestar homenagem (entrega do Troféu Vila Rica) ao nonagenário cantor (e ator) Tony Tornado, aquele que abalou o Maracanãzinho, em 1971, ao cantar a lisérgica ‘BR-3’ – “a gente corre (e a gente corre)/ Na BR-3 (na BR-3)/ E a gente morre (e a gente morre)/ Na BR-3 (na BR-3)/ Há um foguete/ rasgando o céu, cruzando o espaço/ E um Jesus Cristo feito em aço/ crucificado outra vez”. O artista defendeu a canção da dupla Adolfo & Gaspar com volumosos cabelos black power e imenso desenho pintado no próprio peito, pois sob a jaqueta, estava sua pele nua. Tornado causou furor com seu canto e dança de gestos robóticos. E seu corpo de quase dois metros de altura.

Para festejar a Música Preta no Brasil serão exibidos nove longas e treze curtas-metragens. Entre eles, os longas “Rio Zona Norte”, de Nelson Pereira dos Santos”, “Uma Nega Chamada Tereza”, de Fernando Coni Campos, com Jorge Benjor, “Tim Maia”, de Flávio Tambellini, “Paulinho da Viola, meu Tempo é Hoje”, de Izabel Jaguaribe, e “Simonal – Ninguém Sabe o Duro que Dei”, do trio Claudio Manoel-Micael Langer-Calvito Leal. Entre os curtas, destacam-se “A Voz e o Vazio: a Vez de Vassourinha”, de Carlos Adriano, “Nelson Cavaquinho”, de Leon Hirszman, e “Nelson Sargento”, de Estevão Ciavatta.

Nas múltiplas mostras da CineOP (são nove, ao todo), serão exibidos longas, médias e curta-metragens oriundos de cinco países (Colômbia, Argentina, Equador, EUA e Brasil, este com a parte mais significativa da produção). A programação dá-se em ritmo de maratona e soma oficinas, workshops, lançamento de livros, masterclasses, festa junina, Cortejo da Arte, exposições, performances e shows.

Na noite dessa quinta-feira, 22, após a entrega do Troféu Vila Rica a Tony Tornado, serão exibidos dois filmes. O primeiro, “Baile Soul”, de Cavi Borges, documentário que relembra a multiplicação de bailes pelos subúrbios do Rio, embalados por soul music. Tais festas dançantes deram corpo à Black Music e revigoraram as lutas pelo fortalecimento e unificação do Movimento Negro organizado. Mais tarde, por volta das 22h, será a vez de se assistir ao thriller pop-gay “A Rainha Diaba”, de Antônio Carlos da Fontoura, lançado em 1975. Como gosta de dizer o cineasta “trata-se de um jovem de quase 50 anos, que vem encantando plateias em festivais nacionais e internacionais. Depois de participar de Berlim Classics, no grande festival alemão, o filme protagonizado por Milton Gonçalves será mostrado nos festivais de Sidney, na Austrália, e Montreal, no Canadá.

Um lembrete: por tratar-se de narrativa banhada em sangue (há quem brinque com a característica “tarantinesca” do filme) a “Diaba” será destinada a plateia jovem e adulta. E voltando à questão Tarantino: quando a Rainha queer transformou-se filme, em meados da década de 1970, o diretor de “Pulp Fiction” ainda usava calças curtas (contava apenas onze anos).

No dia seguinte à noite do Troféu Vila Rica, de “Baile Soul” e da “Diaba”, Tony Tornado debaterá sua trajetória musical e cinematográfico-televisiva com o público. À noite, fará show ao lado do filho Lincoln. Que dançará no lugar do pai, pois este recupera-se de cirurgia ortopédica.

Entre os 30 longas-metragens escolhidos para a edição deste ano estão “Lô Borges – Toda essa Água”, de Rodrigo de Oliveira, “As Linhas da Mão”, de João Dumans, vencedor da Mostra Tiradentes, “Elton Medeiros – O Sol Nascerá”, de Pedro Murad, “Diálogos com Ruth de Souza”, de Juliana Vicente, “Amanhã”, de Marcos Pimentel, “Confissões de um Cinema em Formação”, de Eugenio Puppo, “O Cangaceiro da Moviola”, de Luís Rocha Melo, “Antunes Filho, do Coração para o Olho”, de Cristiano Burlan, “Lupicínio Rodrigues – Confissões de um Sofredor”, de Alfredo Manevy, e “Últimas Conversas”, de Eduardo Coutinho.

Que a plateia fique atenta a dois longas muito especiais: “Zé”, do mineiro Rafael Conde, e “Filme Particular”, da paulistana Janaína Nagata. O primeiro registra a tragédia que se abateu sobre a família Matta Machado, das Minas Gerais,  quando um de seus integrantes, Zé Carlos, de 27 anos, militante estudantil, foi preso, torturado e assassinado pela ditadura militar. Já o surpreendente filme da jovem Nagata, formada pela USP, conquistou prêmio especial no poderoso IDFA (Festival Internacional de Documentários de Amsterdã).

