Mostra de Gostoso premia “love story black” e novo frisson do cinema baiano

Foto: Cena de “Saudade Fez Morada Aqui Dentro”, de Haroldo Borges

Por Maria do Rosário Caetano, de São Miguel do Gostoso-RN

O eixo Minas-Bahia triunfou na décima edição da Mostra de Cinema de Gostoso, no litoral potiguar, com os longas-metragens “O Dia que te Conheci”, de André Novais Oliveira, escolhido pelo público, e “Saudade Fez Morada Aqui Dentro”, de Haroldo Borges, o eleito pela crítica cinematográfica.

No terreno dos curtas, venceram, igualmente, filmes fora do eixo. Os premiados foram “As Marias”, de Dannon Lacerda, de Mato Grosso do Sul, o escolhido do público, e “A Edição do Nordeste”, de Pedro Fiúza, do Rio Grande do Norte, o eleito pela crítica.

A direção do festival potiguar atribuiu menção honrosa ao filme cearense “Estranho Caminho”, de Guto Parente. E entregou um Troféu Cascudo (homenagem ao folclorista potiguar Luiz da Câmara Cascudo) ao jovem diretor Vinícius Girnys, por seu trabalho no documentário “Samuel e a Luz”. Curioso notar que há semelhanças entre o que ocorre em Ponta Negra, num micropovoado fluminense, distrito de Paraty, com o que ocorre em São Miguel do Gostoso, município de 10 mil habitantes. Ambos, banhados pelo Oceano Atlântico, assistem ao enfraquecimento da pesca artesanal, substituída por transformador (para o bem e para o mal) crescimento do afluxo turístico.

Já o projeto BrLab-Mostra Gostoso analisou e premiou (em parceria com as empresas Dot e Mistika) dois filmes em fase de finalização – “A Voz de Deus”, de Miguel Antunes Ramos (SP) e “O Deserto de Akin”, de Bernard Lessa (ES).

A crítica cinematográfica reafirmou os méritos do longa baiano “Saudade Fez Morada Aqui Dentro”, que vem causando frisson por onde passa. Tudo começou em dezembro de 2022, quando a história do adolescente Bruno (Bruno Jefferson), abalado pela descoberta de doença degenerativa que o privará do sentido da visão, ganhou o prêmio máximo do Festival de Mar del Plata, na Argentina. Feito que o Brasil não repetia há mais de 50 anos (o último vencedor fôra “Macunaíma”, de Joaquim Pedro de Andrade).

Em outubro de 2023, o filme baiano estreou no Festival do Rio, na mostra Rumos, e conquistou o prêmio principal. Já na Mostra de Cinema de São Paulo foi destacado com o Prêmio Netflix, plataforma que o disponibilizará em 190 territórios, e o Prêmio Paradiso, que ajudará em seu lançamento no circuito comercial de cinemas.

O filme de Haroldo Borges merece tamanha consagração? Afinal, o que é que ele tem de especial?

“Saudade Fez Morada Aqui Dentro” merece, sim, os prêmios que vem somando desde sua estreia no balneário de Mar del Plata. O segundo longa de Borges (o primeiro foi “Filho de Boi”, 2019) resultou em um, digamos, pequeno milagre. O cineasta, também roteirista, diretor de fotografia e co-montador de “Saudade…”, encontrou refinado equilíbrio ao narrar história das mais tocantes, cujo cerne está na cegueira de Bruno. Cegueira que o atormenta no justo momento em que ele vive o auge de sua adolescência e está com os hormônios em plena ebulição.

O rigor narrativo impede que o filme caia na chantagem sentimental. O elenco (o juvenil, em especial) recrutado no povoado de Poço de Fora, de apenas 400 habitantes, exala frescor. Destaque para Bruno e seu irmão mais novo, Rôni. As cenas conjuntas dos dois, seja andando de bicicleta, seja brincando na cama, são contagiantes.

A fotografia de Haroldo Borges capta a beleza da região sem ser turística. E a sequência em que Bruno, já cego, é abandonado em pedreira (próxima a um poço) e depara-se com pequeno rebanho de cabras é de antologia.

