Elisa Lucinda soma poesia e humor no Festival de Vitória e “Big Bang” e “Remendo” brigam pelo prêmio de melhor curta

Foto: Elisa Lucinda recebendo homenagem do festival © Andie Freitas/Acervo Galpão IBCA

Por Maria do Rosário Caetano, de Vitória-ES

A atriz Elisa Lucinda – ou “poetriz”, segundo neologismo de sua estima – recebeu o Troféu Vitória, acompanhado de caderno biográfico e joia personalizada, do Festival de Cinema de Vitória, em noite de celebrações capixabas no palco do Cine-Teatro Sesc Glória.

Após o reconhecimento de Elisa “por sua trajetória no cinema, teatro, TV e dedicação à poesia”, subiram ao palco 21 representantes do curta-metragem “Remendo”, também prata-da-casa. Dirigido por Roger Ghil, a Gegê, o filme capixaba, Troféu Kikito no Festival Gramado (sim, conquistou o prêmio principal), teve seu encontro com o público local. A plateia, que aplaudira Elisa Lucinda de pé, ovacionou-consagrou “Remendo”, ficção muito livre e irreverente.

O filme de Ghil – que deve disputar as principais láureas do evento capixaba com “Big Bang”, de Carlos Segundo (produção de Uberlândia-MG) –, narra as vivências de Zé (Elídio Netto), um consertador de quase-tudo, homem negro de meia-idade e dono de verve ferina. Mesmo ferido em acidente de bicicleta, ele segue dando jeito na tranqueira de seus clientes.

O operoso Zé passa a relacionar-se com a jeitosa Jerusa (Léia Rodrigues) e vai dando jeito em chuveiros velhos e outros eletrodomésticos já bem-gastos pelo tempo. E mantém conversas vertiginosas, cheias de ensinamentos e malícias, com todos seus interlocutores, em especial o sábio Babalu (Markus Konká). Para todos os desafios, Zé parece ter um “remendo”. Só não encontrará solução para o tempo, implacável em sua inexorável voracidade.

O filme, que já passou por muitos festivais nacionais (e alguns internacionais), foi aplaudido com tamanha energia (afinal, jogou “em casa”), que já tem pelo menos um troféu assegurado – o do júri popular. Afinal, a plateia reconhecia (e aplaudia) cada uma de suas tiradas, seus atores (Konká e Elídio são festejadíssimos na cena artística capixaba), seus cenários e os temas de sua descolada trilha sonora.

Ano passado, Carlos Segundo, mineiro-paulista-potiguar (ele é professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte), conquistou o Troféu Vitória com seu curta “Sideral”, que, nos meses seguintes, apareceria na lista de semi-finalistas ao Oscar.

Autor de um longa-metragem experimental (“Fendas”) e de meia dúzia de curtas, o realizador vai, finalmente, dedicar-se a seu primeiro longa de ficção, “Leite em Pó”. A excelência narrativa de “Sideral” (filmado em Natal e Paramirim) e de “Big Bang”, prodígio de concisão, direção de atores e reviravoltas na trama, o credenciou a obter parcerias com produtores internacionais.

O mesmo não se passou com o mineiro (de Cordisburgo) Marco Antônio Pereira, que tem seu quinto curta-metragem – “A Última Vez em que Vi Deus Chorar” – na competição capixaba. O cordisburguense fez significativa carreira em festivais nacionais e internacionais e recebeu promessas de parceria de coprodução estrangeira para sua estreia no longa. Mas, na hora do frigir dos ovos, os produtores resolveram não arriscar dinheiro na ficção de longa duração do autor de filmes livres e anti-narrativos (o mineiro os define como “poéticos”).

Marco Antônio, que esteve no Festival de Gramado e se fez representar, em Vitória, pela atriz Cibeli Zeôdi, vai levar o projeto de seu primeiro longa à Mostra CineBH, que acontece, semana que vem, na capital mineira. Irá discuti-lo com possíveis coprodutores.

Hoje, sexta-feira, o festival capixaba exibirá mais dois longas-metragens de sua competição no formato – o catarinense “Porto Príncipe”, de Maria Emília Azevedo, e o paulista “Jovem que Desceu do Norte”, de Ana Teixeira. E prestará homenagem aos 25 anos do Canal Brasil, espaço televisivo dedicado à difusão do audiovisual brasileiro. André Saddy, que dirige a emissora, multiplicada no streaming pela Globoplay, terá que rebolar para causar o mesmo e aliciador efeito obtido pela “poetriz”.

