Viagem afetiva de Tavernier pela história do cinema francês chega ao Canal Curta!
Por Maria do Rosário Caetano
Martin Scorsese empreendeu duas viagens cinematográficas de longa duração – uma pelo cinema de seu país (“Uma Viagem Pessoal com Scorsese pelo Cinema Americano”, realizada no ano do centenário da invenção dos Lumière) e outra pelo Neo-Realismo Italiano (“Minha Viagem à Itália”, 1999). Agora, chegou a hora do público cinéfilo acompanhar, pela TV, outra viagem cinematográfica, dessa vez empreendida pelo francês Bertrand Tavernier (1941-2021).
“Viagem Através do Cinema Francês” estreia nessa quarta-feira, 19 de julho, no Canal Curta!, como longa narrativa de mais de sete horas, dividida em oito episódios de 52 minutos cada. Portanto, mais que o dobro do filme que lhe deu origem –“Voyage à Travers le Cinéma Français”, lançado por Tavernier na mostra Cannes Classics, em 2016. E que ganharia exibição especial no Brasil.
No festival francês, o diretor de “A Isca”, Urso de Ouro em Berlim (1995), e “Por Volta da Meia-Noite” (1986), já havia anunciado que seu filme ganharia horas de acréscimo, transformando-se em série. É ela, que, tardiamente, chega à televisão por assinatura brasileira.
Quem viu o filme lembra-se dos caminhos percorridos por Tavernier. Ele não está preocupado em analisar a história do cinema francês, nem seus ciclos (era muda, Realismo Poético, Realismo Psicológico, Nouvelle Vague), mas sim resgatar suas memórias sentimentais do cinema de seu país. Para ser mais exato, evocar suas memórias de dezenas de filmes, seus diretores estimados (inclusive aqueles detonados por Truffaut no famoso artigo “Uma Certa Tendência do Cinema Francês”/Cahiers du Cinéma, 1954), seus atores queridos (Jean Gabin, em especial), seus criadores de trilhas sonoras (Maurice Joubert, Joseph Kosma) e colaboradores na escritura de roteiros dessa “arte tão coletiva” (Jacques Prévert, parceiro de Marcel Carné, por exemplo).
Os que preferem o “cinema de autor”, conceito nascido como base do moderno cinema francês, decerto ficarão desapontados com as memórias de Tavernier. O realizador nascido em Lyon (ele dirigiu o Museu Lumière em sua cidade natal), foi cineclubista, divulgador de filmes e assistente de Jean-Pierre Melville até chegar à direção. Construiu seu percurso como defensor ardente do cinema visto como “arte coletiva”. Portanto, não fruto de sensibilidade única e especial (o metter-en-scène).
Em seu longa-metragem de três horas e 15 minutos (ainda não vimos a série) Tavernier empreendia, com elegância e sem proselitismo, defesa amorosa de realizadores “esquecidos” pelos tempos modernos (caso de Marcel Carné) e de alguns dos espinafrados por Truffaut. Foram alvo do futuro diretor de “Os Incompreendidos”, os cineastas Jean Dellanoy, Claude Autant-Lara, René Clement, Yves Allégret, Marcel Pagliero, Jean Aurenche e seu roteirista Pierre Bost. Para Truffaut, os praticantes do “cinéma de qualité” realizavam “filmes literários” (a maioria fruto da adaptação de livros ou peças teatrais), calcados no roteiro e não na mise-en-scène, sem o calor das ruas, pois apegados aos estúdios.
Como Tavernier deseja – ao contrário do “jovem turco” Truffaut – erguer tributo afetivo aos cineastas e atores que formaram sua sensibilidade, acabará não entronizando os grandes nomes da Nouvelle Vague. Ou seja, não os festejará efusivamente, como movimento e autores, em detrimento dos que fizeram filmes das décadas clássicas (1930-1940) até “Os Incompreendidos” (1959) causar frisson em Cannes, e “Acossado” (direção de Godard e roteiro de Truffaut, 1960) mudar a história do cinema.
No começo do filme (e decerto da série, caso Tavernier não tenha feito modificações nos primeiros 195 minutos de “Viagem Através do Cinema Francês”), o diretor-roteirista-narrador registra suas memórias de filmes de Jean Grémillon (“Daïnah, La Métisse”/1932, “Águas Tempestuosas”/1941, “Le Ciel est à Vous”/1944) e Henri Decoin (“Amor Traído”/1952 e “Razzia”/1955).