Cena do filme “Zé”, de Rafael Conde

O público infantil poderá fruir um raro longa-metragem animado, vindo de Goiás: “A Ilha dos Ilús”, de Paulo G. C. Miranda, programado pela Mostrinha de Ouro Preto.

Os filmes exibidos no Centro de Convenções e no Cine Praça motivarão duas mesas reflexivas, compostas com críticos, pesquisadores e professores. Uma debaterá o “O Corpo-Tela e o Som que Pensa o Filme”. A outra – “Polifonia e Memória: Reverberações no Futuro”. Está discutirá o papel das plataformas digitais na produção, sampleamento e amplificação de memórias, além de meios de acesso a acervo de imagens, sons e experiências gravadas, essenciais à irradiação e amplitude da Música Preta no Brasil.

No segmento dedicado pela CineOP à Educação, serão exibidos dezenas de filmes, a maioria de curta duração. Serão, também, compostas múltiplas mesas para debater “Cinema e Educação Digital: Deslocamentos”, a partir de reflexão do elaborada pelo educador Paulo Freire (1921-1997). Em 1983, o pedagogo da libertação expôs suas ideias sobre o poder da televisão. Aqueles que reduzem sua ação à criação de um método de alfabetização de adultos, terão na CineOP contato com o imenso alcance de suas ideias.

O público interessado na generosa e transformadora obra do autor de “Pedagogia do Oprimido” poderá assistir à serie “Paulo Freire, Um Homem do Mundo”, que Cristiano Burlan dirigiu para o Canal SescTV, e participar de debate (“Um Plano de Cinema, um Plano de Aula”, segunda-feira, dia 26, 9h30 da manhã), que contará, além da presença do documentarista, com participação de dois pesquisadores mineiros – Lúcia Alvarez, da UFMG, e Venício Artur de Lima, professor-emérito da Universidade de Brasília (UnB).

Nascido em Sabará, na região do ouro, Venício é um intelectual preocupado com a democratização dos meios de comunicação de massa e autor de diversos livros. Dois deles nos apresentam Paulo Freire como um filósofo da educação e da cultura. O primeiro, publicado pela Paz e Terra, e depois em nova edição, pela EdUnB/Perseu Abramo, é fruto de sua tese de doutorado defendida nos EUA (“Comunicação e Cultura: As Ideias de Paulo Freire”). O segundo, que ele lançará na CineOP, no domingo, 25 de junho, chama-se “Paulo Freire – A Prática da Liberdade para Além da Alfabetização” (Autêntica Editora).

Os debates organizados pelo segmento “Encontros de Educação” se pautam pela “necessidade de uma urgente educação digital e todos os seus desafios (acesso e democratização, em especial)”. E, também, “pela necessidade urgente de entendimento de seus riscos”. Por isso, entre as palavras-chave adotadas – lembram os curadores – “vão aparecer algoritmos, metaverso, realidade aumentada, realidade mista, inteligência artificial e ChatGPT”.

No segmento dedicado à Preservação, o tema central é o “Patrimônio Audiovisual Brasileiro em Rede”. Integrantes da Associação Brasileira de Preservação Audiovisual (ABPA) se dedicarão “a conversas e articulações em prol do desenvolvimento do cinema visto como patrimônio”.

Os debates se pautarão pelo “diálogo em busca do aperfeiçoamento das políticas públicas de preservação inseridas em novo ciclo de governo (Lula 3, em lugar de Bolsonaro), marcado pela atualização do Plano Nacional de Preservação Audiovisual. Um Plano que se ocupa da imposição do digital e suas implicações-questões éticas, técnicas e políticas. E, por fim, pela reflexão sobre a necessidade de criação de uma rede nacional de arquivos audiovisuais.

O Encontro de Arquivos contará com a presença de dezenas de profissionais do setor e, entre os vários debates programados estão “Iniciativas de mapeamento de arquivos audiovisuais”, “Criação de uma rede nacional de arquivos audiovisuais”, “A rede e suas conexões: produção” e “A rede e suas conexões: difusão e exibição”.

Uma das mesas da CineOP, a que debaterá o tema “Memória e Criação para o Futuro”, reunirá a ministra da Cultura, Margareth Menezes, a secretária de Educação Superior do MEC, Denise Pires de Carvalho, e o diretor-presidente da Ancine (Agência Nacional do Cinema), Alex Braga.

 

XVIII CineOP – Mostra de Cinema de Ouro Preto
Data: 21 a 26 de junho
Com exibição de 125 filmes de longa, média e curta-metragem
Local: Centro de Convenções e Artes de Ouro Preto (510 lugares) e Cine Praça (500 lugares)
Atividades reflexivas, políticas, práticas e artísticas: 18o Encontro Nacional de Arquivos, Encontro da Educação: XV Fórum da Rede Kino, debates, seminários, diálogos, masterclasses internacionais, shows, Festa Junina, oficinas, sessões Cine-Escola, mostrinha de cinema, lançamento de livros, exposições e Cortejo das Artes.
Entrada franca para toda a programação presencial
Informações: www.cineop.com.br

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