Primeiro um registro: os artistas capixabas fizeram da noite de quinta-feira uma verdadeira dança contra o tempo. A equipe de “Remendo”, composta com 21 integrantes, deu voz a cada um deles, todos presentes (e falantes) no palco. A “discurseira” durou bem mais que o curta-metragem (de 20 minutos).

Já Elisa Lucinda, que também fez uso elástico do tempo (e bota elástico nisso), não cansou ninguém. Senhora de seus ofícios (domínio de palco e com muito o que dizer, tudo banhado em fina ironia e bom-humor), ela fez por merecer todos os aplausos recebidos.

Sem traços egóicos, dividiu o palco, com generosidade (ou sororidade, palavra da moda) com sua professora Maria Filina, de 94 anos. Dona de espantosa memória e de raro senso de humor, a elegante Filina contou histórias, elogiou a discípula e interpretou dois longos poemas elisianos.

A homenageada não chamou a mestra (vestidas, ambas, como estrelas de cinema) ao palco para fazer média com gente ilustre de seu estado natal. De forma alguma. Dividiu, isto sim, o protagonismo com a encantadora, culta e antenada senhora, amante da poesia, da qual se fez difusora, com pegada moderna. Nunca apreciou declamações condoreiras. Mas, sim, o “dizer o verso” com coloquialidade, como se fosse “uma conversa poética”.

Elisa Lucinda desejava que a nonagenária Filina permanecesse no palco, a seu lado. Foi a “conversadora de poemas” quem decidiu deixar o espaço inteiro para a “poetriz” e conterrânea, que atuou em “A Bela Palomera”, “O Pai da Rita”, entre outros filmes, e na recente telenovela global “Vai na Fé”. E que, há 21 anos, defende nos mais diversos palcos, o espetáculo literário “Parem de Falar Mal da Rotina”.

Nascida há 65 anos, em Cariacica, portanto capixaba de quatro costados, Elisa seguiu derramando generosidade no palco do Cine-Teatro Sesc Glória. Dedicou espaço nobre a longo poema da mineira Adélia Prado (mais um sinal de generosidade).

Como não poderia faltar, Elisa Lucinda, famosa por seu bom-humor e fina ironia, arrumou um jeito de cutucar o conterrâneo mais ilustre, o cantor e compositor Roberto Carlos (nascido em Cachoeiro do Itapemirim).

Para a “poetriz”, o cachoeirense não se notabilizou por lembrar sua origem geográfica. Ela, sim, nunca esqueceu de sua Cariacica, de Vitória (estudou Jornalismo da UFES – Universidade Federal do Espírito Santo), dos pais, capixabas, que tudo fizeram para que ela exercesse o ofício de seu sonho (ser atriz, cantora, “poetriz”, enfim, desde que assistira ao espetáculo “Brasileiro, Profissão Esperança”, com Paulo Gracindo e Clara Nunes).

Com texto longo, mas de alta intensidade poético-rememorativa, Elisa Lucinda traçou, com o sabor cotidiano de um texto de Rubem Braga, também capixaba, seu roteiro sentimental de vivências em Cariacica (tomada por aromas e sabores de muitos frutos, incluindo o esquisito jenipapo) e por Vitória, cidades amadas.

Depois da homenagem à “poetriz” e da interminável apresentação de “Remendo”, foram exibidos os curtas “Mãri Hi – A Árvore dos Sonhos”, de Morzaniel Iramari Yanomami, de Roraima; o paraibano “Cósmica”, de Ana Bárbara Ramos, e o carioca “Teatro de Máscaras”, de Eduardo Ades, este com Vera Holtz como protagonista absoluta.

A competição de curtas encerra-se, nessa sexta-feira, 22 de setembro, com “Deixa”, de Mariana Jaspe, protagonizado por Zezé Motta; “Ramal”, do mineiro Higor Gomes; “Procuro Teu Auxílio para Enterrar um Homem”, do capixaba Anderson Bardot, e “Escasso”, de Clara Anastácia e Gabriela Meirelles, vindas do Rio de Janeiro.

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