Evocará, também, a Max Ophüls, o cultuado diretor de “Lola Montès”, destacando filmes como “O Exilado” e “Na Teia do Destino” (anos 1940) e “O Prazer”, de 1952. Mas sempre observando, nos 582 trechos dos 94 filmes escolhidos (para o longa-metragem que deu origem à série!) desempenhos de atrizes e atores, um aspecto da trilha sonora, detalhes como a presença de janelas ou escadas, colocando ênfase numa canção ou dança popular de bucólica província, observando um rosto ou um gesto.
Sobre Henri Decoin – hoje pouco lembrado, seja pelo público, seja pelos estudiosos do cinema – Tavernier dirá tratar-se de realizador que “não preparava a cena, não dava orientações ou enquadramentos até que visse os atores dando vida aos personagens”. Para admitir: “acho comovente o fato de alguém que não frequentou escola ter toda a graça e delicadeza dele. Um grande cineasta, um verdadeiro autor”. Registre-se, “um autor” que não figura no cânone da Nouvelle Vague, povoado por Jean Renoir, Jean Vigo, Max Ophüls, Robert Bresson e poucos outros.
Tavernier falará com imenso amor de Jacques Becker (“Casque d’Or” e “Amantes de Montparnasse”), nome respeitado pela Nouvelle Vague, assim como dois outros diretores lembrados com destaque no filme que virou série – Robert Bresson (de “Mouchete, a Virgem Possuída”) e o genial cômico Jacques Tati, diretor dos encantadores “Meu Tio” e “As Férias do Sr. Hulot”. E, claro, de seu mestre Jean-Pierre Melville (“Bob, o Jogador”, de 1956). E, com imenso prazer, de Jean Renoir, junto com o italiano Roberto Rossellini, os “pais” da Nouvelle Vague.
Falar em Renoir é evocar pelo menos dois filmes incontornáveis em qualquer narrativa sobre o cinema francês (ou mundial), seja ela memorialístico-afetiva ou histórica – “A Grande Ilusão” (1937) e, principalmente, o seminal “A Regra do Jogo” (1939), que já dividiu com “Encouraçado Potemkin” e “Cidadão Kane”, os primeiros lugares nas listas de melhores filmes do mundo, até serem desbancados por “Um Corpo que Cai” (Hitchcock) e, em seguida, “Jeanne Dielmann” (Chantal Ackerman).
Se o cinema da pátria dos Lumière tem uma unanimidade, ela se chama Jean Renoir. Esse mestre do cinema realizou, em 1946, o lírico e pastoral “Um Dia no Campo” (“Une Partie de Campagne”), no qual evocou singelamente o universo pictórico de seu pai, o pintor Pierre-Auguste Renoir (1841-1919). Quarenta anos depois, Tavernier realizaria sua homenagem aos Renoir (pai e filho) com “Um Sonho de Domingo” (“Une Dimanche à la Campagne”). Mas, por ironia do destino, usaria como matriz um livro de Pierre Bost, o roteirista espinafrado por Truffaut em “Uma Certa Tendência do Cinema Francês”. Ao contrário do integrante do núcleo duro da Nouvelle Vague, o jovem turco que escreveu o polêmico artigo aos 22 anos, Bertrand Tavernier nunca foi um incendiário. Nem nos tempos em que exerceu a crítica cinematográfica na revista Positif.
Ah, prestem atenção no imenso amor que Tavernier devota a Claude Sautet (1924-2000), diretor de “As Coisas da Vida”, que uniu Romy Schneider e Michel Piccoli, e “Um Coração no Inverno”.
Viagem Através do Cinema Francês
Série em oito episódios (52 minutos cada)
Diretor, roteirista e narrador: Bertrand Tavernier
Estreia: 19 de julho, às 23h (todas as quartas-feiras)
Onde: Canal Curta!, disponível para assinantes, nos canais 556 (NET-Claro TV), 75 (Oi TV), 664 (Vivo Fibra) e em operadoras associadas à NeoTV, e no Curta!On – Clube de Documentários, disponível na Claro TV+ e em CurtaOn.com.br
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