Na trilha sonora – “inexistente, pois só usamos música, quando ela faz parte da cena”, explica o diretor – há forró (com excelente grupo da região), sacudidos “paredões” e o canto mavioso de Dona Eugênia Lopes, moradora de Poço de Fora. Haroldo sabia que o uso de trilha convencional num filme sobre perda de sentido tão importante quanto a visão resultaria em desgastados (e apelativos) clichês do cinema sentimental. Evitou-os sabiamente.

Na verdade, “Saudade Fez Morada Aqui Dentro” (filmado em ordem cronológica, procedimento raro no cinema) é um desses filmes capazes de agradar ao público e à crítica. Afinal, sabe contar história mobilizadora e tocante, sem baratear seus recursos narrativos. Há muito tempo a Bahia não via produção local causar tamanho (e merecido) alvoroço.

Detalhe importante: o filme contou com preparação de “Toledão”. Assim, o hiperativo Haroldo define a hoje temida e questionada ‘coach’ Fátima Toledo, que vem preparando elencos para dezenas de filmes, desde “Pixote, a Lei do Mais Fraco” (Babenco, 1980). “Fui aluno dela num de seus cursos livres e fiquei muito impressionado”, testemunha o cineasta. Por isso, “a convidei para preparar nosso elenco, em especial, os quatro jovens, os dois irmãos e suas amigas adolescentes. Só dois atores no filme (Vinicius Bustani e Heraldo de Deus) são profissionais”. Para resumir: “o trabalho dela foi fantástico. Em poucas semanas de intensa convivência em Poço de Fora, Fátima preparou o elenco e todos nós gostamos demais de trabalhar com ela”.

O mato-grossense do Sul Dannon Lacerda, de “As Marias”

A escolha do público, que elegeu o mineiro “O Dia que te Conheci”, reafirma o poder de comunicação e empatia do terceiro longa de André Novais, integrante da Filmes de Plástico, produtora atuante no eixo Contagem-BH. O filme é um melodrama (qualificativo aqui usado sem nenhuma conotação pejorativa), pois narra delicada história de amor, com trilha sonora exuberante. Nunca se ouviu tanta música num filme de Novais. Além dos raps descolados que se fazem ouvir desde os créditos, há melodias que impregnam as sequências da enxuta narrativa (de apenas 70 minutos), levada a cabo por dois atores em estado de graça (Renato Novaes e Grace Passô).

A trama do filme é simples e envolvente. Um bibliotecário que mora em BH, trabalha em escola de outro município, que exige dele o consumo de 90 minutos dentro de um ônibus. Isto, se o veículo não quebrar. Ele acabará demitido por causa de constantes atrasos. No dia de sua demissão, aceita carona de uma colega da escola, a mensageira de seu ato de exclusão do educandário. Nascerá desse encontro (e de carona que virá a seguir) relação amorosa irresistível. E muito bem-humorada.

O humor de Novais, registre-se, é fino e sútil. E está presente em seus três longas (“Ela Volta na Quinta” e “Temporada”). Em “No Dia que te Conheci”, ele banhará, de forma encantadora, uma love story black, vivenciada por – como lembrou Renato Novaes – “corpos fora do padrão”.

Os escolhidos como os melhores curtas foram, realmente, os destaques do formato. O mato-grossense do sul – “As Marias” – é fascinante. O realizador mostra o cotidiano de três tias, nascidas num mesmo parto, portanto trigêmeas, no pequeno município de Guia Lopes da Laguna, plantado na região fronteiriça entre Brasil e Paraguai. Elas são mulheres idosas, que falam de relações familiares, religião e temas ligados aos limites impostos às suas existências. Afinal, foram criadas para prestar obediência aos pais. Ou aos maridos. Ou à Igreja. Uma delas confessa sua virgindade cultivada há mais de 70 anos e evoca um amor sublimado.

Da conversa com as trigêmeas, Dannon Lacerda acabará descobrindo também fatos importantes na vida de seus pais e dele próprio. O público não resistiu ao apelo dos testemunhos das trigêmeas, ora vestidas com idêntico modelito vermelho, ora com figurinos do dia-a-dia, costurados com cor e alegria. Irresistível, também, é a trilha sonora, que inunda a tela com dolentes guarânias e polcas paraguaias.

O curta potiguar “A Edição do Nordeste”, escolhido pela crítica, tem suas origens em tese de doutorado (e livro) de Durval Muniz Albuquerque, intitulada “A Invenção do Nordeste”. Depois de servir de matriz seminal a espetáculo de mesmo nome (montado pelo grupo Carmim e premiado com o Shell de Teatro), chegou a hora do cinema beber na mesma fonte.

Como diz o nome do curta (“A Edição do Nordeste”), ele soma, numa ilha de edição, fragmentos de filmes que ajudaram a solidificar a imagem estratificada da região brasileira. Ela é vista como um lugar atrasado, povoado por gente pobre, cangaceiros e flagelados pela seca, dispostos a migrar para o sul.

O documentarista parte de quatro frases – “O Nordeste é criado/ O Nordeste é oficializado/ O Nordeste é inventado/ O Nordeste é editado” – para, junto com seu montador, Aristeu Araújo, selecionar trechos (o filme de apenas 20 minutos poderá resultar num longa) de vários ‘nordestern’, entre outras ficções e documentários que ajudaram a “inventar o Nordeste”.

Ninguém pense que o documentário resultou de comportada colagem de pedaços de filmes realizados de 1936 (“Lampeão”, de Benjamin Abrahão) até os anos 1980. Fiúza e Araújo criam novas correlações e (algumas) subversões. A maior destas consiste em colocar na boca de Lampião, o verdadeiro Virgulino Ferreira (documentado pelo mascate libanês na década de 1930), diálogo  proferido pelo Lampião ficcional do filme “O Rei do Cangaço” (Carlos Coimbra, 1963), interpretado por Leonardo Villar.

O diretor Vinícius Girnys com o troféu pelo documentário “Samuel e a Luz”

A menção honrosa atribuída pela coordenação do festival ao cearense “Estranho Caminho”, de Guto Parente, destaca as qualidades desse arriscado longa-metragem, que subverte o realismo com desconcertantes doses oníricas, fantasmagóricas. Quem conhece os nove longas anteriores do realizador (feitos em grupo no Coletivo Alumbramento ou solo) sabe que ele é um cultor apaixonado do gênero horror-terror-fantástico.

Quando estrear, ano que vem, nos cinemas, Guto Parente fará seu “teste de público”. Ou seja, saberá se o público aceitará a maior (e mais subversiva) de suas ousadias formais. Se aceitar a “quebra de gênero”, o espectador fruirá de uma nova (e instigante) experiência. Ou seja, apreciará esse belo (e subversivo) filme, protagonizado pelo craque Carlos Francisco (“Marte 1”) e pelo promissor Lucas Limeira, revelado em “Cabeça de Nego” (Déo Cardoso, 2019) e testado em bom papel coadjuvante em “Quando Eu me Encontrar“ (Amanda Pontes e Michelline Helena, 2023).

O troféu Cascudo entregue ao longa documental “Samuel e a Luz” amplia as láureas atribuídas a esse filme tão singular, construído ao longo de seis ou sete anos, numa praia de pescadores, transformada em “paraíso” invadido por sôfregos turistas. O filme, premiado em Guadalajara, no México, e por isso credenciado a disputar vaga no Oscar, triunfou como “o melhor documentário” da Mostra de Cinema de São Paulo, depois de passar por crivo de júri internacional.

Confira os vencedores:

. “O Dia que te Conheci”, de André Novais Oliveira (MG) – melhor longa pelo Júri Popular
. “As Marias”, de Dannon Lacerda – melhor curta pelo Júri Popular (MS)
. “Saudade Fez Morada Aqui Dentro”, de Haroldo Borges (BA) – melhor longa pelo Júri da Crítica
. “A Edição do Nordeste”, de Pedro Fiúza (RN) – melhor curta pelo Júri da Crítica
. “Estranhos Caminhos”, de Guto Parente (CE) – Menção Honrosa da Direção do Festival
. “Samuel e a Luz” – Troféu Cascudo especial (atribuído pela direção do Festival)

BrLab, Mistika e DotCine escolheram:

. “O Deserto de Akin”, de Bernard Lessa (ES) – Prêmio Mistika (R$ 35 mil reais em serviços de finalização de imagem)
. “A Voz de Deus”, de Miguel Antunes Ramos (SP) – Prêmio DOT (R$35 mil em serviços de finalização de imagem) e 25 horas de estúdio de pós-produção sonora, pela Mistika.

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